quinta-feira, 21 de julho de 2016

Alexandre Quintanilha



Alexandre Quintanilha dá a cara e conta a sua história em nome da esperança LGBT

Em entrevista para a nova web-série Já Melhorou, o deputado socialista Alexandre Quintanilha falou em Abril sobre o seu percurso de vida, a relação com o marido Richard Zimler e a vivência da homossexualidade em diferentes países e alturas. O vídeo saiu no sábado passado.
No projecto digital Tudo Vai Melhorar, Organização Não-Governamental e plataforma portuguesa afiliada ao It Gets Better nos Estados Unidos, que incentiva a perseverança de jovens LGBT face ao bullying e preconceito homofóbico, Quintanilha surgiu como a primeira figura política homossexual a conversar sobre uma vida realizada. O professor universitário jubilado e actual deputado do PS descreve a sua história de vida, incluindo a infância, carreira académica e a relação que construiu com o escritor Richard Zimler, companheiro de longa data.
Na entrevista, inserida na web-serie Já Melhorou, começa por falar da juventude passada em Moçambique, cheia de vivas experiências e curiosidade. Nascido em 1945, pertenceu à geração do pós-guerra a quem era permitido acreditar num mundo melhor. “Não tinha medo de explorar o desconhecido”, afirma. Descreve-se como um romântico desde cedo, “atraído, como todos nós, por pessoas”.
Foi por volta dos 13 anos que começou a sentir uma “barreira diferente” nas relações que mantinha, reparando que a intimidade que lhe era permitida com raparigas se tornava quase impossível com rapazes, por recusa dos mesmos. “Tínhamos relações sexuais, mas enquanto que para mim era o que estava à espera, para eles não”, relembrou. Traz consigo até hoje a convicção de que a emoção por outro ser humano deve ser sempre explorada, seja com homens ou mulheres, uma opinião que lhe surgiu cedo na vida.
A vida levou-o aos caminhos da ciência, formando-se em Física em Joanesburgo e mais tarde especializando-se em Biologia. Após uma longa carreira de investigação e ensino tanto nos Estados Unidos como em Portugal, tornou-se deputado do PS pelo círculo eleitoral do Porto na XXIII Legislatura, liderando hoje a Comissão de Educação e Ciência no Parlamento.
A entrevista prosseguiu com as memórias dos tempos passados em São Francisco, no estado norte-americano da Califórnia. Foi aí que, em 1978, conheceu o marido, o escritor Richard Zimler. O momento era de libertação social e de aguerridas causas, ou não fosse a área da Baía de São Francisco historicamente conhecida pelos fortes movimentos de comunidades como a LGBT e a feminista.
A epidemia da SIDA nos anos 1980 afectou particularmente a cidade. Quintanilha não escondeu o que poderia ter acontecido, confessando que não fosse pela relação monogâmica que iniciou com Richard, “não estaria aqui hoje”. Acrescenta aliás que parte do motivo pelo qual o casal se mudou para Portugal foi o ambiente deprimente que surgiu em São Francisco, devido ao elevado número de afectados pela doença.
A forte base católica portuguesa poderia parecer à partida um impedimento à normal vivência de um casal gay em Portugal na década de 1990, mas o deputado não concorda. “É um país muito respeitador da liberdade das pessoas”, afirmou. A partir daí, a relação com Zimler continuou a fortalecer-se, até se tornarem um dos primeiros casais gay a casar em Portugal, após a aprovação do casamento homossexual em 2010. Mas a permanência não é obrigatória. Depois de 20 anos tanto em África como na América e Europa, "a ideia é ir os últimos 25 anos para a Nova Zelândia", numa verdadeira volta ao mundo em pares de décadas.
Sobre as relações, o deputado tem opinião assente. Afirma que a sua o ajudou a crescer e a perceber melhor quem é. "Uma relação muito forte é aquela em que começamos a sentir a pouco e pouco uma enorme satisfação com a realização do outro", sustenta.
A web-série semanal Já Melhorou incluirá oito episódios com entrevistas, sendo o depoimento de Quintanilha o segundo. O projecto está no entanto a enfrentar dificuldades para conseguir que outras figuras públicas e políticas contem as suas histórias. Diogo Vieira da Silva, presidente da AssociaçãoTudo Vai Melhorar, confessa que apesar de a disponibilidade de Quintanilha para a entrevista ter sido total, a falta de voluntários mediáticos obrigou a uma alteração da estratégia da temporada. Procuraram assim figuras que fossem reconhecidas dentro da comunidade LGBT, mesmo que escapassem um pouco à esfera pública.
O jovem presidente espera, apesar de tudo, que Alexandre Quintanilha seja apenas um começo. Para a próxima temporada, na calha para ser exibida no final deste ano ou início do próximo, Diogo Vieira da Silva conta que outras figuras políticas se cheguem à frente quando convidadas. “Porque essas figuras têm uma responsabilidade, nem que seja mediática, de fazer com que jovens gays e lésbicas percebam que nada os impede de se realizarem quer pessoalmente quer profissionalmente, e que temos de deixar de viver com medo. É esta a intenção da web-série. Demonstrar de forma positiva que é possível sermos nós mesmos”, explica. Texto editado por Álvaro Vieira
 

sábado, 16 de julho de 2016

Vida gay dos anos 70 não foi apenas sexo

Em Portugal o discurso sobre os homossexuais e outras minorias sexuais e de género tende a ser pobre em pluralismo, Nos EUA são incontáveis os contributos para uma debate democrático. Stand by Me é um bom exemplo dessa realidade que ainda nos é tão distante.
Livros Stand by Me: The Forgotten History of Gay Liberation     
É simplista supor que os homossexuais norte-americanos dos anos 70 viviam a pensar em sexo, noite, sauna e praia, narrativa surgida na década seguinte perante a epidemia da sida, maneira rápida e preconceituosa de explicar que as principais vítimas do VIH tenham sido homossexuais.
Eis a tese de Jim Downs em Stand by Me: The Forgotten History of Gay Liberation, aparentemente próxima do discurso que sectores LGBT proferem há talvez duas décadas, segundo o qual a sexualidade deve ser apresentada como aspecto secundário da vida dos homossexuais para que estes simbolicamente se aproximem da suposta sexualidade contida dos heterossexuais e sejam reconhecidos como capazes de aceder ao casamento e à adoção. Aparenta, mas não está próxima.
“Ao defender que o sexo não foi decisivo na vida gay, espero que este livro não seja entendido como uma história asséptica dos anos 70”, justifica Downs na conclusão. “Não há dúvida de que o sexo teve influência e importância para as pessoas gay, naquela década, mas não era a única coisa que lhes interessava, como diz a narrativa que herdámos” (p. 195).
O livro surge, assim, como objecto contra-corrente. Esforça-se por desmontar a versão que o activista e escritor Larry Kramer ajudou a fazer vingar, primeiro com o livro Faggots (1978), depois com intervenções inflamadas ao longo das décadas de 80 e 90, de que a promiscuidade sexual dos homossexuais e a alegada incapacidade para manterem relacionamentos estáveis teria sido determinante para que a sida se tornasse epidémica.
De forma velada, instala uma pergunta que merece vários volumes e poderia ser assim formulada: porque é que os actos sexuais, a maneira como são feitos, a frequência e os locais onde se praticam, são aspectos considerados relevantes quando se fala de homossexualidade?
Jim Downs, agora em licença sabática, professor de História e de Estudos Americanos na Connecticut College desde 2006, é académico no método, apresentando escassas fontes testemunhais (uma, por certo, as outras não são óbvias). Optou por documentos escritos, nomeadamente imprensa da época que encontrou nos arquivos dos centros comunitários LGBT de Filadélfia e Nova Iorque e na Biblioteca Pública de Nova Iorque.
“Toda a história é política, tendemos a construir, no presente, um passado ao serviço de uma agenda ideológica concreta”, recorda a introdução. “Fui aos arquivos e tirei notas. Quis documentar os episódios desconhecidos que constituem a libertação gay. Quis contar histórias surpreendentes de pessoas homossexuais que construíram igrejas, fundaram jornais, abriram livrarias e repensaram o significado da identidade gay. Quis mostrar que a década de 70 foi mais do que uma noite na sauna” (p. 6). E insiste: “O sexo foi apenas uma parte do que aconteceu”.
O texto divide-se por sete capítulos, os mais interessantes dos quais versam a presença de gays em igrejas e comunidades católicas; o nascimento da livraria Oscar Wilde Memorial, em 1967, em Nova Iorque; e a cultura da imprensa de nicho, com destaque para a revista The Body Politic, editada entre 1971 e 1987.
O primeiro capítulo é dedicado a um episódio que teve lugar a 24 de Junho de 1973, em Nova Orleães, quando um desconhecido ateou fogo ao bar Up Stairs Lounge, onde habitualmente se juntavam dezenas de homossexuais em comunhão religiosa, sob orientação do reverendo William Larson (a imprensa da época falava em bar queer, palavra que então significava “maricas”). Naquele dia estavam 120 pessoas reunidas para assinalar a Revolta de Stonewall, acontecimento de 1969, em Nova Iorque, que se estabeleceu como início do movimento LGBT actual. As chamas lavraram com fúria e pelos menos 27 fiéis ficaram encurralados no bar, morrendo carbonizados, intoxicados ou espezinhados. O autor chama-lhe “o maior massacre de homossexuais na história americana” e adiciona pormenores, incluindo a identidade de algumas vítimas. Nunca se soube quem ateou o fogo.
No capítulo 2, prossegue o retrato das comunidades de católicos, protestantes e judeus que se organizaram em Atlanta, Nova Iorque, Los Angeles, Santa Monica, Nashville, São Francisco, etc., constituídas em oposição às hierarquias oficiais que não reconheciam os homossexuais como fiéis.
“A religião era, e continua a ser, usada atacar a homossexualidade, mas ajudou muitos gays nos anos 70 a aprenderem a aceitar a sua sexualidade e a sentirem-se confortáveis como parte da sociedade” (p.44), lê-se. No fim da década, tais congregações “tinham alcançado bastante visibilidade pública”.
Dissidentes religiosos, estes homossexuais “queriam ter acesso a outros rituais, sobretudo o casamento”, garante o autor. “Ainda que estivesse proibido, o casamento gay desenvolveu-se como ritual comum na década de 70 em igrejas e sinagogas um pouco por todo o país, tornando-se símbolo dessa nova cultura dos gays americanos” (p. 47).
Esta faceta terá sido esquecida pelos primeiros historiadores e escritores que se debruçaram sobre aquele período porque, de acordo com Down, muitos provinham da esquerda e olhavam a religião como fonte de opressão das minorias sexuais.
Ao dar outros exemplos de actividades artísticas e jornalísticas, actos militantes e acontecimentos públicos organizados por gays e lésbicas, o autor pretende demonstrar a tese de partida. No caso da livraria Oscar Wilde Memorial, a que dedica o capítulo 3, fica-se a conhecer um episódio curioso (p.74). Por algum tempo, o fundador da livraria, Craig Rodwell, namorou um homem que conhecera junto ao Central Park, tendo a relação acabado quando este descobriu que Rodwell o tinha contagiado com gonorreia, o que significava que a relação não era monogâmica. O homem trabalhava em Wall Street e tinha uma ideologia conservadora. Chamava-se Harvey Milk. Depois da separação, Milk foi viver para São Francisco, tornou-se activista, passou a pensar à esquerda e tornou-se um dos principais líderes do movimento LGBT norte-americano (Gus van Sant dedicou-lhe o filme biográfico “Milk”, em 2008).
O autor reforça: se hoje temos ideia de que os homossexuais estão em constante protesto, em manifestações e militâncias contra o Estado, um olhar cuidadoso sobre o que se passou há mais de 40 anos demonstra que “muitos gays procuravam sentido comunitário e um discurso cultural próprio, mais do que direitos legais ou reconhecimento político” (p.14).
Muito circunstanciado, com datas, nomes e locais, Stand by Me acaba por cair na repetição de ideias, às vezes com frases idênticas num mesmo capítulo. Tenha sido falha da edição ou escolha deliberada, é desnecessário, porque repisar argumentos resulta bem no discurso oral, não no escrito.
Outros dois pequenos problemas: um formal, outro de conteúdo. Primeiro, a inclusão de notas no fim do livro, e não em rodapé, como se fosse boa a experiência de interromper a leitura para consultar notas que se estendem por 40 páginas. Segundo, o autor refere, de passagem, que até àquela década a Biblioteca do Congresso (a biblioteca nacional dos EUA) catalogava o tema “homossexualidade” sob a categoria “crimininalidade e anomalias clínicas” (p. 69), mas parece ter esquecido a retirada da homossexualidade do catálogo de doenças mentais da Associação Americana de Psiquiatria, em 1973, o que constitui uma das mais importantes mudanças de paradigma nesta matéria e ajuda a explicar a força que o movimento LGBT então ganhou.
Se em Portugal o discurso sobre os homossexuais e outras minorias sexuais e de género tende a ser pobre em pluralismo, circunscrevendo-se, mesmo com a internet, a uma ou duas correntes de opinião semelhantes e prescritivas, nos EUA são incontáveis as vozes e os contributos para uma debate democrático, com vivacidade de argumentos e pontos de vista. Stand by Me é um bom exemplo dessa realidade que ainda nos é tão distante.  


sexta-feira, 15 de julho de 2016

Pescador da barca bela


Pescador com rede, 1868, do impressionista francês Frédéric Bazille



BARCA BELA

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador!

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!

Almeida Garrett

domingo, 10 de julho de 2016

Abdellah Taïa

“O que está a acontecer com os homossexuais é uma espécie de armadilha”


“Tenho 42 anos e ainda não encontrei um lugar onde me sinta totalmente eu”, diz o escritor e cineasta Abdellah Taïa, um dos primeiros intelectuais marroquinos a assumir a sua homossexualidade e a ter de se exilar por isso. Ocidente e mundo árabe, acusa, estão a usar os gays num jogo perigoso.

"Quando se é gay aprende-se rapidamente a arte de esconder. Tornamo-nos especialistas. O que dizer, o que não dizer. A autenticidade passa um pouco por tentar responder à pergunta: como ser um bom mentiroso, como ser bom a esconder? Tenho muita dificuldade em lidar com estes sentimentos em sociedade. Na escrita, faço-o sem problemas. Esconder ou mentir são outra coisa. Na escrita se nos escondermos não seremos felizes. É uma felicidade diferente. É uma verdade diferente.”
A voz e a imagem de Abdellah Taïa são a de um rapaz pouco mais do que adolescente. Sentado numa cadeira no centro de um pequeno anfiteatro na Bowery, em Nova Iorque, fala do que é crescer e ser homossexual no mundo muçulmano, ter de fugir para se assumir, e escrever, filmar e pensar sobre isso em Paris, longe da recriminação sexual mas próximo do preconceito relativo à condição árabe. “No mundo em que vivemos ninguém é inocente, mas todos querem parecer e gritar que são”, diz agora via Skype, na ressaca do atentado de Orlando, do choque e da reflexão. Justamente no dia em que assina um artigo no Libération acusando os políticos árabes de não terem sido suficientemente veementes a condenar o ataque, e o Ocidente de ter tido um “discurso mais do que ambíguo” em relação ao mesmo. Deu-lhe o título de “Orlando, um silêncio não muito gay”.
Abdellah Taïa, 42 anos, escritor, autor de oito romances, realizador de cinema, tenta romper o que chama de coro de clichés e justificações simplistas para qualificar o que aconteceu a 12 de Junho, um domingo, na discoteca Pulse. “Os homossexuais estão muito sós. Eu sou marroquino, muçulmano, homossexual, vivo em Paris e senti-me muito só no domingo. Aterrorizado e só”, escreveu no Libération, uma frase que fez ecoar uma história que contara antes, em Nova Iorque, enquanto convidado da última edição do festival Pen America, no final de Abril. “Ser oficialmente homossexual em Marrocos é um pesadelo, mas o que se passa no submundo é tremendo. Agora estou em Paris e sou um objecto sexual para muita gente e, muitas vezes no coração do universo gay, vejo franceses a terem fantasias comigo que remetem para o século XIX, de uma subserviência árabe”, disse num debate sobre o "outro ficcional", ou seja, o modo como a escrita enforma uma identidade e a transforma em personagem literária. 
É a escrita sobre a estranheza e a fronteira entre o íntimo e o público ou político, feita a partir do reconhecimento de que se é diferente — olhado como tal — no meio onde se vive. Além de Abdellah, participaram nessa conversa os escritores Saleem Haddad, também gay, de múltiplas origens — palestiniana, libanesa, iraquiana e alemã — e o brasileiro Alexandre Vidal Porto, gay, diplomata e autor de Sergio Y, um romance que está a ser muito bem acolhido nos Estados Unidos e em que o protagonista é transexual. Entre os três, Adbellah era o único na condição de exilado. Foi, aliás, um dos primeiros intelectuais marroquinos a assumir publicamente a sua homossexualidade. “Todos tivemos de mudar e inventar um sentido de possibilidade, de classe social ou um passado. Em todos nós houve uma deslocação que pode ter correspondido a uma passagem de fronteira física de modo a conseguirmos sair de uma identidade ficcional de que éramos prisioneiros”, disse também então Adbellah, sobre a tal mentira que veio da necessidade de esconder o real tornando-o ficção.
Estamos em território ambíguo entre biografia e literatura de que nenhum dos três saiu, mas que em Adbellah surge particularmente marcado pela forma como a sua voz biográfica se mistura com a narrativa. Não sabe escrever a não ser na primeira pessoa. “Para mim a literatura é sobre a voz. Não consigo escrever na terceira pessoa, preciso de ouvir uma voz e não me pode ser estranha”, comentou em Nova Iorque, outra vez sobre o modo como a biografia se impõe, pelo menos enquanto ponto de partida. “Isso tem a ver com a minha definição de literatura, começar com alguma coisa que é muito concreta, real, e tentar a partir daí atingir o céu.”

Adbellah Taïa cresceu em Salé, a noroeste de Rabat, a capital, numa família pobre. “O francês era falado entre os ricos, em casa falava-se árabe, viam-se filmes egípcios, eu imitava-os e dava os papéis de protagonistas às minhas irmãs. Gostava daquele mundo de imagens e nunca sonhei ser escritor. Hoje escrevo em francês, mas o que sei sobre a vida é na minha primeira língua, o árabe. Gritar tem de ser em árabe. Acho que aprender francês foi uma decisão política para mim. Não se escapa da primeira experiência.” E nesse início havia a voz da tia a contar histórias. Foi nela que se inspirou para escrever Les Infidèles, finalista do Prémio Femina em 2012. “Era uma prostituta profissional. Começou a prostituir-se para ganhar dinheiro para levar comida aos irmãos e por isso eles nunca a expulsaram de casa. Viveu connosco até morrer e contava histórias à noite, quando as luzes se apagavam”, lembra. Histórias repetidas que fizeram da ideia mitológia da oralidade árabe um dado concreto da infância de Abdellah. Afirma que essa voz o formou, encontra o eco dela na sua, de escritor, e terá estado, por exemplo, na história de um rapaz de 13 anos, vítima de abuso sexual na terra onde vive.

Entre estigmas

Publicada em 2011 nas páginas do diário norte-americano The New York Times, a história nasceu da raiva. “Eu estava muito zangado. Vivi com as minhas irmãs experiências tão extremas. Perda, fome… Aos 13 anos a minha família pediu-me para que eu fosse o homem da casa e a vizinhança queria que eu fosse o objecto sexual, aquele que iam violar sempre que lhes apetecesse. Eu estava tão revoltado.” A voz sai num tom calmo, mas firme, um inglês com sotaque entre o árabe e o francês. A sala está em silêncio, só quebrado quando Abdellah tempera a tragédia com humor. “Eu não me sentia estranho. Sentia que não era justo. Eu dava tanto e eles queriam mais ou matavam-me. Eu queria ir embora. Lembro-me de nessa altura ter vontade de chorar; vivia num casa pequena com 11 pessoas e não havia sítio para onde ir e chorar em paz. Quando essas coisas aconteciam, eu saía de casa e deambulava. Para mim, Paris é a continuação desse deambular.”
Abdellah Taïa chegou a França com 25 anos. Queria ser realizador de cinema. “Acho que esse sonho era também a perseguição de uma vontade antiga de viver num lugar onde eu pudesse ser eu; onde pudesse ser livre e lutar por alguma coisa. Consegui isso mas, ao mesmo tempo, em França sou visto todos os dias como um árabe e tenho de lutar contra essa nova prisão em que esta sociedade me colocou: a dos árabes e do estigma que isso comporta. Por isso não posso dizer que o Ocidente é o lugar onde podemos ser totalmente livres. Há leis e direitos que protegem os indivíduos, mas há políticas e agendas e discursos que dizem o oposto”, refere já no pós-Orlando, em conversa via Skype, a mesma voz, o mesmo sotaque, igual determinação. “O que pode fazer alguém como eu? Antes de mais, porque não há muita gente que possa falar no mundo muçulmano, especialmente quando se é gay, tenho de ter muito cuidado com o que digo. Não quero aparecer como aquele que tem razão. A minha família continua totalmente controlada pelo poder de Marrocos que é composto por pessoas que não entendem o mundo. Tenho de analisar as coisas politicamente de um modo muito cuidadoso. Nessa conversa em Nova Iorque foi para mim muito fácil dizer que agora sou livre em Paris e que as outras pessoas não querem liberdade. Isso não é verdade. Não são eles que não querem liberdade. As pessoas que estão a dirigir o país não querem sequer que as pessoas possam pensar que podem conquistar a liberdade. Estão politicamente controladas.”
As palavras de Abdellah Taïa remetem para o artigo do Libération onde chama a atenção para a responsabilidade dos que têm voz, como ele. “A causa homossexual vai ser explorada, daqui para a frente, de uma maneira simplista nos debates pelos espíritos mais conservadores, os mais populistas, os meios assumidamente xenófobos. […] Limitamo-nos, nestes casos, a definições estreitas. Os direitos das minorias parecem muitos frágeis por estes dias […] face a grades ameaças.” É mais uma vez o sublinhar de que não há inocentes. “Não posso dizer que o islão é o problema e o Ocidente a solução. O Ocidente não é de modo algum inocente. O racismo e a xenofobia são fenómenos muito complexos. Em França, na Holanda, na Suécia vemos reacções racistas em relação a pessoas que estão a passar necessidades e isso parece completamente normal. Ao mesmo tempo os dirigente dos países muçulmanos não alteram as coisas em relação à liberdade individual”, diz ao PÚBLICO o autor, repetindo perguntas, problematizando um assunto que não tem, para já, “respostas imediatas como muito querem fazer crer”. Perguntas como: Quem diz a verdade? Quem manipula quem? Quem vai impedir este mundo de explodir nesta luta pela verdade? Quem vai salvar os homossexuais nos países árabes e muçulmanos? Quem os vai ajudar a emanciparem-se, sinceramente e longe de todo o neocolonialismo? A questão, diz Abdellah, não é religiosa como Ocidente e Oriente querem fazer crer de acordo com conveniências muito próprias.
“Não posso generalizar, não seria nem moralmente correcto fazer isso. É verdade que a religião continua a ser muito importante no mundo árabe e muçulmano porque é usada politicamente pelos dirigentes desses países. Se o islão é contra a homossexualidade, o cristianismo e o judaísmo também são. Mas é muito mais do que isso. Hoje na América há padres evangelistas e políticos republicanos a dizer coisas odiosas contra os homossexuais. Não estou a defender o islão. Estou a tentar pensar com alguma clareza. Não é por causa do islão enquanto religião. O islão é como outra religião. É por causa de quem usa a religião para permanecer no poder e dominar o outro. Não devemos esquecer do que não está assim tão distante - no início do século XX a homossexualidade era considerada uma doença no Ocidente. E também não estou aqui a proteger o mundo islâmico. O mundo islâmico tem de ter fazer autocrítica e de mudar. O que está a acontecer agora aos homossexuais é uma espécie de armadilha.” É por isso que escreve: “No domingo [dia 12 de Junho], o desespero atingiu um novo patamar. Num site marroquino li os comentários a artigos sobre a matança de Orlando. Oitenta por cento estavam repletos de ódio, de violência e de justificações pseudo-religiosas. Num sitefrancês, os comentários estavam cheios de cólera quando falavam dos árabes e dos muçulmanos, recheados de erros, de uma ignorância abissal e de racismo assumido. Claro que há neste mundo os que acreditam que a esperança se deve manter viva — eu faço parte desses idiotas.”