domingo, 26 de junho de 2011

Rudolf Brazda - como os nazis torturavam os homossexuais





É o último sobrevivente dos 100 mil homossexuais enviados para campos de concentração pelo regime nazi.

Aos 97 anos, é co-autor de um livro sobre a sua vida e foi agora condecorado com a Legião de Honra em França. | Texto: André Barbosa



“Havia sexo entre homens
nos campos de concentração



Foi preso pelos nazis por ser homossexual e obrigado a usar uma farda com um triângulo cor-de-rosa.

Assistiu à execução de outros homens, foi forçado a dormir nu e bateram-lhe até lhe partirem os dentes.







Viu amigos em pilhas de cadáveres, foi humilhado na prisão e agredido por um oficial das SS. Mesmo assim, aos 97 anos, Rudolf Brazda afirma que teve muita sorte e foi feliz.

Está hospitalizado, por causa de uma queda, mas contou com a ajuda de Jean-Luc Schwab, co-autor do livro Itinéraire D'Un Triangle Rose (percurso de um triângulo rosa), para contar à revista SÁBADO, via email, como foi perseguido e detido três vezes pelos nazis por ser homossexual.

No campo de concentração de Buchenwald, escapou à morte com a ajuda de um kapo [capataz] de quem se tornou amigo.

Mesmo no meio da tortura, garante, havia lugar para o amor.

Só há dois anos, depois da morte do companheiro de cinco décadas, ganhou coragem para contar a sua história.

E nunca deixou de gostar do rosa, a cor do triângulo que tinha na farda que usou durante três anos.




(Photo by fellow ex-prisoner, Albert Stüber. From Rudolph's personal collection.)



Antes de a legislação contra os homossexuais ser agravada na Alemanha, em 1935, como é que a sociedade alemã tolerava os gays?
A minha mãe, por exemplo, aceitava muito bem a minha orientação sexual. Até organizei um "almoço de casamento" na casa dela, em Brossen [Leipzig, Alemanha], para celebrar a minha vida em comum com Werner, o meu primeiro amor. Infelizmente, o mesmo não aconteceu com a família dele. A mãe de Werner era católica e não aceitava a nossa relação. Sentia-me muito livre para me abrir sobre a minha sexualidade, antes de ser preso pela primeira vez, em 1937. Nos anos 30, ver dois rapazes a dançarem juntos num baile não era um escândalo.

Quando foi preso, era usado como correio entre amantes.
Na prisão de Altenburg, onde cumpri pena de prisão pela primeira vez, era um kalfaktor [biscateiro]. Isso envolvia, entre outras coisas, servir as refeições aos prisioneiros nas celas e como conhecia alguns deles, pediam-me para passar mensagens. Um dos truques consistia em escrever a mensagem num pequeno pedaço de papel e escondê-la num tubo de pasta de dentes que eu transportava para a cela do destinatário.

Foi humilhado na prisão?
Em Altenburg só fui humilhado uma vez, quando um dos guardas, um rapaz das SS, me gritou porque eu tinha falado demasiado alto no pátio. Disse-me que me iria bater com tanta força que iria rodar seis vezes sobre mim mesmo. Na prisão de Eger, onde cumpri a segunda pena, em 1938, foi mais duro porque o director detestava homossexuais. Antes de a porta da cela ser fechada, ele obrigava-me a deixar a minha roupa no exterior e dormir nu, porque achava que isso refrearia os meus impulsos homossexuais. De todas as pessoas que conheci na prisão, foi a que mais odiei.

Como eram os interrogatórios para apurar a sua sexualidade?
Havia quase sempre apenas um investigador na sala. Eles já tinham recolhido uma série de provas sobre a minha sexualidade, com base em testemunhos e cartas, e eu negava a minha orientação sexual. Depois, confrontavam-me com as provas e eu acabava por confessar. Outra vez, ameaçaram-me com um campo de concentração. Eu ficava tão nervoso quando percebia que eles sabiam mais do que eu pensava, que a confissão era um alívio.

Como era o dia-a-dia no campo de Buchenwald?
Era um campo de trabalhos forçados onde a morte nunca estava longe. Estive em dois kommandos [grupos de trabalho] diferentes: os que faziam a calçada, como quase toda a gente que chegava a Buchenwald, e alguns meses depois juntei-me aos que punham telhas no Bauhof [edifício principal]. Levantávamo-nos muito cedo, lavávamo-nos com água fria e fazíamos uma refeição rápida (pão, margarina e café). Depois faziam a chamada. Por volta das 7h íamos para os locais de trabalho, até à hora de almoço, entre as 11h e o meio-dia. Continuávamos a trabalhar até às 18h e depois reuníamo-nos para mais uma chamada. O jantar era pão e sopa, lavávamo-nos e às 21h tínhamos de estar a dormir.

Os homossexuais eram discriminados na prisão?
Nunca me senti discriminado pelos outros prisioneiros. Era muito mais importante passar despercebido junto dos oficiais das SS. Eles eram muito imprevisíveis e podiam molestar-nos sem razão. O meu kapo [capataz, que decidia se os prisioneiros viviam ou morriam], que era comunista, gostava do meu trabalho e dei-me bem com ele. Se não fosse ele, seria transferido para Dora, um campo muito pior que Buchenwald.

Acha que teve sorte?
Sim. Outro kapo comunista escondeu-me durante os últimos dias no campo, antes de a evacuação começar, e isso salvou-me a vida: muitas das pessoas que iam nas marchas de evacuação não regressavam, porque eram fuziladas. Não tive tanto azar como outros prisioneiros do triângulo rosa, que foram usados como porquinhos-da-índia em experiências médicas.

Havia espaço para amor e sexo?
O campo era como uma prisão enorme, sem mulheres, à excepção de um bordel anexo de acesso limitado a prisioneiros que tinham recompensas. Por isso, havia homens a satisfazerem-se sexualmente com outros homens, principalmente os que estavam física e emocionalmente frágeis. Uma vez vi dois homens, muito masculinos, a terem sexo num local discreto. Também tive alguns casos lá. Às vezes, durante a noite, alguém se enfiava na minha cama ou eu enfiava-me na cama de alguém.

Qual foi a pior coisa que viu?
Vi cenas horrorosas. Uma vez, eu e um amigo fomos obrigados a assistir à execução de soldados soviéticos num antigo estábulo, transformado numa falsa enfermaria. Estes prisioneiros eram levados a acreditar que iam ser examinados por um médico e afinal iam ser mortos. Também me recordo de ver o corpo de um conhecido numa pilha de cadáveres. Conheci-o antes de ser transferido para Dora. No último ano em que lá estive escapei por pouco de ser enviado para Dora, depois de ter respondido mal a um homem que afinal era um oficial das SS. Deu-me um violento murro na cara que me custou três dentes.





"O director da prisão,
que detestava homossexuais,
obrigava-me a dormir nu
porque achava que isso refrearia
os meus impulsos"



Ficou com aversão ao cor-de-rosa?
Nem por isso. O cor-de-rosa era associado a raparigas e foi usado pelos nazis para enxovalharem os prisioneiros homossexuais. Mas ainda gosto da cor e a maioria das minhas camisas são cor-de-rosa.

Tem dito que, mesmo passando por isso tudo, foi muito feliz.
Tenho tido sorte na vida, à excepção dos tempos em que passei na prisão e no campo. Nunca estive sozinho. Tive a sorte de partilhar a minha vida com alguns namorados. Com o último, Edi, estive 50 anos.

Mas Edi aconselhou-o a esquecer esse passado.
Quando regressei a Buchenwald, em 1965, Edi estava comigo e teve dificuldades de aceitar e acreditar em tudo o que tinha passado ali. Disse-me que o melhor era esquecer e concentrar-me no facto de estarmos juntos e felizes. Mas só em 2008, depois da morte dele, tive coragem de falar publicamente sobre o assunto.

Hoje que memórias o fazem chorar?
Quando estava no campo, quase me tornei imune à morte. Mas hoje, quando olho para trás, emociono-me ao pensar em coisas que vi, como pessoas que conheci e que foram mortas ou as torturas dolorosas.


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quarta-feira, 22 de junho de 2011

Estudos de Género. História da homossexualidade em Portugal

Programa:
O reconhecimento pelas democracias ocidentais dos direitos individuais das lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e trangéneros surge em resposta a uma luta política já com mais de meio século que foi iniciada por pelas comunidades gay que estruturavam a sua identidade em novos moldes, nos Estados Unidos nos anos 50 do século XX, mas que cedo se transportou para a Europa.
Em Portugal essa luta dá os primeiros passos a seguir ao 25 de Abril, mas é nos anos 1990 que se estrutura. Como nos outros países, em Portugal, a comunidade lgbt tem uma história, assim como a fase anterior da vivência na sociedade portuguesa das relações entre pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade. É esse enquadramento histórico que se pretende explicar.

1. Identidade de Género
As teorias queer são a destruição última das teorias essencialistas, inclusive das feministas, afirmando o género e a sexualidade como construções sociais e políticas, como espaços plásticos, culturais e não espaços naturais.
As teorias queer questionam o sistema político heterossexista e patriarcal em que vivemos, recusando a falsa colagem do sexo biológico à identidade de género, criticando o binarismo de género homem/mulher e desconstruindo o masculino e o feminismo como conceitos biopolíticos definidos pelo sistema heteronormativo.
2. A nova doença
No início do século XX em Portugal, com a sedimentação do modelo de família nuclear, as reacções entre pessoas do mesmo sexo passam a ser vistas como uma doença.
3. Os novos anti-sociais.
O enquadramento legal da homossexualidade como crime nasce em 1912 com a Lei da Mendicidade e só sai do Código Penal em 1982.
4. Contra a “corrupção literária”.
Os primeiros perseguidos oficiais: Judith Teixeira, António Botto e Raul Leal.
5. Os vários mundos da homossexualidade.
Ao longo da ditadura estigmatização da homossexualidade foi crescendo na sociedade portuguesa. O silêncio do interdito criou um mundo de não dito. O seu auge é atingido nos anos 50.
6. O lesbianismo.
No modelo familiar burguês à mulher é atribuído um novo papel: o de cuidadora do lar e educadora dos filhos. Mas não lhe é reconhecida sexualidade própria. Logo as lésbicas sofrem uma dupla estigmatização.
7. Quando a história política influencia a opressão ou a libertação sexual.
A perseguição política tratou de forma secundária a homossexualidade dos adversários. Mas a Guerra Colonial, um dos grandes factores que ajudaram a começar a derrubar o não-dito da homossexualidade.
8. A revolução veio só nos anos 80.
Em 1974 surgiram os primeiros movimentos lgbt, mas só nos anos 80 do século XX se começa a quebrar a regra homofóbica.

Isabel Lousada, Raquel Freire, São José Almeida
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa
5, 9, 12, 16, 19, 23, 26 e 30 de Julho de 2011
terças, das 18H00 às 21H00, sábados das 10H00 às 13H00




Poderá também gostar de ler:








São José Almeida abriu o armário dos homossexuais na ditadura ao escrever Os Homossexuais no Estado Novo, livro que traça a homossexualidade (masculina e feminina) durante o Estado Novo, reescrevendo a história século XX português.
Leia a apresentação crítica feita por Raquel Ribeiro, in ipsylon, 07.07.2010.








FRACTURA. A CONDIÇÃO HOMOSSEXUAL NA LITERATURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA  |  Eduardo Pitta, Coimbra, Angelus Novus, 2003

Existe literatura gay em Portugal? Literatura gay e literatura homossexual são uma e a mesma coisa? Quais os parâmetros pelos quais podemos avaliar se determinado escritor português é um autor gay? Na literatura portuguesa contemporânea, que obras são susceptíveis de leitura gay? E de leitura homossexual? Podemos lê-las em clave camp, ou queer?
Foi para equacionar estas questões que Eduardo Pitta escreveu Fractura. E fractura porquê? Porque o efeito borderline da líbido itinerante provoca uma fractura literária.

domingo, 19 de junho de 2011

Pós-graduação em Estudos LGBT


Este curso inovador em Portugal e ao nível europeu visa disponibilizar a profissionais das mais diversas áreas de intervenção uma formação sólida no domínio dos estudos sobre as realidades LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero), com base nos conhecimentos das Ciências Sociais, nomeadamente da Psicologia e da Antropologia.

Numa época em que se têm verificado importantes avanços ao nível da igualdade de direitos, há que fundamentar com conhecimento científico a intervenção no combate à homofobia e transfobia, e a implementação de acções e políticas de mainstreaming da igualdade – nas escolas, na justiça, na saúde, nas forças de segurança, na administração pública em geral, nas empresas, nos mass media e nas famílias. O curso concilia o ensino teórico com a discussão de casos práticos e a colaboração com organismos e associações intervenientes na área, bem como recorre aos contributos de reputados especialistas internacionais.

O curso foi concebido como um ciclo de dois semestres.
» O primeiro semestre é constituído por 4 UC principais obrigatórias (História e Teorias da Sexualidade; Abordagens LGBT em Antropologia; Psicologia das Minorias Sexuais; Mainstreaming de Igualdade); e 1 UC Optativa.
» O segundo semestre é composto por 2 UC obrigatórias (Conjugalidades, Famílias e Parentalidades; Seminário Avançado de Temas Internacionais); e as restantes 3 UC Optativas.

As áreas científicas predominantes do curso são a Psicologia e a Antropologia, com o contributo das áreas da Sociologia, Ciências Sociais, e Estatística e Análise de Dados.

Coordenadores: Miguel Vale de Almeida e Carla Moleiro

As candidaturas realizam-se:

    1.ª Fase: 14 de Março a 31 de Maio de 2011
    2.ª Fase: 01 de Junho a 15 de Julho de 2011
    3.ª Fase: 16 de Julho a 06 de Setembro de 2011

Para mais informações:
http://www.iscte-iul.pt/cursos/pos_graduacoes/14706/Apresentacao.aspx

terça-feira, 7 de junho de 2011

DAR AMOR


Dia 24, 20:00h, dar amor
Giselinda de Fátima era uma mulher metódica, espartana, de uma severidade quase germânica. Parava para cumprimentar alguém e como que se esperava ouvir, em consequência lógica, o bater seco dos calcanhares um no outro, que nem os de um oficial de carreira. Dizia bom dia, ao entrar no escritório, e havia quem ficasse, inexplicavelmente, assustado. Trazia o apartamento onde morava num primor austero de ordem, limpeza e disciplina, como o cacifo de um fuzileiro. E governava a sua vida irrepreensivelmente compartimentada, num aperto de espartilho, numa precisão de relógio de cuco fabricado nos Alpes.
Giselinda tinha, como não podia deixar de ser, uma agenda. Dava gosto folheá-la e ler-lhe as entradas, cada uma delas escrita a preto, numa caligrafia magra, escorreita, hirta que nem uma erecção. E, na manhã de 13 de Dezembro, depois de ter anotado os afazeres para cada um dos dias seguintes, Giselinda reparou, surpreendida, que estava ainda em branco o dia 25. Reviu, com atenção, as entradas anteriores, e, no dia 25, escreveu, então, num grande suspiro de obrigação devidamente cumprida: 'dar amor'. Reflectiu um tudo nada, esteve para acrescentá-lo ao que tinha anotado para 24, mas achou um exagero. E só mais tarde, parada num semáforo vermelho, e revendo, mentalmente, o branco do dia 24, muito alvo, quase despido, cortado apenas, inexoravelmente, pelo negro antracite de '19.30: jantar com a Dixa e a Tuxa', é que se resolveu a acrescentar-lhe, quando chegasse a casa: '20.00: dar amor'. Fazia, de resto, todo o sentido, uma vez que detestava as irmãs, abominava os cunhados, e os pequenos monstros a quem chamava sobrinhos eriçavam-lhe os cabelos dos braços e da nuca. Mas isso, pensou também, ao acender da luz verde, obrigava, por uma questão de ordem, a escrever, à frente do 'dar amor' do dia 25, 'continuação'.



Quando entrou no prédio, deu de caras com 'o tal', à espera do elevador. Ele sorriu-lhe as boas tardes, amável, mas ela só inclinou a cabeça num gesto seco, curto, de reconhecimento ou de espasmo. Os tais, era como se referia Giselinda, na generalidade, àqueles que chamava, quando a ocasião era propícia, os sexualmente desviados. Homossexual ou lésbica não faziam parte do seu vocabulário, à semelhança de merda, porra, ou outras obscenidades. Eram, em seu entender, seres 'abjectos', como se lhes referiu uma vez, secretamente orgulhosa da escolha do adjectivo, que contrariavam as leis da Bíblia, que ela nunca lera, e as da natureza, que, para ela, se limitava a campos semeados de couves ou de espinafres, árvores empertigadas a formar uma floresta, uma lagoa ou uma ribeira e montanhas ao fundo, a compor o cenário.
Vivia um deles, o tal, no seu prédio, no mesmo andar, e, por capricho, no apartamento em frente. E sorria-lhe sempre, como agora, enquanto não chegava o elevador, numa amabilidade que Giselinda tinha, absolutamente, por falsa e dissimulada. Faziam o que quer que fosse para tentar os favores das pessoas decentes, tinha ela sempre acreditado, numa tentativa desvergonhada de convertê-las, depois, a credos inconfessáveis.
Só voltou a vê-lo no dia 24, quando saiu, por volta das sete, para o jantar em casa das irmãs. E, talvez por isso, ao dar por ele parado em frente da porta entreaberta do seu apartamento, vindo da rua, ainda de sobretudo vestido e o guarda-chuva a pingar água, passando em revista a correspondência que trouxera, decerto, da caixa do correio, no vestíbulo da entrada, Giselinda atrapalhou-se a fechar a porta de casa, enquanto equilibrava os embrulhos das prendas, seguros apenas entre o queixo e os braços. Ia ter que passar por ele, dar-lhe boa noite, roçar-lhe, de repente, num braço, na beira do sobretudo. E, irritada, trémula de agitação, Giselinda deixou cair, sem querer, os dois pequenos ramos de rosas amarelas que eram as prendas de Natal para as irmãs, fiel ao que estava anotado no dia 17 da agenda, 'comprar presentes para a Dixa e para a Tuxa: não gastar, com ambas, mais de 1.500 escudos.' As rosas desceram de escantilhão, caiu-lhes em cima um dos embrulhos para os sobrinhos, e Giselinda ficou varada, a olhar os ramos desfeitos, meio esmagados, a fazer contas de cabeça a quanto acabara, estupidamente, de perder. Mas o tal curvou-se de imediato, libertou as flores, e mandou-lhe um sorriso de conforto.
- Não se preocupe. Eu arranjo isto. Entre!
E Giselinda deu por si, num embaraço sem palavras, no apartamento dele, sem saber responder-se, exactamente, de que forma isso acontecera, e incapaz de voltar costas, conforme achava que devia fazer, e sair porta fora. Em vez disso, deixou-se ficar no meio da sala, agarrada aos embrulhos que restavam, vagamente cônscia das decorações de Natal e de um conforto muito acolhedor, sabendo a aconchego e a ervas aromáticas.
- Sente-se, enquanto eu dou um jeito nas suas flores. Se quiser tomar alguma coisa, a mesa com as bebidas está aí à sua direita.
     Giselinda não tocou em nada, mas sentou-se no grande sofá castanho dourado, frente a uma mesa baixa, trabalhada, onde havia uma imagem do Menino Jesus e uma vela vermelha num suporte de vidro. E deu por si, inesperadamente, a fazer uma pergunta que nunca teria tido lugar noutro dia e noutras circunstâncias:
- Vive sozinho?
- Por enquanto. O meu companheiro muda-se para cá logo depois do Natal.
Ela arrepiou-se toda. E ia levantar-se para fazer não sabia o quê, quando ele lhe pôs na frente, em cima da mesa, um dos ramos já pronto, tão perfeito como quando ela o tinha trazido da florista.
- Está a ver? O outro ainda é mais fácil de compor.
Sorriu e a cara ficou-lhe toda iluminada, como por feitiço.
- Se quiser conhecê-lo, ele não deve tardar. Vai gostar dele.
Giselinda nem teve tempo de dizer que não, porque ele desapareceu-lhe da vista, a caminho do outro ramo de rosas.
- E a sua família? Quer dizer, a vossa? A sua e a do seu... amigo?
- Fica cada uma no seu lugar. E nós dois vamos estar aqui.
Voltou a aparecer-lhe, subitamente, ao lado, como num truque de magia, e estendeu-lhe as rosas.
- Muito obrigada.
- Foi um prazer. E a oportunidade de ficarmos a conhecer-nos.
Giselinda levantou-se e apanhou os embrulhos.
- Não quer, mesmo, esperar um bocadinho? Ele deve estar a chegar.
E ela, estupidamente, ouviu-se a dizer o impensável:
- Deve ser difícil.
- O quê? A nossa situação? Nem por isso. Gostamos um do outro. Somos felizes juntos.
- Mas a família...
- Muito se preocupa você com a família!
Olhou-a, fundo, nos olhos, e sorriu-lhe brevemente.
- A família são aqueles que nos aceitam por aquilo que realmente somos. Que não têm vergonha de falar nisso com os outros. E que têm a coragem de respeitar as nossas diferenças. A família são esses. E desses não temos muitos, mas ainda temos alguns. É quanto basta.
Giselinda não se lembrava, mais tarde, de ter atravessado o quarto e saído a porta para o corredor. Mas ficou-lhe nos olhos, toda a noite, o sorriso dele, quente e luminoso, quase tanto como o da vela vermelha ao pé do Menino Jesus.
Mas, no dia 26, e passada que fora a última oportunidade de dar amor, de acordo com a entrada na agenda, Giselinda, mesmo sendo de Fátima, começou a pensar numa maneira de purificar o prédio. E escreveu, então, na sua caligrafia muito direita, muito militar, no rectângulo destinado ao dia 5 de Janeiro: 'Contactar a comissão de moradores. Informar da existência de dois dos tais, a viverem juntos, no 4º Direito.'

Armando Medeiros (1938-2009)
http://www.expressodasnove.com/veri.asp?id=918&s=gay, 20-12-2001