Tinham chegado a uma espécie de pequena clareira, onde se
encontrava o edifício redondo, de cor escura, a que Concha chamara a ermida. Na
verdade, era uma das capelinhas que, da varanda com vista para o convento em
casa dos Buissard Coutinho, se viam a subir o declive da serra, cada uma no seu
degrau. Nuno olhou à sua volta. A vista: toda verde; toda azul.
– Sítio lindo – murmurou.
O silêncio. Como resposta ao aumento momentâneo do calor, as
cigarras calaram por segundos as suas estridulações. Imóveis, os arvoredos em
redor exalavam um perfume acre, ao mesmo tempo apetecível e repugnante: um
aroma de esteva e de tomilho, onde parecia imiscuir-se um cheiro pungente a
esperma e saliva. Sobreveio uma leve aragem. As cigarras retomaram o seu canto,
agora num tom mais agudo, mais estridente que antes.
– Bom, vou entrar. – Concha dirigiu-se à porta da capelinha e
remexeu na fechadura.
A porta abriu. Apenas o limiar transposto, Concha sumiu-se
imediatamente na penumbra, na escuridão que, para quem tinha os olhos
encandeados pela luz daquela manhã, formava uma cortina impenetrável. Por sua
vez, Nuno também se aproximou da ermida, mas ficou à porta, indeciso se haveria
ou não de entrar. Olhando para o interior, discernia-se vagamente uma decoração
em azulejos. Nuno viu de repente uma coisa que o interessou e entrou na sombra
fresca da capela.
Agora o calor, que ardia lá fora, já não passava de recordação.
Mesmo o foco dourado, em que borboleteavam ínfimas poeiras, retinha do ar livre
a luz, apenas; não o calor. E embora iluminasse a zona da parede que chamara a
atenção de Nuno, esse feixe de luz nada subtraía à frescura dos azulejos. A
frescura que, à guisa de bálsamo, já lhe acalmava o ardor dos arranhões nas
mãos e nos braços.
SE ÉS CRISTO, SALVA-TE. A legenda escrita a azul, desgarrada do
escárnio que lhe informava o contexto na Sagrada Escritura, parecia encerrar em
cinco palavras tudo o que havia para dizer acerca de Deus, por um lado, e da
condição humana, por outro; tanto se aplicava às chagas de Cristo como ao
instrumentário da Paixão, que Nuno via representado nos azulejos à sua frente:
lança, túnica, esponja. E, descendo do sobrenatural para o comezinho, as mesmas
cinco palavras exprimiam, entendidas sob outro prisma, tudo o que havia a dizer
acerca dos pequenos problemas por que, na solidão daquela serra (dentre todas
montanha sagrada de eremitas e de poetas), estavam a passar uma mulher em
“idade difícil”, com o marido há anos no Brasil e com o filho a perder-se
algures em Lisboa; e um jovem que, ao tomar ali a decisão de largar tudo, se
obrigava a assumir perante si mesmo que encerrara o capítulo das namoradas, que
era capaz de ir contra os desejos dos pais, que ia ficar com uma fama de que,
até morrer, nunca mais se livraria, que tinha a capacidade de arriscar tudo, de
pôr a sua vida toda em causa em prol de um jovem como ele que lhe dissera
repetidas vezes que era só amizade e que a componente de afectividade física
não fazia daquela relação o amor que Nuno procurava.
Já mais habituado à escuridão, Nuno reparou, sem surpresa (pois
os seus olhos também estavam marejados de lágrimas), que, em pé ao seu lado,
diante do enorme Cristo crucificado que ocupava toda uma parede da ermida,
Concha chorava com a cara enterrada nas mãos. Recalcando o medo de que ela o
repelisse, Nuno atreveu-se a pôr-lhe a mão no ombro. Concha estendeu devagar o
braço e colocou a mão sobre a mão de Nuno.
E sem fazer nada para impedir o choro – remédio de tanta coisa
que ficava para trás... –, Nuno elevou os olhos e fitou o rosto ensanguentado
da estátua pregada na cruz. Vieram-lhe ao espírito os versos do frade
arrabidense em que sempre se revira: “luz sem luz, vida sem vida, sol sem
curso”.
Isso fora a sua vida. Isso era o que ficava para trás.
Doravante, o mote iria ser outro. “Menos contradição, mais clara vista”.
Frederico Lourenço, Pode um desejo imenso, Cotovia, 2006, 5ª
edição, pp. 96-98
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