quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Homoerotismo na poesia portuguesa - tópicos, temas, palavras-chave

 

Alex Gordenkov, 2022

 

Uma poética do olhar e do desejo

 

Embora a dicção ou a representação do homoerotismo na poesia portuguesa não oriunde necessariamente de um movimento formalizado em termos de expressão, esta tematização parece constituir uma espécie de continuum, uma tradição silenciosa, que nesse caso não é defeito, mas qualidade, a que determinados poetas recorrem e de que se utilizam com alguma recorrência. Para além da simples semelhança temática, há […] uma recorrência a determinadas imagens e recursos que, se não são próprios dessa poesia, parecem engendrar-se como referencial ou recurso comum ao procedimento desses diversos poetas. Assim, cabe enumerar alguns desses vetores, de forma a desenhar essa forma de dizer:

 

a) relação do fazer poético com a experiência do corpo do outro: escrever o poema é antes experimentar um outro corpo igual, desejante e orgástico, é escrever o desejo, como é percetível em Al Berto (A procura de um vento no jardim de Agosto, Salsugem) e Luís Miguel Nava (Películas e Onde à nudez);

 

b) a vida quotidiana, o corriqueiro e o comum da vida elevados à motivação estética

do poema, como se observa particularmente em poemas como "Com halteres e outros instrumentos': de Joaquim Manuel Magalhães, e "Opus 133”, de João Miguel Fernandes Jorge. Neste item podem ser relacionados, ainda, a conversão de factos comuns em metáforas complexas, de forma a estetizar este quotidiano e as vivências homoeróticas nele localizáveis. Da mesma forma, os lugares tradicionais de engate e as formas variadas de aproximação afetivo-sexuais constituem dados de extrema recorrência;

 

c) revisão dos valores próprios da lírica tradicional portuguesa, como por exemplo, a utilização de recursos próprios da cantiga de amigo (As Canções, de Botto), Al Berto (Três Cartas da memória das Índias), "Alba”, de Joaquim Manuel Magalhães; ou mesmo a recorrência às formas tradicionais como a canção e a elegia, em Eugénio de Andrade. Há na poética portuguesa uma relação que parece intrínseca a sua constituição, que é a questão das formas de representação do erótico. Desde as formas tradicionais da medievalidade - cantigas líricas e satíricas -, passando por Camões, Garrett, Cesário e Pessanha, tem-se sempre este índice como um forte traço do poético, podendo se constituir como um vetor que se mantém e que é redimensionado à medida em que um novo valor, como a representação homoerótica, passa também a comparecer no escopo literário de forma mais amiúde nas produções mais recentes.

 

d) constante recurso de referência a outros poetas que tematizam a mesma questão, como em João Miguel Fernandes Jorge (Eugénio de Andrade, Mário de Cesaríny, Jean Genet), Al Berto (Cesariny, Álvaro de Campos, Sá Carneiro);

 

e) construção poética que geralmente perpassa a ordem sensorial, sobretudo o olhar: o enunciador sempre observa a coisa amada, o objeto desejado ou uma situação e relata o efeito dessa visada, que geralmente altera a sua forma de perceber o mundo; o olhar fetichista é o que proporciona a enunciação poética;

 

f) a relação olhar/poema estabelece ainda uma espécie de forma testemunhal, pela qual tanto o enunciador procura representar aquilo que presencia, como também indica um processo de ficcionalização do desejo, como no caso de Sena e Eugénio de Andrade. Nesse caso, o testemunho se auto-rasura, visto que não indica necessariamente a presença do locutor, mas o desejo de estar presente e testemunhar, como se vê, ainda, em Al Berto; é uma forma de pautar o testemunho na ordem do desejo erótico, fazendo-o servir como relato, posterior, de diversas sensações;

 

g) há ainda em poetas como Fernando Pessoa, José Régio, Eugénio de Andrade e Jorge de Sena um procedimento de encenação, uma espécie de redobra do processo de ficcionalização no qual o enunciador, não sendo quem mormente enuncia desejos homoeróticos, precisa fingir o fingimento duplamente, no mesmo sentido aludido por Pessoa;

 

h) esvaziamento do objeto amoroso com relação ao seu gênero gramatical, procedimento recorrente em Eugénio de Andrade, João Miguel Fernandes Jorge, Reinaldo Ferreira, dentre outros. Essa dessubjetivação pode aprioristicamente indicar um desejo pelo feminino, mas, por outro lado, indica a suspensão da anunciação clara em favor do mistério em torno da identidade da coisa amada. Nesse sentido esse "vazio" do género poderia indicar a interdição atinente ao enunciar do desejo por outro homem ou mulher, demarcando a inefabilidade das relações homoeróticas;

 

i) constante recorrência à figura do efebo, aos rapazes e aos homens mais jovens como objetos sobre os quais recaem os desejos ou que precisam ser enunciados na sua beleza, como bem se vê em Botto, Nava (Atrás da página, Há uma pedra feroz). AI Berto (Alguns poemas da rua do Forte), Sena ("Ganimedes”, "Sobre esta praia"), Pessoa ("Antinoo");

 

j) questão escatológica: excrementos. sémen, saliva e suas decorrentes metáforas; no mesmo diapasão, a constante recorrência a um corpo cindido, fragmentado, que muitas vezes se esfacela pelo desejo, como em Nava, ou pela falta dele.

 

“Poesia e (Homo)Erotismo - sobre alguma produção poética portuguesa dos últimos 30 anos”, Emerson da Cruz Inácio. In: Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Ano 12. Número 22 (Jan-Jul/2010). São Carlos: UFSCar, 2010. Revista disponível em: https://issuu.com/revistaolhar/docs/olhar_22_site

 

 

terça-feira, 6 de setembro de 2022

where are you, João Miguel Fernandes Jorge

 

Cody Furguson
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A superfície do barbeado rosto.

Tão plano tão pronto ao where are you

Que pergunto aos meus dedos

Antes de tudo meter num envelope. O outro

Ficou à chuva ficou na cama ao lado ficou

Com a minha escova de dentes

Outra espécie de tortura, mais amarela.

A conjura dessa arte é o meu verdadeiro amor.

 

João Miguel Fernandes Jorge, O regresso dos remadores.
Lisboa: Presença, 1982, p. 73