quarta-feira, 26 de abril de 2017

Como as pessoas mais inteligentes lidam com as pessoas tóxicas




Porque as pessoas tóxicas estão em todo o lado e têm um impacto negativo em quem as rodeia, um especialista em inteligência emocional partilha 10 dicas para lidar com elas

Num artigo publicado no The Huffington Post, Travis Bradberry, co-autor do livro Inteligência Emocional 2.0 e presidente da TalentSmart, uma empresa que se dedica ao fornecimento de serviços e produtos relacionados com a inteligência emocional, começa esclarecer que "as pessoas tóxicas desafiam a lógica". Umas nem se apercebem do impacto negativo que têm à sua volta, outras tiram prazer do caos e desconforto que semeiam à sua passagem, mas em qualquer dos casos, a conta é pesada para os que convivem com elas. Travis Bradberry lembra que apenas uns dias de stress são suficientes para "comprometer a eficácia dos neurónios no hipocampo - uma área do cérebro importante, responsável pelo raciocínio e pela memória".
Um estudo recente, reforça o especialista, demonstra que a exposição a estímulos que provoquem emoções negativas fortes - como lidar com pessoas tóxicas ( e entre as formas de toxicidade, Bradberry destaca a negatividade, a crueldade, a vitimização ou a "simples loucura") - leva o cérebro a uma resposta de stress massiva.
A TalentSmart fez uma investigação que envolveu mais de um milhão de pessoas e concluiu que 90% das que apresentavam melhor desempenho conseguiam dominar as suas emoções durante momentos de stress e tinham a capacidade de "neutralizar" as pessoas difíceis. Como? É o que se segue:
1 - Estabelecem limites
As pessoas que passam a vida a queixar-se e que são negativas focam-se nos problemas e não nas soluções e querem arrastar os outros para essa sua forma de estar. Os que as rodeiam sentem-se no dever de as ouvir para não parecerem mal educados, mas há uma linha entre o ouvir e o ficar enredado numa espiral emocional negativa. Estabeleça limites e distancie-se quando necessário. E pode sempre perguntar-lhes diretamente o que tencionam fazer para resolver o problema de que tanto se queixam...
2 - Saem do jogo
As pessoas tóxicas fazem as outras sentir que estão a enlouquecer porque o seu comportamento é irracional. O segredo é não se deixar arrastar e entrar na mesma linha. "Não tente vencê-los nos seu próprio jogo", alerta o especialista.
3 - Têm consciência das suas emoções
Manter uma distância emocional exige ter consciência. Não se consegue impedir alguém de mexer connosco se não nos apercebermos do que está a acontecer.
4 - Não gastam as energias todas de uma vez
As pessoas emocionalmente inteligentes sabem que o dia seguinte é crucial quando se lida com uma pessoa tóxica. Enterrar emoções só vai fazer esgotar todas as energias, daí o ser necessário conhecer e responder às próprias emoções para escolher sensatamente as "batalhas" a travar.
5 - Não se focam nos problemas, mas nas soluções
O foco da atenção determina o estado emocional. Quando alguém se foca nos problemas, prolonga-se o estado emocional negativo e o stress. Quando o foco, por outro lado, é na ação, cria-se uma sensação de "eficácia pessoal" que, por sua vez, leva a emoções positivas. Pensamentos fixos no quão "loucas" ou "difíceis" são as pessoas tóxicas também só lhes dá mais poder e não resolve nada. Foque-se, em vez disso, em como lidar com elas.
6 - Não esquecem
As pessoas emocionalmente inteligentes perdoam rapidamente, mas isso não quer dizer que esqueçam. Perdoar, sublinha Travis Bradberry, implica seguir em frente, mas de forma a não repetir a mesma experiência.
7 - Não absorvem a negatividade
É natural alguém sentir-se mal com a forma como os outros o tratam, mas cabe ao próprio intensificar essa negatividade ou seguir em frente.
8 - Dormem
Quando dormimos, o cérebro recarrega as energias. Quando não dormimos o suficiente, o auto-controlo, a atenção e a memória diminuem, enquanto aumentam os níveis das hormonas ligadas ao stress. Uma boa noite de sono torna-nos mais positivos, criativos e proativos na aproximação às pessoas tóxicas.
9 - Procuram ajuda
Falar com alguém ajuda a pôr as coisas em perspetiva e, muitas vezes, do diálogo surge uma solução que não se conseguia ver devido ao envolvimento emocional.
10 - Juntar todos os pontos anteriores
Antes de conseguir ter este sistema a funcionar a 100%, vai ter de passar alguns testes. "Felizmente, a plasticidade do cérebro permite-lhe moldar-se e mudar à medida que adota novos comportamentos, mesmo quando você falha", conclui o artigo.

http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/2017-04-24-Como-as-pessoas-mais-inteligentes-lidam-com-as-pessoas-toxicas

terça-feira, 25 de abril de 2017

Ólafur Arnalds, Alice Sara Ott - Reminiscence







From upcoming album The Chopin Project
Based on Nocturne in C# Minor by Frederic Chopin

Director : Magnús Leifsson
Producer : Thorsteinn Magnusson
Cinematographer : Árni Filippusson
Editor : Sigurður Eyþórsson
Colorist : Daði Jónsson

Actors in Order of Appearance:
Hafþór Júlíus Björnsson (‘The Mountain’ as featured in Game Of Thrones), Þórhallur Sigurðsson, Þormóður Árni Jónsson.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Chechénia - campo de concentração para gays





SE SÃO GAYS NÃO SOMOS NÓS

Passado mais de meio século sobre a segunda guerra mundial, foi revelada a existência de campos de concentração para homens gay na Tchetchénia. Tivemos acesso a relatos macabros por parte de quem sobrevive a um regime que tem os gays como impuros, que os quer eliminar, diretamente ou incumbindo a sociedade e as suas famílias de o fazerem.

A ver se nos entendemos: demorou demasiado tempo para que fosse reconhecido o que o nazismo fez aos homossexuais (porque a homossexualidade era considerada uma patologia, certo?) e em 2017 somos confrontados com uma monstruosidade contemporânea sem grandes consequências.

Com base em discursos de base religiosa, moral e nacionalista, Putin e outros de sua espécie justificam a perseguição da “impureza”, por isso já sabíamos da “lei que proíbe a propaganda homossexual” de Putin, e agora somos bombardeados com um campo para espancar, torturar e eletrocutar gays.

A falta de empatia relativamente à violação dos direitos humanos das pessoas LGBT é gritante. É sempre assim e continua a ser assim mesmo quando a notícia é, repito, a existência de campos de concentração para homens gay na Tchetchénia.

Aquando do ataque terrorista homofóbico ao clube “Pulse”, em junho de 2016, foi chocante ver como efetivamente se abriu um “debate” sobre se deveria referir o facto como um ataque homofóbico e não “simplesmente” como um ato de terrorismo. “São pessoas, para quê frisar que a discoteca era uma discoteca LGBT”? Isto era dito por várias almas, sem empatia alguma pela evidência de se ter tratado de um ataque movido pela homofobia, mesmo que nem todas as pessoas que estavam na discoteca fossem lésbicas ou gays. Claro que essas mesmas pessoas não hesitam em chamar as coisas pelos nomes se uma igreja católica ou uma mesquita for alvo de um ataque terrorista. Nesses casos, o ataque é definido, e bem, como sendo feito às comunidades em causa, mas nesses casos, claro.

Sabemos da existência de campos de concentração para homens gay na Tchetchénia, há uma manifestação em Lisboa em frente à Embaixada da Rússia quase sem imprensa presente, nenhum telejornal tem início neste horror e os líderes nacionais, europeus, a UE e o SG da ONU estão calados.

São gays, não se trata de um grupo étnico, não fomos alarmados pela notícia de um campo de concentração para outra categoria de pessoas, por isso não há empatia, são gays, ninguém está de acordo com as perseguições e com o campo de concentração, mas daí a reagir vai toda uma cultura de adesão total à consideração de que as pessoas LGBT são vítimas históricas e nenhum direito conferido ao resto da população lhes pode ser negado.

Se são gays não somos nós, não é?

O caminho para essa empatia é longo, o silêncio é cúmplice, a vergonha alheia é enorme.

Isabel Moreira, Expresso, 22-04-2017

 






DENÚNCIAS DE DETENÇÃO, TORTURA E ASSASSÍNIO DE GAYS

Na Chechénia os homens temem ligar aos amigos para saber onde é que eles estão 

Duas semanas depois de ter sido denunciada a existência de um centro extrajudicial para deter, torturar e matar homossexuais na república da federação russa, o “Novaya Gazeta” teme pela vida dos jornalistas que expuseram  o caso e o governo de Vladimir Putin continua alinhado com o do seu fiel seguidor checheno, Ramzan Kadyrov 

Texto Joana Azevedo Viana
 

Vamos seguir o exemplo de um site australiano e inaugurar este artigo com um aviso prévio: seguem-se descrições gráficas violentas sobre o que está a passar-se num canto remoto da Rússia chamado Chechénia, onde a homossexualidade não é proibida por lei mas onde as autoridades responsáveis por aplicar a lei são acusadas de estarem a torturar e a assassinar homens gay com total impunidade.

A notícia surgiu há duas semanas pela mão do “Novaya Gazeta”. Na própria manchete, o jornal russo dedicado a investigar violações de direitos humanos na federação e nos seus territórios também já lançava uma espécie de aviso aos leitores, com um ‘+18’ entre parêntesis por causa do que era descrito. E o que é descrito é a existência de uma espécie de campo de concentração perto de Argun, a 20 quilómetros da cidade de Grozny, a capital, para onde as autoridades da Chechénia já terão levado pelo menos 100 homens a fim de os extorquirem, torturarem e até matarem pelo simples facto de gostarem de outros homens.

O que começou como uma detenção isolada escalou para o que a diretora da Rede LGBT Russa descreve como “uma campanha organizada para deter homens gay” na região de maioria muçulmana que está sob as lides de Ramzan Kadyrov, ex-rebelde separatista hoje extremamente fiel a Vladimir Putin, que é líder de uma milícia privada e presidente da Chechénia desde 2007.

“Não é possível deter e reprimir pessoas que simplesmente não existem na república”, foi como o seu porta-voz, Alvi Karimov, respondeu na semana passada às denúncias, garantindo que os direitos humanos têm gozado de “grandiosas” melhorias na Chechénia. Anteontem, o próprio Kadyrov veio acusar o jornal da oposição russa de executar um “ataque massivo” de contra-informação em que “a realidade é distorcida”, no que classifica como “tentativas de denegrir a nossa sociedade, estilo de vida, tradições e costumes”. O Kremlin também se juntou ao desmentido, com o porta-voz do governo russo a dizer há alguns dias que “não há informações fidedignas” que corroborem as alegações.

Para o “Novaya Gazeta” há e, depois de ter visto seis jornalistas serem assassinados desde 2001 por causa de investigações incómodas para o governo de Putin e seus aliados, o jornal diz temer agora pela segurança dos que noticiaram a existência deste campo de detenção e tortura, repórteres que estão escondidos desde o dia da publicação. “A repressão em massa na Chechénia tornou-se uma má tradição”, apontava o jornal no artigo de 4 de abril. “A cada momento, esta repressão torna-se mais catastrófica em escala e cada vez mais absurda no seu raciocínio.”

Apesar de não ser proibida por lei na república da federação russa, a homossexualidade nunca foi bem aceite na Chechénia, onde há anos se acumulam denúncias dos chamados “crimes de honra”, em que são as próprias famílias de pessoas gay a matá-los. Agora, e segundo a investigação, a prática entrou no campo oficial, depois de em fevereiro a polícia chechena ter detido um homem suspeito de estar sob a influência de drogas e ter descoberto no seu telemóvel fotografias e vídeos sexuais explícitos e “dezenas de contactos de homossexuais da localidade”, uma “base de dados” que, segundo o “Novaya Gazeta”, gerou “a primeira vaga de detenções e execuções”.

Desde então, as autoridades têm estado a fazer buscas a casas privadas e locais de trabalho de homens suspeitos de gostarem de outros homens, de homens cujos contactos constavam da lista telefónica do primeiro detido e dos que se lhe seguiram e até daqueles que, sendo amigos dos desaparecidos, tentam contactá-los para saberem o que se passa. O jornal e a Rede LGBT Russa aponta que, no local para onde os levam, são vítimas de extorsão e tortura, eletrocutados, obrigados a enfiar garrafas de vidro nos ânus e, em última instância, mortos — até agora há registos de pelos menos três execuções.

“Confirmamos o que o ‘Novaya Gazeta’ noticiou”, disse à BBC Natalia Poplevskaya, diretora da ONG com sede em São Petersburgo, que continua sem obter reações da procuradoria-geral russa, da Comissão Federal de Investigação e da comissária para os Direitos Humanos. “Não obtivemos respostas, apesar de todas as tentativas. A única coisa que a relatora russa disse que foi que iam iniciar uma investigação. Isto só depois de a Amnistia Internacional apresentar a sua própria queixa. O gabinete do comandante militar é agora o centro de detenção oficioso para as torturas, perto de Argun, todas as vítimas confirmaram isso.” Nas declarações ao canal britânico, Poplevskaya rejeitou a expressão “campo de concentração” que os media têm usado para descrever o centro de detenção extrajudicial.

“Parece abandonado, mas não está”, relata uma das testemunhas entrevistadas pelo “Novaya Gazeta”. “É mais como uma prisão fechada, cuja existência não é oficialmente reconhecida. Muitas vezes por dia éramos levados para sermos espancados. A principal tarefa [dos carrascos] é descobrir a nossa rede de contactos. Eles acham que, se fomos detidos, então é porque todo o nosso círculo de contactos é composto por gays. É por isso que os nossos telefones não estão desligados. Eles estão à espera que alguém mande uma mensagem ou telefone. Qualquer homem que ligue ou envie mensagens recebe uma chamada de volta e é convidado para um encontro sob qualquer pretexto.”

Nos últimos dias têm-se multiplicado os protestos frente às embaixadas russas em várias capitais, com a Austrália, o Canadá, os Estados Unidos e a União Europeia, a par de organizações como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional a exigirem a Moscovo que investigue as alegações. Para já, o Kremlin continua a distanciar-se da situação e, na Chechénia, o líder espiritual dos muçulmanos, o mufti Salah-hajji Mezhiev, já declarou que “Alá vai castigar os que estão a denegrir toda a nação chechena”. Confrontado com a aparente ameaça, o conselho editorial do “Novaya Gazeta” prometeu continuar a denunciar as violações e deixou uma indireta à federação de Putin. “O silêncio e a inação por parte daqueles que têm capacidade para fazer alguma coisa marca-os como cúmplices.”

Expresso, 18-04-2017

 Ativista gay preso em manifestação em Grozny, na Chechênia


quarta-feira, 5 de abril de 2017

Como a Igreja arruinou a vida sexual das Américas com pecado, culpa e preconceito

Índios vestidos de Jean-Baptiste Debret em Santa Catarina, 1834





“Não existe pecado do lado de baixo do Equador”, escreveu o holandês Gaspar Barleu ao se deparar com a libidinagem no Recife do século 17.


Não EXISTIA. A liberdade sexual dos primeiros moradores do Brasil seria logo substituída pela noção de transgressão, pelo pudor excessivo, pelas proibições e pelo preconceito –a homofobia, por exemplo, nascia ali. Em que contribuíram os europeus para a sexualidade das Américas além de nos apresentar à culpa?


Tudo o que era possível trazer para cá, em termos sexuais, já era conhecido entre os nativos: homossexualidade, bissexualidade, transexualidade, bigamia, poligamia. As posições também iam muito além do “papai-e-mamãe” no escuro e sob lençóis dos colonizadores: masturbação mútua, sexo anal, oral, grupal. Sexualmente falando, eram os indígenas os avançados e os homens brancos, os primitivos. Mas foi só chegar a igreja e pronto: a pretexto de civilizar-nos, destruíram milênios de conhecimento autóctone sobre a sexualidade.


As próprias narrativas dos primeiros cronistas são contaminadas pelo puritanismo da época. No México, Hernán Cortés escreveu: “fomos informados de que são todos sodomitas e usam aquele abominável pecado”. O tema da sexualidade, é claro, sofreu censura por parte dos colonizadores, e só recentemente historiadores e arqueólogos têm apresentado descobertas neste campo. Cortés estava bem informado: entre os maias, a homossexualidade era frequente, e uma espécie de rito de passagem da infância para a adolescência (como ocorre, aliás, com tantos homens e mulheres, de forma velada, em todos os tempos).


“Viam no prazer sexual um dom divino, equiparável ao alimento, à alegria, ao vigor vital e ao repouso cotidiano. Era questão de moderar o desfrute daquele presente, como se fazia com qualquer outro bem concedido pelos deuses”, escreveu o antropólogo Alfredo López Austin em um dos artigos da edição especial da revista Arqueologia Mexicana sobre sexualidade entre os maias, em 2010.


A masturbação ritual era praticada por muitos indígenas da América Central como uma maneira de fecundar a terra, considerada “feminina”. As carícias mútuas faziam parte do coito: o homem tocava as partes íntimas da mulher e a mulher tocava o homem. Moderno, não? Tem gente que não faz isso até hoje…


Tudo isso foi documentado em esculturas em pedra e cerâmica que ficaram escondidas, trancafiadas em salas de museu até a metade do século 20. Uma mostra de arte erótica pré-colombiana organizada no México em 1926 foi relegada a um salão secreto durante décadas. Em Uxmal e Chichen Itzá há esculturas dedicadas ao órgão sexual masculino, cujo significado ainda permanece um mistério. Supõe-se que os falos gigantescos simbolizavam a fertilidade e eram objeto de culto. 


 


No Peru, só em 1957 foi aberta a sala onde ficavam escondidas as cerâmicas eróticas pré-colombianas do Museu Nacional de Antropologia. Veio a público então uma impressionante série de cerâmicas da cultura mochica, anterior aos incas, representando atos sexuais de forma explícita, em posições que fariam corar ainda hoje em dia algumas senhoras de Santana da renascida direita tupiniquim. Algumas delas podem ser apreciadas no Museu Larco, em Lima.



Cerâmicas do museu Larco, em Lima: sexo oral




masturbação mútua



sexo anal



Na América protestante a repressão não foi diferente. Muito igualitária, a sociedade Cherokee dava às mulheres postos semelhantes aos dos homens; elas podiam integrar o conselho da tribo e ser guerreiras. O adultério era permitido a ambos os sexos, sem punição, assim como o divórcio: bastava a mulher colocar os pertences do homem para fora da casa.


Havia ainda os transgêneros, encontrados em mais de 150 tribos norte-americanas. Chamados de Two-Spirit (“dois espíritos”) ou “berdaches”, eram homens que gostavam de estar entre as mulheres, fazer as coisas que elas faziam e vestir-se como elas. Ou o contrário: mulheres que gostavam de se vestir como homens. Os primeiros relatos de colonizadores sobre os Two-Spirit aparecem já no século 16. O preconceito contra eles só vai surgir mais tarde, por influência do homem branco. A partir daí, eles passam a ser rejeitados por suas tribos e são marginalizados.


 
We-Wa, uma “dois espíritos” do povo Zuni, do Novo México, EUA, em 1907. Foto: John K. Hillers
 


Na América católica, a “Santa” Inquisição foi convocada para reprimir sexualmente os nativos, coibindo “delitos” como a bigamia ou a sodomia, embora fossem práticas permitidas em algumas culturas indígenas. No México, conta-se do índio Ángel Porecu, de Michoacán, punido por bigamia com cem chibatadas. No Brasil, um projeto da Universidade Federal do Pará rastreou os casos de naturais da Amazônia, entre eles indígenas, enviados aos tribunais do “Santo” Ofício em Lisboa por “crimes” similares.


Foi o caso da índia Florência Perpétua, de 28 anos, acusada de bigamia em 1766, levada a Portugal e condenada à prisão, após a qual foi solta e admoestada a viver com o primeiro marido. A sodomia (prática de sexo anal) também era razão para julgamento e punição pela Inquisição, mas apenas a masculina. “A sodomia feminina não era alvo da Inquisição porque não havia o derramamento de sêmen, considerado pecado. A masculina era considerada bestialismo”, explica o historiador Antonio Otaviano Vieira Jr., coordenador do trabalho.



 
Tribunal da Inquisição no México


A ordem era vestir as índias, cobrir o que foi olhado com tanto espanto e deleite pelos primeiros exploradores. “Desde o início da colonização lutou-se contra a nudez e aquilo que ela simbolizava. Os padres jesuítas, por exemplo, mandavam buscar tecidos de algodão, em Portugal, para vestir as crianças indígenas que frequentavam suas escolas. ‘Mandem pano para que se vistam’, pedia padre Manuel da Nóbrega em carta a seus superiores”, escreve Mary del Priore no livro Histórias Íntimas. “Aos olhos dos colonizadores, a nudez do índio era semelhante à dos animais; afinal, como as bestas, ele não tinha vergonha ou pudor natural. Vesti-lo era afastá-lo do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas duramente combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, as indígenas não se negavam a ninguém.”


Enquanto fora de casa o homem se divertia, dentro do casamento era um pudor só. “Até para ter relações sexuais as pessoas não se despiam. As mulheres levantavam as saias ou as camisas e os homens abaixavam as calças e ceroulas. Mesmo nos processos de sedução e defloramento que guardam nossos arquivos, vê-se que os amantes não tiravam a roupa durante o ato”, lembra Mary.


A sexualidade dos índios no Brasil é ainda hoje pouco estudada. Há alguns relatos de cronistas, como o de Gabriel Soares de Sousa entre os tupinambás, na caliente Bahia do século 16. “São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam”, escreve Gabriel no Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Segundo ele, os índios não só transavam muito como gostavam, homens e mulheres, de falar sobre sexo desavergonhadamente.


Havia homossexualidade e o adultério era permitido também às mulheres, que seduziam amigas para o leito conjugal. “As que querem bem aos maridos, pelos contentarem, buscam-lhes moças com que eles se desenfadem, as quais lhe levam à rede onde dormem, onde lhes pedem muito que se queira deitar com os maridos, e as peitam para isso; cousa que não faz nenhuma nação de gente, senão estes bárbaros”, constata, não sem uma pontinha de inveja, nosso cronista.


As mulheres mais velhas, por sua vez, “desestimadas dos homens”, tratavam de iniciar sexualmente os meninos: “ensinam-lhes a fazer o que eles não sabem”. E os insatisfeitos com o tamanho do membro nada de novo sob o sol “costumam pôr o pelo de um bicho tão peçonhento, que lho faz logo inchar, com o que têm grandes dores, mais de seis meses, que se lhe vão gastando por espaço de tempo; com o que se lhe faz o seu cano tão disforme de grosso que os não podem as mulheres esperar”.


“O esforço no sentido de fazer prosperar na colônia estrita monogamia teve que ser tremendo”, escreveu Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala. O pernambucano, que assumia com tranquilidade suas experiências homossexuais na juventude, prestou atenção nas práticas entre o mesmo sexo e na bissexualidade, que não eram incomuns entre os indígenas brasileiros e tampouco eram práticas condenadas. Pelo contrário, os homossexuais eram bem-vistos e tinham relevância na comunidade. Freyre supõe que a função de curandeiro das tribos, não só brasileiras como as demais do continente, fosse destinada aos gays. Também se afirma isso sobre os Two-Spirit, que seriam os xamãs da América do Norte.


 
O Feiticeiro, gravura de John White, em 1585, na cidade indígena de Pomeiooc, atual Carolina do Norte, EUA


“Quanto aos pajés, é provável que fossem daquele tipo de homens efeminados ou invertidos que a maior parte dos indígenas da América antes respeitavam e temiam do que desprezavam ou abominavam”, defende Freyre. “Uns, efeminados pela idade avançada, que tende a masculinizar certas mulheres e a efeminar certos homens; outros, talvez, por perversão congênita ou adquirida. A verdade é que para as mãos de indivíduos bissexuais ou bissexualizados pela idade resvalavam em geral os poderes e funções de místicos, de curandeiros, pajés, conselheiros, entre várias tribos americanas.”


Entrevistei o antropólogo Estevão Fernandes, professor da Universidade de Rondônia, que estuda a homossexualidade indígena.


Socialista Morena – Era frequente a homossexualidade entre os índios brasileiros? Ou depende da etnia?


Estevão Fernandes – Não apenas “era”, como é, algo normal. Um grande desafio no tocante aos indígenas homossexuais em várias terras indígenas do País é o de romperem com uma imagem que se tem, no Brasil, de que os povos indígenas sejam coletividades paradas no tempo. Isso faz com que indígenas cujas sexualidades não se enquadram no modelo hegemônico sejam vistos como “perdendo sua cultura” ou “gays por causa do contato com os brancos”, gerando preconceito, inclusive, em suas próprias aldeias –muitas vezes devido ao contato com os não-índios, com igrejas diversas, por meio da mídia. A perspectiva de que estas sexualidades eram abjetas chegou com a colonização, com a imposição de padrões ocidentais de sexo, gênero, família, pela necessidade do colonizador de se organizar o trabalho, o espaço e o tempo nas aldeias. Assim, os homens deveriam se vestir como homens, trabalhar onde os homens trabalham, ter nome de homem, e se comportar como os homens se comportam; idem com relação às mulheres. Os indígenas que não se enquadravam nesta perspectiva (r)estrita de dimorfismo sexual e heteronormatividade eram castigados –há relatos, por exemplo, de execuções, cortes de cabelo forçados, castigos físicos, etc., levados a cabo pelos colonizadores, não pelos indígenas. Neste sentido, a heteronormatividade e o preconceito são parte integrante da colonização, mas não das formas pelas quais os indígenas lidavam com essas práticas. Temos fontes que situam práticas queer entre povos indígenas no Brasil desde, pelo menos, meados do século XVI e em diversas etnias e povos indígenas do país, sem que houvesse qualquer tipo de preconceito ou exclusão destes indivíduos em suas aldeias.


– Só há relatos de homossexualidade masculina ou feminina também?


– Tanto uma quanto outra (ainda que as fontes sejam mais frequentes no tocante ao sexo entre homens, reflexo da perspectiva viricentrada e patriarcal quase sempre assumida pelos observadores).


– Gilberto Freyre propõe que muitos dos pajés eram homossexuais. Será verdade?


– No Brasil há poucos dados sobre isso, ainda que existam. Isto talvez explique a perseguição que os homo e bissexuais sofreram ao longo da colonização. Há vários relatos na literatura que nos permitem afirmar que havia (e talvez ainda haja), entre povos ameríndios, o ponto de vista que relaciona homo/bi/transexualidade ao potencial sagrado, como mostram os Two-Spirit nos Estados Unidos e Canadá. Também há o caso dxs Muxes, no México, que apontam não apenas para esse importante papel religioso, mas também político e social desempenhado por esses indivíduos.


– A sexualidade indígena é um assunto muito pouco estudado no Brasil. Por quê? Qual a principal dificuldade em pesquisar este campo?


– Ainda é, embora venham surgindo boas pesquisas a este respeito. Uma das hipóteses é, talvez, a própria resistência que algumas lideranças indígenas têm em tocar no assunto, por temerem o preconceito em relação às suas comunidades… Outra é a relativamente pouca penetração de ideias como as teorias queer na academia brasileira. Neste sentido, um grande desafio é trazer o queer para uma discussão mais próxima da etnologia indígena e da crítica às práticas coloniais, administrativas e políticas empregadas junto aos povos indígenas. Por outro lado, fico feliz em ver que alguns e algumas indígenas já se mobilizam em suas comunidades para pensar estas questões, inclusive trazendo estas reflexões para a própria academia –um exemplo é o texto Sexual Modernity in Amazonia, escrito em coautoria com uma indígena Tikuna, aluna da UFAM (Universidade Federal do Amazonas).


– Os relatos dos primeiros cronistas sobre sexualidade eram sempre permeados de julgamentos e preconceitos. Há alguma exceção? Algum cronista foi mais, digamos, permissivo?


– Até onde pude observar, não há exceções… Quase sempre o enquadramento a partir do qual a sexualidade indígena é vista reflete as perspectivas e preconceitos do observador… No tocante aos missionários e cronistas é ainda mais evidente como a sexualidade era vista, junto com a poligamia e a antropofagia, como prova da necessidade de se converter –quase sempre pelo uso do medo– os indígenas.


***


Talvez a própria imagem do indígena como “inocente” ou “assexuado” tenha sido útil à Igreja para disseminar suas teorias sobre céu e inferno. A analogia com Adão e Eva era perfeita: nus, no “Paraíso”, os “inocentes” foram tentados pela serpente do “pecado”. Era preciso fazê-los sentir-se mal em relação a algo natural e convertê-los à “fé”. E assim morria, no “descobrimento”, a genuína sexualidade das Américas. Mas o pecado, Barleu tinha razão, não está mesmo em nosso DNA.


(A presença dos africanos, sobretudo das africanas, modifica a vida sexual dos colonizadores, mas apenas dos homens. Toda esta parte é razão, porém, para outro post.) 


Cynara Menezes, http://www.socialistamorena.com.br/como-a-igreja-arruinou-a-vida-sexual/