terça-feira, 7 de junho de 2011

DAR AMOR


Dia 24, 20:00h, dar amor
Giselinda de Fátima era uma mulher metódica, espartana, de uma severidade quase germânica. Parava para cumprimentar alguém e como que se esperava ouvir, em consequência lógica, o bater seco dos calcanhares um no outro, que nem os de um oficial de carreira. Dizia bom dia, ao entrar no escritório, e havia quem ficasse, inexplicavelmente, assustado. Trazia o apartamento onde morava num primor austero de ordem, limpeza e disciplina, como o cacifo de um fuzileiro. E governava a sua vida irrepreensivelmente compartimentada, num aperto de espartilho, numa precisão de relógio de cuco fabricado nos Alpes.
Giselinda tinha, como não podia deixar de ser, uma agenda. Dava gosto folheá-la e ler-lhe as entradas, cada uma delas escrita a preto, numa caligrafia magra, escorreita, hirta que nem uma erecção. E, na manhã de 13 de Dezembro, depois de ter anotado os afazeres para cada um dos dias seguintes, Giselinda reparou, surpreendida, que estava ainda em branco o dia 25. Reviu, com atenção, as entradas anteriores, e, no dia 25, escreveu, então, num grande suspiro de obrigação devidamente cumprida: 'dar amor'. Reflectiu um tudo nada, esteve para acrescentá-lo ao que tinha anotado para 24, mas achou um exagero. E só mais tarde, parada num semáforo vermelho, e revendo, mentalmente, o branco do dia 24, muito alvo, quase despido, cortado apenas, inexoravelmente, pelo negro antracite de '19.30: jantar com a Dixa e a Tuxa', é que se resolveu a acrescentar-lhe, quando chegasse a casa: '20.00: dar amor'. Fazia, de resto, todo o sentido, uma vez que detestava as irmãs, abominava os cunhados, e os pequenos monstros a quem chamava sobrinhos eriçavam-lhe os cabelos dos braços e da nuca. Mas isso, pensou também, ao acender da luz verde, obrigava, por uma questão de ordem, a escrever, à frente do 'dar amor' do dia 25, 'continuação'.



Quando entrou no prédio, deu de caras com 'o tal', à espera do elevador. Ele sorriu-lhe as boas tardes, amável, mas ela só inclinou a cabeça num gesto seco, curto, de reconhecimento ou de espasmo. Os tais, era como se referia Giselinda, na generalidade, àqueles que chamava, quando a ocasião era propícia, os sexualmente desviados. Homossexual ou lésbica não faziam parte do seu vocabulário, à semelhança de merda, porra, ou outras obscenidades. Eram, em seu entender, seres 'abjectos', como se lhes referiu uma vez, secretamente orgulhosa da escolha do adjectivo, que contrariavam as leis da Bíblia, que ela nunca lera, e as da natureza, que, para ela, se limitava a campos semeados de couves ou de espinafres, árvores empertigadas a formar uma floresta, uma lagoa ou uma ribeira e montanhas ao fundo, a compor o cenário.
Vivia um deles, o tal, no seu prédio, no mesmo andar, e, por capricho, no apartamento em frente. E sorria-lhe sempre, como agora, enquanto não chegava o elevador, numa amabilidade que Giselinda tinha, absolutamente, por falsa e dissimulada. Faziam o que quer que fosse para tentar os favores das pessoas decentes, tinha ela sempre acreditado, numa tentativa desvergonhada de convertê-las, depois, a credos inconfessáveis.
Só voltou a vê-lo no dia 24, quando saiu, por volta das sete, para o jantar em casa das irmãs. E, talvez por isso, ao dar por ele parado em frente da porta entreaberta do seu apartamento, vindo da rua, ainda de sobretudo vestido e o guarda-chuva a pingar água, passando em revista a correspondência que trouxera, decerto, da caixa do correio, no vestíbulo da entrada, Giselinda atrapalhou-se a fechar a porta de casa, enquanto equilibrava os embrulhos das prendas, seguros apenas entre o queixo e os braços. Ia ter que passar por ele, dar-lhe boa noite, roçar-lhe, de repente, num braço, na beira do sobretudo. E, irritada, trémula de agitação, Giselinda deixou cair, sem querer, os dois pequenos ramos de rosas amarelas que eram as prendas de Natal para as irmãs, fiel ao que estava anotado no dia 17 da agenda, 'comprar presentes para a Dixa e para a Tuxa: não gastar, com ambas, mais de 1.500 escudos.' As rosas desceram de escantilhão, caiu-lhes em cima um dos embrulhos para os sobrinhos, e Giselinda ficou varada, a olhar os ramos desfeitos, meio esmagados, a fazer contas de cabeça a quanto acabara, estupidamente, de perder. Mas o tal curvou-se de imediato, libertou as flores, e mandou-lhe um sorriso de conforto.
- Não se preocupe. Eu arranjo isto. Entre!
E Giselinda deu por si, num embaraço sem palavras, no apartamento dele, sem saber responder-se, exactamente, de que forma isso acontecera, e incapaz de voltar costas, conforme achava que devia fazer, e sair porta fora. Em vez disso, deixou-se ficar no meio da sala, agarrada aos embrulhos que restavam, vagamente cônscia das decorações de Natal e de um conforto muito acolhedor, sabendo a aconchego e a ervas aromáticas.
- Sente-se, enquanto eu dou um jeito nas suas flores. Se quiser tomar alguma coisa, a mesa com as bebidas está aí à sua direita.
     Giselinda não tocou em nada, mas sentou-se no grande sofá castanho dourado, frente a uma mesa baixa, trabalhada, onde havia uma imagem do Menino Jesus e uma vela vermelha num suporte de vidro. E deu por si, inesperadamente, a fazer uma pergunta que nunca teria tido lugar noutro dia e noutras circunstâncias:
- Vive sozinho?
- Por enquanto. O meu companheiro muda-se para cá logo depois do Natal.
Ela arrepiou-se toda. E ia levantar-se para fazer não sabia o quê, quando ele lhe pôs na frente, em cima da mesa, um dos ramos já pronto, tão perfeito como quando ela o tinha trazido da florista.
- Está a ver? O outro ainda é mais fácil de compor.
Sorriu e a cara ficou-lhe toda iluminada, como por feitiço.
- Se quiser conhecê-lo, ele não deve tardar. Vai gostar dele.
Giselinda nem teve tempo de dizer que não, porque ele desapareceu-lhe da vista, a caminho do outro ramo de rosas.
- E a sua família? Quer dizer, a vossa? A sua e a do seu... amigo?
- Fica cada uma no seu lugar. E nós dois vamos estar aqui.
Voltou a aparecer-lhe, subitamente, ao lado, como num truque de magia, e estendeu-lhe as rosas.
- Muito obrigada.
- Foi um prazer. E a oportunidade de ficarmos a conhecer-nos.
Giselinda levantou-se e apanhou os embrulhos.
- Não quer, mesmo, esperar um bocadinho? Ele deve estar a chegar.
E ela, estupidamente, ouviu-se a dizer o impensável:
- Deve ser difícil.
- O quê? A nossa situação? Nem por isso. Gostamos um do outro. Somos felizes juntos.
- Mas a família...
- Muito se preocupa você com a família!
Olhou-a, fundo, nos olhos, e sorriu-lhe brevemente.
- A família são aqueles que nos aceitam por aquilo que realmente somos. Que não têm vergonha de falar nisso com os outros. E que têm a coragem de respeitar as nossas diferenças. A família são esses. E desses não temos muitos, mas ainda temos alguns. É quanto basta.
Giselinda não se lembrava, mais tarde, de ter atravessado o quarto e saído a porta para o corredor. Mas ficou-lhe nos olhos, toda a noite, o sorriso dele, quente e luminoso, quase tanto como o da vela vermelha ao pé do Menino Jesus.
Mas, no dia 26, e passada que fora a última oportunidade de dar amor, de acordo com a entrada na agenda, Giselinda, mesmo sendo de Fátima, começou a pensar numa maneira de purificar o prédio. E escreveu, então, na sua caligrafia muito direita, muito militar, no rectângulo destinado ao dia 5 de Janeiro: 'Contactar a comissão de moradores. Informar da existência de dois dos tais, a viverem juntos, no 4º Direito.'

Armando Medeiros (1938-2009)
http://www.expressodasnove.com/veri.asp?id=918&s=gay, 20-12-2001



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