quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Queer museu


“Queermuseu”: A apropriação que acabou em censura


A perspectiva queer está ligada ao momento de intensa luta pelos direitos civis LGBT no início da década de 1980 nos EUA. Não é surpreendente que a exposição em um banco privado seja censurado e fechada pelo seu conteúdo haja vista que a lógica do capital é precisamente a de abandonar o que não é de seu interesse em termos de lucro.



Na última semana, foi impossível passar incólume de um assunto nos sites de notícias e nos fóruns virtuais: a censura da exposição Queermuseu – cartografia das diferenças na arte brasileira, realizada no Santander Cultural na cidade de Porto Alegre. A mostra foi fechada arbitrariamente pela instituição – que cedeu a pressões de setores conservadores e fascistas brasileiros, que acusaram a exposição de fazer apologia à pedofilia, à zoofilia e à profanação de símbolos religiosos cristãos. No entanto, quais são as entrelinhas envolvidas em todo o processo de construção conceitual e político em Queermuseu?
Para início de conversa, é necessário entendermos o que seria essa palavra “queer” – comumente associada a uma teoria, mas que aqui trataremos como uma perspectiva ou uma forma de atuação política. A perspectiva queer está ligada profundamente ao momento de intensa luta pelos direitos civis LGBT no início da década de 1980, sobretudo, em decorrência do avanço da AIDS nos Estados Unidos. Naquele país, “queer” é uma expressão de insulto e a autointulação desse tipo de ativismo com essa palavra é um caminho de reivindicar o achincalhamento para si como uma forma de se opor às normas sociais. Assim, a perspectiva queer é sobre desfrutar das bordas e não ter aspiração ao centro ou à assimilação em modelos pré-estabelecidos de vida. Queer invoca precisamente o estranhamento às lógicas de normatização dos corpos e das subjetividades, principalmente, no que tange os gêneros, as sexualidades e outros possíveis tangenciamentos como raça e classe.
O surgimento sociopolítico queer tem uma íntima relação a uma série de críticas ao modo como o governo tratava pessoas LGBTs, além de uma própria crítica a um movimento pelos direitos sexuais predominantemente gay e com formas de atuação política muito cristalizadas. As principais causas para a emergência do queer são a crise da AIDS e a assimilação da cultura gay masculina a um sistema capitalista e excludente através do chamado “pink money – uma exploração danosa das identidades sexuais e de gêneros com fins comerciais que, predominantemente, não beneficia a comunidade LGBT.
O surgimento da AIDS e sua vinculação à comunidade gay – dada a replicação rápida do vírus dentro desse grupo social – contribui para um enrijecimento dos discursos reacionários e homofóbicos. A enfermidade ficou conhecida como “câncer gay” e exatamente por isso a administração do ultra conservador Ronald Reagan e as instituições públicas de saúde negligenciam o tratamento e o estudo dessa doença. A postura do governo estadunidense frente ao avanço da AIDS era quase nula. Tendo todas essas tensões como pano de fundo, surge o grupo ACT UP (Aids Coalition to Unleash Power) que reunia em torno de si não apenas pessoas soropositivas, mas também pessoas com dependência química, militantes negros e latinos, pessoas que trabalhavam com sexo, além de gays, lésbicas e grupos sociais menos favorecidos. O grupo ficou conhecido por suas ações de desobediência civil, a exemplo da realização de velórios públicos de pessoas mortas pela AIDS – mortes cuja administração pública dizia desconhecer.
Exatamente pelo traço interseccional e pelas ações mais radicais, o grupo rompia com um modelo de militância gay assimilacionista – que lutava por uma integração social a todo custo através da compra da sua cidadania por meio do mercado destinado a LGBTs cada vez mais crescente.
A partir das primeiras conquistas de direitos civis, LGBTs começam a ser encaradas como um potente público consumidor. Isso levou a uma franquia social em que o dinheiro se tornou mercado de troca por migalhas de uma suposta cidadania. A luta se torna cada vez mais careta através de uma submissão a um modelo integracionista, em que as pessoas LGBTs deveriam “passar despercebidas”, condenando qualquer tipo de prática que fugia de uma conduta “discreta” perante a sociedade hetero-cis-centrada.
Quem ousava ultrapassar esse modelo coercitivo de viver seus corpos generificados e sexualidades (sadomasoquistas, pessoas trans, gays e lésbicas consideradas como “estereotipados”, relações intergeracionais, etc) era quem vivia numa outra zona, numa lama social, na escória. São essas pessoas, não autorizadas de gozar de suas singularizações, que darão o tônus aos ativismos queer – apostando que é preciso entender as diferentes subjetividades para construir políticas que possam atender suas necessidades próprias, mostrando como há uma supremacia da identidade gay branca frente a outras diferentes marcas de gênero e sexualidade. A perspectiva queer alerta para como o essencialismo e a tentativa de incluir a qualquer custo dentro dos modelos cis-heteronormativos se converte, numa cilada por insistir em verdades sobre os sexos e os gêneros, tentando explicar objetivamente o que seria gay, lésbica, bissexual ou travesti – sem deixar chances para trânsitos ou fraturas que ponham em questão essas identidades.
Assim, queer não pode ser confundido como gay ou talvez sequer com LGBT, já que diz menos sobre identidade e mais qual é a sua posição política: dissidência e rebeldia às normas vindas de qualquer direção (dentro ou fora da comunidade LGBT) e às imposições dos regimes do capital. Muitas pessoas ativistas queer, por estarem ligadas à universidade e também com o campo das artes, começam a trazer essas experiências e conhecimentos para a academia. Daí que se chama a produção dessas pessoas de “Teoria queer”. Já no campo das artes, se tem uma série de ações que tinham como ideal uma insistência num incômodo tanto estético quanto político das artes. Essas produções artísticas acentuam ainda mais o questionamento das barreiras entre público e privado ( processo já iniciado por uma produção de mulheres feministas), além de uma aposta em um tipo de arte abjeta – que trazia o nojo, o grotesco, o incomum como uma maneira de torcer a sacralização e os sistemas representacionais da arte.
No Brasil, a perspectiva queer tem penetração, sobretudo, na universidade no início dos anos 2000. Embora já tivéssemos por aqui uma série de produções acadêmicas e artísticas que poderiam ser considerados com o que conhecemos, hoje, como queer – realizados antes mesmo do surgimento dessa perspectiva no Estados Unidos. Exemplos disso, são as produções de grupos como Dzi Croquettes e Vivencial ou alguns textos de vanguarda como de Edward McRae e Nestor Perlongher.
Toda essa digressão nos faz perceber que queer tem pouca ou nenhuma relação com bom mocismo ou com algo agradável e palatável aos olhos. Pelo contrário, o queer é indigestão, incômodo e desestabilização.
Na atualidade, se fala muito sobre artivismos queer – uma possibilidade de utilizar a arte como uma maneira de afetar a audiência acerca de temas relacionados ao campo das sexualidades e dos gêneros não-normativos e não alinhados com o capital. Os artivismos põe as fichas no campo da micropolítica para compor seus trabalhos. A micropolítica aponta para a criação de linhas de fuga a modelos de ancoragem representacionais, mudando as formas de vida, de criação e de potências afetivas e de usos dos corpos.
A partir desses apontamentos e fazendo uma análise da exposição, Queermuseu parece nem mesmo se referir a “queer”. Há uma apropriação do termo, mas não é acompanhada de uma reflexão crítica e histórica sobre o que ele significativa articuladamente. Creio que isso se dá por diferentes motivos. Um deles é o mais óbvio: a associação de uma temática “queer” com um banco privado interessado exclusivamente em lucro. Aqui a contradição maior é que a política queer ataca de forma sistemática os regimes do capital neoliberal – o mesmo que utiliza ainda hoje as pessoas LGBT como moeda de troca por visibilidade, parasitando as lutas pelas diferenças sexuais e de gênero sem contribuir de maneira sistemática contra o extermínio da população LGBT. Portanto, não é surpreendente que a exposição em um banco privado seja censurado e fechada pelo seu conteúdo haja vista que a lógica do capital é precisamente a de abandonar o que não é de seu interesse em termos de lucro.
Queermuseu traz em seu contexto obras que possuem temáticas relacionadas ao gênero e à sexualidade, mas a representatividade da exposição é embaraçosa – já que a maioria das pessoas artistas sequer são LGBT ou, se são, muitas estão emaranhadas nos próprios sistemas da arte e do capital. Até mesmo no episódio da censura, o que se anuncia é que obras de Portinari, Volpi, Lygia Clark e Adriana Varejão – nomes consagrados no cenário artístico e de mercado brasileiro – não foram permitidas de serem mostradas e não o conteúdo da mostra e o discurso de ódio anti-LGBT que recai sobre a mostra. Ao ver as entrevistas do curador da mostra Gaudêncio Fidélis, além de todo material institucional divulgado, a mostra tinha uma visão muito simplista e integracionista sobre a estranheza queer, higienizando uma pauta que se insurgiu aos próprios modelos sociais e também de produção artística.
O desafio maior de Queermuseu, caso tivesse uma aderência e uma sintonia produtiva com a perspectiva queer, seria “estranhar o museu” e não “musealizar” em um cubo branco e sem tensões as asperezas insurgentes queer. Se a exposição acontece num contexto esterilizado e em que a condição das pessoas subalternizadas historicamente não é debatida, ela é pouco ou nada queer.
Na abertura da mostra, inclusive, houve uma manifestação que ressaltava uma posição crítica a essa docilização do queer. Na intervenção, panfletos foram arremessados do alto do prédio do Santander Cultural no meio da exposição. Nos papéis haviam as indagações: “LGBT? Queer? Para quem? Vernissage para o sistema de arte enquanto 500 mulheres são agredidas por hora no Brasil. 13 mulheres são mortas mortas por dia vítimas de agressões no Brasil. Cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil”. Outras inscrições presentes nos papéis traziam: “Aliados de Sartori [governador do Rio Grande do Sul] aprovam a extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres. LGBT/Queer na contemporaneidade é bixa morrendo sem anti-retroviral. Sem repasse de verbas da prefeitura de Porto Alegre fecha-se o GAPA/RS [Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS]. Sem repasse de verbas do governo federal faltam medicamentos anti-retrovirais em todo país. Porto Alegre vive e abafa uma epidemia de HIV/AIDS”.
Esse texto poderia parar aqui e trazer todas essas críticas aos processos curatoriais da exposição. No entanto, o fato da exposição ter sofrido uma série de retaliações de setores fascistas e reacionários do Brasil, entre eles o Movimento Brasil Livre – conhecido por suas posições homofóbicas, racistas e classistas – faz com que seja importante trazer outras camadas para esse debate. Os ataques à mostra se deram não somente na internet, mas também na própria exposição – onde o público visitante era constrangido com a presença de manifestantes a favor do fechamento da exposição. Esses setores se organizaram e em confluência com a prefeitura de Porto Alegre conseguiram fazer com que o Santander Cultural fechasse um mês antes do fim programado a exposição. A justificativa de fechamento da exposição é que haviam obras que incentivavam a pedofilia, a zoofilia, além de uma profanação de símbolos religiosos cristãos.
As obras da artista Bia Leite foram uma das mais atacadas pelos reacionários. As pinturas da artista eram compostas inspiradas em fotografias retiradas de um site da internet em que pessoas usuárias enviam fotos de suas infâncias em poses e vestimentas que desestabilizam as normas de gênero e sexualidade. Além dos retratos pintados, haviam as inscrições “Criança viada travesti da lambada” e “Criança viada deusa das águas”. A obra, obviamente, não possui nenhum teor de apologia a pedofilia, pelo contrário, retrata como nós, pessoas LGBTs, tivemos momentos na infância de vivências de nossas sexualidades e de nossos gêneros, e que a experiência das nossas orientações sexuais e identidades de gênero não se iniciaram repentinamente na fase adulta. A figura da “criança viada” aponta para a própria necessidade de se pensar em uma educação que possa estranhar a maneira como enxergamos a infância, em que as diferenças possam ser respeitadas e não ceifadas e castigadas – fato presente na biografia de muitas pessoas LGBTs.
É a censura que dará um giro na percepção que as pessoas sintonizadas com a perspectiva queer sobre a mostra de artes. Primeiro, porque a censura nos mostra como os setores reacionários estão organizados e empenhados nos extermínios de qualquer discurso e vivência que fuja de um modelo de sexualidade e gênero desejável. O outro ponto a ser delineado é que a exposição parece ser higiênica demais para quem tem um compromisso com os ativismos, mas transgressora em excesso para o fascismo que tem sua ressonância em vertigem no Brasil. Ou seja, mesmo que haja uma série de críticas, pessoas ativistas que historicamente se opõem às normatizações se veem impelidas em lutar pela liberdade artística e pelo direito de pessoas LGBTs existirem.
Obviamente, que isso não significa que essa coalizão não anula uma série de tumultos entre essas ativistas. É possível também lutar tendo como subterfúgio o dissenso.
Além disso, a arte mostra, mais uma vez, uma potência em perturbar os status sociais. E, embora ainda seja preponderantemente eurocêntrica, colonial, branca e machista, já é possível perceber uma desestabilização crítica desses discursos. E quem promove essa fissura não são pessoas heterossexuais e brancas, mas sim as imorais, as sujas, as não desejadas, as que as materialidades são tomadas como não importantes para uma sociedade hetero-cis-supremacista. A reação de ódio incitada pela exposição também reside na “surpresa” da audiência reacionária em ir a um espaço em que supostamente deveria se encontrar a valorização do “belo” eurocêntrico e se deparar com trabalhos que, em maior ou menor grau, desconstrói esses ideais.
A censura da exposição “Queer museu”, por sua midiatização, também faz com que outros setores da sociedade, para além dos ativistas, possam enxergar o que sempre as lutas dos movimentos sociais trouxeram: há uma tentativa violenta e sistemática de extermínio de corpos LGBTs, sobretudo das pessoas trans e travestis, negros, mulheres, pobres e favelados. Que a polícia – enquanto organização social que ratifica as estruturas de poder supremacistas, mas também a que realiza uma vigilância diárias que pune corpos desajustados – seja desestabilizada em prol de uma política em que tumultos sociais, de gêneros e sexualidades se propaguem de maneira rizomática.
Tiago Sant'Ana, http://diplomatique.org.br/queermuseu-a-apropriacao-que-acabou-em-censura/, 2017-09-18
Tiago Sant’Ana é curador independente, doutorando em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia e pesquisador vinculado ao grupo CUS – Cultura e Sexualidade. 





ENTREVISTA EXCLUSIVA: GAUDÊNCIO FIDÉLIS, CURADOR DA EXPOSIÇÃO QUEER CENSURADA EM PORTO ALEGRE




11 DE SETEMBRO DE 2017



“Esse é o mundo que vivemos agora? Um mundo em que um grupo reduzido, com ideologias das mais reacionárias e retrógradas, vai dizer para nós o que nós podemos ver e como nós podemos pensar? Esse é um grande e terrível precedente que esse fechamento intempestivo da exposição abre”.

Gaudêncio Fidélis tem 52 anos e mais de 50 exposições em seu vasto e respeitável currículo de curador de arte. Já foi diretor do mais importante museu do Rio Grande do Sul, o Museu de Artes do Rio Grande do Sul (MARGS) e também, curador-geral da décima edição da Bienal do Mercosul, mais importante mostra do Estado. É o curador responsável pela exposição A Queer Museu – Cartografia da Diferença na América Latina, suspensa neste sábado, 9 de setembro de 2017, pelo Santander Cultural, que se curvou a pressões do Movimento Brasil Livre. A justificativa do Santander foi exposta nessa nota muito polêmica.

De tantos dias de carreira, poucos foram tão angustiantes como os últimos. Desde a última quarta-feira, o MBL faz uma campanha, nas redes sociais e na própria galeria que recebe/recebia a exposição, para atacar a exposição, a mais importante da temática Queer e LGBT já vista na América Latina. O grupo, que conta com apoio do prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) alega que, entre as 263 obras de 85 artistas – alguns muitos renomados como Adriana Varejão, Ligia Clark, Alfredo Volpi, Cândido Portinari – há obras que fazem apologia à pornografia, pedofilia e zoofilia. Ainda criticam que há ataques imorais contra a fé cristã.

Grupos de militância LGBT ingressaram no Ministério Público do Rio Grande do Sul com uma representação que pretende reverter a suspensão. A comunidade artística brasileira está em alerta. A comunidade LGBT também. O assunto é, inegavelmente, polêmico. Repudiamos veementemente a censura que se coloca e, para avançar no debate, conversamos longamente com o curador da mostra. Abaixo, a íntegra desta entrevista.

Foto: Raul Hotz.
Gaudêncio, para começar a conversa, gostaria de saber quais os sentimentos que surgiram em você nestes últimos dias? Está bravo, triste, preocupado? O que você, que está no centro deste embate, sente neste momento?
Em seguida que eu fiquei sabendo do cancelamento da exposição, eu tive um momento de profunda tristeza, te confesso. Me trouxe às lágrimas, vou até te dizer. É um sentimento de tristeza porque uma exposição desta grandiosidade conta com todo o envolvimento destes artistas, dos colaboradores, dos colecionadores, dos profissionais, da enorme gama de profissionais que colaboram para essa exposição. Essa exposição começou a ser pensada em 2010! É uma tristeza ver que isso tudo acabou, que foi tirada da visibilidade pública depois de apenas dois dias e meio de manifestações das mais reacionárias de parte deste grupo que a gente conhece como MBL.
Também tem a tristeza pelos artistas, pela produção dos artistas e por esse precedente terrível que é o fechamento desta exposição. Acho que nós somos confrontados com uma questão dramática: como será o universo da produção artística e cultural do país quando um precedente destes se abre? Que tipo de incidentes similares nós vamos ter quando, tão rapidamente, um grupo de extrema direita e tão reacionário consegue fechar uma exposição desta grandiosidade? Então, foi um momento de muita tristeza. Mas agora é preciso, inevitavelmente, participar de um processo longo e penoso de esclarecimento da opinião pública e de quem gosta de arte. Tem que ser, de alguma maneira, porta-voz dos artistas junto ao público sobre o que isso tudo significa, esclarecer os equívocos sobre essa narrativa falsa que eles criaram. Acho que essa tarefa eu tenho que cumprir. Meu interesse nisso é o esclarecimento e não um uso sensacionalista.
Qual o tamanho da exposição, em qual parâmetro podemos colocar essa exposição em comparação com outras exposições com temática Queer, com temática LGBT no Brasil e no mundo? Trata-se da maior exposição deste tema que o país já viu?
Podemos ter absoluta segurança nesta informação. Não só no Brasil. É a maior exposição Queer e que aborda questões de gênero, de identidade de gênero, expressão de gênero, diferença e diversidade que o Brasil já teve. Mas não é só isso. Essa é a primeira exposição desta escala, neste assunto, na América Latina. Escrevi isso na argumentação do projeto, quando ele estava começando. É importante dizer que ela é uma das poucas do mundo. Tivemos antes uma exposição em Washington, que foi uma exposição mais específica e histórica focada em retratos, mas tinha temática Queer muito importante. Antes disso, tivemos no Museu Internacional de Arte em Varsóvia, na Polônia, muito grande, muito importante, que percorreu desde a arte grega até a arte contemporânea. E agora, recentemente, paralela à nossa, nós tivemos uma exposição da Tate Modern, em Londres, uma exposição histórica da arte Queer, que cobre um período específico da arte britânica e, nesse sentido, tem a ver com o enquadramento da nossa. A exposição Queer Museu não é concentrada apenas num determinado período, mas concentrada em arte brasileira.
Você está tentando mostrar com isso que Porto Alegre – e mesmo o Brasil – estavam num ponto…
Estava na frente. Muito avanço. Apesar de chegar aqui atrasado.
Gaudêncio, você é uma referência aqui no Rio Grande do Sul, já tem uma história aqui na arte do Estado. A dedicação de montar a exposição foi algo de iniciativa sua? Quando você foi montando a exposição, esse fantasma da perseguição conservadora dos grupos de direita no Brasil passou na tua cabeça?
Correndo o risco de parecer ingênuo, eu te confesso que, em nenhum momento… e olha que eu já fiz exposições que levantaram muito mais polêmica. Na Bienal do Mercosul (de 2015, do qual Gaudêncio foi curador-geral), houve um ataque à obra Tropicália, do Helio Oiticica. Mas foi um ataque de outra ordem, não era de teor moralista, como esse. Eu já organizei mais de 50 exposições, mas eu não imaginei e nem houve, no processo de gestação, organização e nos 26 dias que a exposição esteve aberta, não houve qualquer manifestação negativa em realização da exposição ou em relação a obras específicas. O que acontece é que, de repente, esses grupos de extrema direita, nesse caso liderados pelo MBL, descobrem a exposição, se dão conta que a exposição é uma plataforma de altíssima visibilidade e resolvem fazer dela uma plataforma para projeção de suas ideias conservadoras e reacionárias, o que desencadeia o processo. Isso começou na quarta-feira à tarde. Foi muito rápido. Quinta-feira tivemos um dia de feriado e o Santander não abriu. Sexta-feira foi intensa essa investida do MBL, ingressando na exposição e agredindo as pessoas, os profissionais, os mediadores e no sábado também: muito intenso, muito agressivo. Foram dois dias e meio. Isso, claro, foi muito rapidamente também transposto nas redes sociais com uma narrativa que eles construíram e que é um pouco chocante porque ela não corresponde em nada, absolutamente em nada, com a exposição. Vamos falar bem concretamente: não há nada na exposição do que eles tão falando. Hoje um repórter me perguntou, numa rádio, o que eu poderia dizer sobre a obra de Cristo com um macaco, se seria um ataque à Igreja Católica. E eu respondi “não há uma obra com um Cristo com um macaco” na exposição. Simplesmente não há! Entendeu? Eles construíram uma narrativa oral e visual que não corresponde à exposição. Mas agora temos um agravante: nós não temos a exposição para provar o contrário. Ela foi fechada.

Foto: Samuel Maciel – Correio do Povo
Eu queria saber da tua opinião sobre a postura do Santander. Você acha que o a instituição toma essa decisão porque Porto Alegre tem um prefeito muito próximo do MBL? Acha que existe essa interferência? Ou acha, por exemplo, que os clientes do banco que criticaram à exposição podem ter influenciado?
Honestamente, nem um, nem outro. Mas antes vou enfatizar uma coisa: o prefeito (Nelson Marchezan JR.) se expressou radicalmente contra a exposição em seu perfil no Facebook, em linha com o MBL. Ele posteriormente apagou esse post mas todo mundo printou e também postou nas redes. Talvez aconselhado por alguém ele tenha retirado. Mas isso já aconteceu na onda posterior de apoio ao MBL, que a gente sabe que ele tem.
Também não acho que o Santander tenha sido movido necessariamente pelas manifestações dos clientes.A gente participa de todo o processo todo o tempo, muito próximo à exposição, depois que ela abre, e eu estive na abertura da exposição, na coletiva de imprensa, quando estava sentado ao meu lado representante do alto escalão do Santander. Naquela oportunidade, conversarmos abertamente. O Santander demonstrou imensa felicidade que estava a instituição. O processo foi dessa maneira. Aí, num determinado momento, depois das manifestações do MBL, o Santander, através de seus representantes, conclui uma vontade da maioria. Mas não é a vontade da maioria. Foi uma atitude absolutamente intempestiva. Eu tenho que dizer que ela se traduz como autoritária. As pessoas não foram consultadas, sequer por haver 85 artistas na exposição. Se esquece o significado que uma exposição representa, que não é só uma ideia simplificada de mostrar a ideia dos artistas, mas é também de circular conhecimento, de reconhecer que aquilo representa um corpo de conhecimento. Tudo isso não tem valor nenhum. Isso é transformado numa frase que diz que existem obras ofensivas, que podem ofender pessoas. Não é exatamente essa frase que eles usam na nota, mas é o sentido do que eles disseram. Aí eu fico me perguntando, fico fazendo uma conta na minha cabeça: na minha visão de curador, não é uma visão assim representativa do todo do público, claro, eu diria que existem 4 obras na exposição que poderiam ser “controversas”, entre aspas.
Você poderia dizer algumas delas?
Eu preferia não nomear para a gente não capitalizar isso e potencializar uma perseguição às obras e aos artistas. Obras que tratam de questões sobre racismo, por exemplo, foram atacadas como se fossem obras que tratassem de sexualidade, quando elas não são. Não tem como. Não são. As imagens não representam isso. Existe uma obra, essa eu vou falar, que foi muito citada inúmeras vezes pelo MBL. Existe uma obra do Antônio Obá, que é um artista excepcional, um artista negro que trata na sua produção muito da invisibilidade da comunidade de afrodescendentes e da comunidade negra especialmente no Brasil. É uma obra que tem hóstias. E eles disseram que isso era uma heresia, uma imoralidade, um ataque a fé católica e etc. Essas hóstias, primeiro elas não são bentas, mas isso é irrelevante neste momento, até porque elas têm impacto simbólico, claro. Mas essa obra é sobre a transubstanciação do corpo de Cristo. Como nós que tomamos a hóstia nos transformamos, e o corpo de Cristo neste processo. Essa obra está falando sobre antropofagia cultural, nos termos de Oswald de Andrade. Não quero me especializar muito na linguagem aqui, mas há uma distorção completa e falsa do que elas significam quando elas são retiradas de contexto. Aí eu volto de novo para essa observação de que o grande drama que temos que enfrentar neste momento é de que nós não temos como dar acesso às pessoas para elas julgarem por si mesmas neste momento que essa discussão pública está sendo feita, porque antes de tudo a exposição foi feita para abrir a discussão: o universo de expressões artísticas, culturais da comunidade LGBT, questões de gênero e etc. Essa possibilidade de diálogo foi sumariamente encerrada por essa decisão do Santander de fechar a exposição intempestivamente. Essa cruzada que o MBL deflagrou em direção à exposição quer dizer para nós o que nós podemos ver, o que não podemos ver, o que eles acham moral ou imoral, o que eles acham que faz parte dos bons costumes. Esse é o mundo que vivemos agora? Que um grupo reduzido com ideologias das mais reacionárias e retrógradas vai dizer para nós o que nós podemos ver e como nós podemos pensar? Esse é um grande e terrível precedente que esse fechamento intempestivo da exposição abre.
“Nós não temos como dar acesso às pessoas para
elas julgarem por si mesmas neste momento”
O que você acha que todo esse momento pode deixar para o futuro, Gaudêncio? Acha que a visibilidade da temática Queer ou LGBT pode crescer com o imbróglio? Acha que a exposição pode ser instalada em outros espaços? Gostaria que ela seguisse no Santander?
Eu acho que essa exposição tem uma força artística extraordinária. E ela teve essa visibilidade imensa, de muita visitação, as pessoas celebrando a exposição. Ela tem essa potência. E isso não tem como apagar. Ela é, do ponto de vista objetivo, exaustivamente documentada numa extraordinária publicação, com muitos textos refletindo a discussão, num material educativo maravilhoso desenvolvido para a exposição de educação. E tudo o que cerca esse corpo de obras que é enorme – porque a exposição é enorme e representativa da arte brasileira, da diversidade da produção artística brasileira – não será apagado. Isso deixa uma lição para nós: que a força da arte resiste. Ela resistiu sempre. Não vai ser agora que ela não vai resistir. Mas tem um alerta que nós precisamos estar conscientes neste momento: a democracia e as conquistas da liberdade de expressão, avanços em todas as áreas do conhecimento, elas têm que ser praticadas e mantidas. Tem que ter uma luta para que elas sejam mantidas na vida diária nossa. Elas não conquistas permanentes, infelizmente. Essa atitude arbitrária dá um susto em todos nós. Mostra que, num movimento relâmpago, de apenas dois dias e meio, uma exposição destra grandiosidade, com um certo consenso – nenhuma exposição tem consenso – da comunidade em geral e da comunidade artística, do universo acadêmico, dos intelectuais, é fechada arbitrariamente. E nós temos que ter isso em mente. Essas conquistas não são permanentes. Temos que lutar por elas todos os dias. A comunidade LGBT, que também faz parte da comunidade artística, a comunidade artística, o universo acadêmico que produz conhecimento, e todos aqueles que têm conhecimento pela arte estão em estado de alerta, porque, mais uma vez, nós temos essa demonstração. Temos um obscurantismo, que surge rapidamente de onde a gente menos espera – nesse caso, até que nem tanto de onde a gente menos espera, né?

https://davidmirandario.com.br/2017/09/entrevista-exclusiva-gaudencio-fidelis-curador-da-mostra-queer-censurada-em-porto-alegre/




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Veja 30 obras da exposição censurada no Santander Cultural (dentro do contexto) e tire suas próprias conclusões

Acusações de "apologia" à pedofilia se basearam em apenas 3 das 264 obras da mostra e foram descartadas pelo promotor da Infância de Porto Alegre.
publicado 

Tatiana Farah





A acusação que provocou a censura da exposição "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira" tomou três das 264 obras exibidas desde 15 de agosto, em Porto Alegre, descontextualizou-as com alegações genéricas de "apologia" à pedofilia e à zoofilia e gerou uma onda nas redes sociais.

Pressionado pelas redes sociais, o Santander Cultural interrompeu a exposição, que estava prevista para ser encerrada apenas em outubro. Na declaração de rendição, uma nota publicada no Facebook no domingo, o centro cultural do banco pediu desculpas e invocou um suposto "propósito maior" da arte, o que seria de "gerar inclusão e reflexão positiva."

O BuzzFeed News traz aqui 30 obras, explicadas à luz do devido contexto, para os leitores que não tiveram oportunidade de visitar a exposição censurada pelo Santander Cultural.






Era a primeira exposição de arte com temática queer da América Latina. Contava com 264 obras de 85 artistas brasileiros, mostrando mais de um século das artes plásticas e seu relacionamento com o universo LGBTQ.
A exposição foi alvo de ataques em redes sociais de militantes de direita. Mais tarde, o MBL (Movimento Brasil Livre) amplificou as acusações de que a exposição fazia apologia à pedofilia e à zoofilia.

O Santander Cultural cedeu à gritaria e cancelou a mostra sem sequer consultar o curador do evento, Gaudêncio Fidélis.
"Não foi uma censura contra mim, mas contra as artes", disse o curador ao BuzzFeed News.

A acusação de apologia à pedofilia foi descartada hoje pelo promotor da Infância de Porto Alegre, Júlio Almeida, em entrevista à rádio Guaíba (RS).

Veja a seguir algumas das obras com a explicação contextualizada, conforme o catálogo da exposição.

ADRIANA VAREJÃO: Cena de interior II, 1994



Foto: Eduardo Ortega / Acervo Atelier Adriana Varejão / Cortesia Atelier Adriana Varejão


O óleo sobre tela de Adriana Varejão era uma das peças de abertura da exposição. Foi alvo de ataques virtuais, mas de 20 anos depois de ser pintada pela artista. Segundo o catálogo da mostra, a peça apresenta um drama erótico e sua "intensidade histórica, conceitual e estética é exemplar da força da imagem que é possível encontrar nessa exposição".

ALFREDO VOLPI: São Sebastião (s.d.)



Jaime Acioli | Cortesia Pinakotheke




O desenho de São Sebastião é feito levemente sobre papel, como se a imagem pudesse desaparecer. "Como um fantasma, os traços leves deixam-lhe o corpo que lhe foi flagelado reencontrar, na natureza, a matéria da carne que lhe foi atacada pelo desejo e pela perversão", explica o catálogo de Queermuseu.

ANGELINA AGOSTINI: Sem título, 1910



Fabio Del Re e Carlos Stein - Viva Foto | Cortesia MARGS

Com 107 anos, essa obra em carvão sobre papel, de Angelina Agostini, traz a figura de um homem nu posando para a artista.

BIA LEITE, Travesti da lambada e deusa das águas (2013)

Laura Fraiz | Cortesia da artista

BIA LEITE: Adriano bafônica e Luiz França She-há (2013)

Laura Fraiz | Cortesia da artista



Essas duas obras de Bia Leite foram duramente criticadas por quem se organizou para censurar a exposição. "Bia talvez seja uma das poucas artistas brasileiras a enfrentar com desenvoltura e coragem esse tema tabu, que é a homossexualidade na infância e o portentoso sofrimento que crianças atravessam na fase escolar e no início da adolescência. A artista produziu essas pinturas a partir da combinação de fotografias das crianças retiradas do Tumblr www.criancaviada.tumblr.com, onde são postadas fotografias da infância dos próprios usuários LGBT com comentários", explica o catálogo da exposição.

CIBELLE CAVALLI BASTOS: Is a Feeling, 2013

Bruno Leão | Cortesia dx artistx e Galeria Mendes Wood DM
Cibelle reproduz a figura de uma criança comendo e segurando uma tigela em que se lê a palavra "love". Sobre seu rosto, um sticker de arco-íris. Com uma linguagem que lembra a publicidade, ela apresenta "o afeto como interferência na forma de um 'ruído conceitual''. "O ingresso de tal característica na realização desse trabalho perturba a realidade material da obra, cujos princípios não toleram características subjetivas dessa natureza", diz o catálogo da exposição.

EDUARDO CRUZ: Truque I, 1980

Fabio Del Re e Carlos Stein - VivaFoto | Cortesia MARGS

A obra em terracota integra o acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS). É uma "caixa" fechada, que dá a noção de aprisionamento do corpo.

EFIGÊNIA ROLIM: Trasque traque, 1991

Rafael Dabul | Cortesia da artista



Feita de vários materiais, a obra produz som se ativada pelo espectador. A artista, de 86 anos, é autora do poema "Será que ela é normal", também citado em Queermuseu.

FELIPE SCANDELARI: Last Resort, 2016

Cortesia do artista

A obra de Scandelari traz uma madona carregando um chimpanzé e é marcada por itens iconográficos que remetem desde a pintura do século 16, como a caveira, até elementos contemporâneos, como uma galinha azul.

FERNANDO BARIL: Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, 1996

F. Zago/Studio Z | Cortesia do artista


FERNANDO BARIL: Halterofilista, 1989

F. Zago/Studio Z | Cortesia do artista

As obras de Fernando Baril, de acrílico sobre tela, também irritaram os militantes do MBL do Sul, sobretudo a que traz uma imagem de Jesus com vários braços, num cruzamento com a deusa Shiva. Essa obra tem 21 anos. Já a Halterofilista, de 1989, foi feita no auge do culto ao corpo pelo fisioculturismo, dos anos 80. "E, simultaneamente, no ápice da epidemia HIV/AIDS com seu ingresso na comunidade gay, determina um longo período de estigmatização do corpo masculino como lugar da doença", explica o catálogo da exposição.

FLÁVIO DE CARVALHO: Retrato de Sangirardi Junior, 1939

Jaime Acioli / Cortesia Pinakotheke
Na aquarela sobre papel de Flávio de Carvalho, escorre da boca do homem retratado um fio de baba. "A cabeça paira no ar, sem um fundo sobre o qual sustentar-se. Não se sabe, por ora, se ele é o canibal ou o canibalizado", diz o texto que explica a aquarela. "O que é bom para os outros não é para mim", disse o artista, que morreu em 1973, deixando um legado revolucionário nas artes, com grande destaque nos anos 30.

LEONILSON: Agora e as oportunidades, 1991

Rubens Chiri | Cortesia Projeto Leonilson



De uma coleção particular, Agora e as Oportunidades é uma das obras de Leonilson escolhidas para a exposição. O artista tem grande reconhecimento no exterior por ter uma arte marcada pelas questões LGBTQ. Morreu de aids em 1993.

LYGIA CLARK: Cabeça coletiva, 1975

VivaFoto - Fabio Del Re e Carlos Stein Cortesia Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark”

Esta obra em materiais diversos é uma das escolhidas pelo curador Gaudêncio Fidélis para marcar a relevância da artista na discussão sobre o canibalismo cultural. Outra obra da artista, também de reconhecimento internacional, é a "Baba Antropofágica". A obra foi incluída recentemente na décima edição da Bienal do Mercosul e "trata a diversidade como princípio geracional", como diz o catálogo da exposição.

MARCOS CHAVES, sem nomes, 2001

Marcos Chaves

Da série Ecléticos, as fotografias de Marcos Chaves foram produzidas para o Castelinho do Flamengo, no Rio, em 2001, uma edificação construída em estilo eclético. Traz elementos que transitam entre a arte decó, a noveau e o neogótico francês. "Essas intervenções cosméticas que o artista realizou em elementos arquitetônicos do lugar e que depois foram 'congeladas' através da imagem fotográfica ativam outro princípio em operação: aquele das inclinações de gênero do cenário arquitetônico e de sua atmosfera", informa o texto do catálogo.

MÁRIO RÖHNELT: Sem título, 1983

Cortesia do artista

Destituídos de contexto, os objetos retratados no desenho de Röhnet "flutuam inadvertidamente". Os organizadores da exposição explicam que a obra foi produzido em "um período em que a cultura do fumo vivia em sintonia comum a erotização queer da oralidade, em que a forma fálica do cigarro ingressa no universo popular uma intensidade inimaginável".

MILTON KURTZ: Ataque Automático, 1985

Fabio Del Re e Carlos Stein - VivaFoto | Cortesia MARGS

Ataque Automático (1985) conduz para o universo pop da ficção científica e da cultura queer. "Dos 'buracos negros', dos 'pontos cegos' ao universo transgender, o protesto como modo de transgressão assinala a importância e o adiantado dessa obra no meio local, em meados da década de 1980, quando o contexto era ainda mais conservador, embora estejamos vivendo um tipo de conservadorismo programático. Se, na época, parte dele se devia justamente à ignorância, hoje esse conservadorismo opera a partir do conhecimento e de sua própria instrumentalização", aponta o texto do catálogo, produzido antes da censura da exposição.

NELSON BOEIRA FAEDRICH: Oxumaré, 1980

Fabio Del Re e Carlos Stein - VivaFoto | Cortesia MARGS

Do álbum "Deuses do panteão africano: Orixás", esta obra traz um dos orixás, Oxumaré, e o arco-íris como um "dispositivo semântico" relacionado ao tema LGBTQ.

NINO CAIS: Sem título, 2009

Cortesia do artista e Galeria Casa Triângulo

O próprio artista se fotografa com adereços e apresenta duas imagens de si mesmo, que invocam, segundo os organizadores da mostra, uma entidade supostamente contemporânea, "cuja dimensão ficcional atribui uma dúvida dramática à vocação do retrato".

ODIRES MLÁSZHO: The Dynamics of Change, 2011

Cortesia do artista e Galeria Vermelho

Feita para uma capa de livro de mesmo nome, a obra traz o "duplo", temática bastante abordada na exposição. "O duplo como espelhamento e/ou complemen- taridade", diz o catálogo.

OTTO SULZBACH: Sem título, 2011

Raul Holtz | Cortesia MARGS

Feita com vidro e resíduo de borracha industrial, a obra é composta de duas peças. Faz parte do acervo do MARGS.

PAULO OSIR: Imigrante Lituano, 1930

Fabio Del Re e Carlos Stein - VivaFoto | Cortesia MARGS

O óleo sobre tela de 1930 traz um menino cego de um olho. "Com o olho direito cego, que coincide justamente com o lado mais escuro da pintura, e olhando em direção ao espectador com o outro, é visível sua tristeza, demonstrada pela posição das mãos e pela leve curvatura do corpo", descreve o catálogo.

PEDRO AMÉRICO: Busto de Jovem, 1889

F. Zago/Studio Z | Cortesia Pinacoteca Ruben Berta

A obra de Pedro Américo, um óleo sobre cartão, faz parte do Acervo Pinacoteca Rubem Berta, de Porto Alegre. "O caráter idealizado dessa pintura não dissimula uma inclinação para a sexualidade erotizada da juventude, cuja construção cultural está subjugada ao olhar do pintor, refletida na instrumentalização hierárquica da atribuição de erotismo do corpo. Se há um legado trazido pela contemporaneidade, foi livrar-nos do obscurantismo do olhar e atribuir uma visão crítica ao modo como vemos as imagens", afirma o catálogo de Queermuseu.

ROBERTO CIDADE: Cristo Nosso de Cada Dia, 1978

Fabio Del Re e Carlos Stein – Vivafoto | Cortesia MARGS

O Cristo crucificado está presente em diversas obras da exposição. Nesta peça em ferro soldado de Roberto Cidade, tubos atravessam seu corpo e o pênis está ereto. Diz o catálogo: "O pênis ereto atribui-lhe uma condição humana, distante das imagens de representação de Cristo, comumente disfarçadas com sua genitália coberta. As correntes que lhe prendem o corpo reposicionam a figura em um universo da sexualidade e do prazer, embora saibamos que esses dois aspectos da dimensão humana (prazer e tortura) muitas vezes andaram (e andam) juntos".

RODOLPHO PARIGI: Libélulis Corpus, 2014

Cortesia do artista e Galeria Nara Roesler

As "asas" de uma libélula são conduzidas por um pênis em movimento ascensional. Foi feita com óleo, caneta permanente e colagem sobre papel.

SANDRO KA: Reconhecimento, 2008

Fabio Del Re e Carlos Stein - Vivafoto | Cortesia MARGS

Do acervo do MARGS, a obra de Sandro Ka fala sobre a identificação. São duas figuras de veados, uma de plástico e outra de porcelana. Um brinquedo e um objeto de decoração. Os dois objetos se olham, mas apontam para a diferença como complementar.

SILVIA GIORDANI: La Femme 4, 2011

Silvia Giordani/Cortesia da artista e MARGS

A fotografia de Silvio Giordani traz uma menina com roupa de adulto, ensaiando um passo de dança. "A gestualidade notadamente queer dessa menina, com seu vestido de cores metálicas que acumulam as cores do arco-íris na extremidade e repousam sobre o piso, reverbera em diversas outras obras nesta exposição", explica o catálogo.

SUZANA LOBO: Poluída at certo ponto, 1971

Eliana Borges | Cortesia MAC-PR

Um mulher nua em meio a um cenário cromático recebe um facho de luz. "O título da pintura pode referir-se ao universo 'contaminado' da mercadoria e da comunicação, visto que esses 'faróis' projetam sinais e parecem consumir a identidade do sujeito", diz o catálogo.

TELMO LANES: O Buraco, 2004

Fabio Del Re | Cortesia do artista
Foi posicionado na mostra do Santander como uma imensa cratera sobre a qual gravitam outras obras que falam em "buraco negro". Um "buraco negro da história da arte e de seu processo de institucionalização. Afinal, o olho que vê é o mesmo que criminaliza a inclusão, deixando de lado uma parte considerável da produção artística, especialmente aquela que não se enquadre nas prerrogativas canônicas", explica o catálogo.
* Todas as fotos foram cedidas à reportagem pela Queermuseu
https://www.buzzfeed.com/tatianafarah/veja-30-obras-da-exposicao-censurada-no-santander-cultural?utm_term=.vx5lzY9RD#.pg8KYorE6











Em causa estavam, entre outras, obras de Bia Leite, cuja pintura aborda o bullying homofóbico infantil, Adriana Varejão, que retrata, como parte de uma imagem maior que pretende lidar com a colonização do Brasil, a sua miscigenação e as hierarquias criadas pela raça, cenas sexuais de dois homens com cabras, e Fernando Baril, que junta braços extra e elementos consumistas a Jesus Cristo na cruz, entre outras representações de figuras religiosas. Outra das fontes da discórdia foi uma instalação em que, dentro de uma mala antiga, várias hóstias tinham escritas palavras como "vagina", "pénis" ou "ânus".



Citado pelo jornal O Globo, o curador da exposição, Gaudêncio Fidelis, diz que não foi consultado quanto ao encerramento da exposição, nem sequer informado de que tal iria acontecer, alegando que descobriu através do Facebook. Em entrevista ao site oficial do jornalista e vereador do Rio de Janeiro David Miranda, Fidelis explicou que as obras tinham sido retiradas do contexto. 

Queermuseu recebeu 800 mil reais (sensivelmente 215 mil euros) através da Lei Rouanet, uma lei de incentivo às artes. Os protestantes são contra usar-se dinheiro público para algo que, na sua perspectiva, vai contra os valores da sociedade e ainda por cima é dirigido a jovens de idade escolar. Numa das alíneas dos objectivos da exposição, consultável no site que agrega todos os projectos submetidos à lei, menciona-se que um dos fins da exposição é "aproximar o público escolar das diversas linguagens da arte contemporânea". 

O MBL, Movimento Brasil Livre, um proeminente movimento de jovens conservadores, foi das vozes contrárias mais activas. Num artigo de opinião publicado na Folha de S. Paulo, Renan Santos, fundador do MBL, queixou-se de "uma elite pública e cultural" continuar "utilizando dinheiro público para desrespeitar e vilipendiar os valores mais profundos da sociedade brasileira". O próprio prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr., partilhou no Facebook um post, apagado horas depois, a associar a exposição a zoofilia e pedofilia.

Num comunicado enviado aos clientes a explicar o sucedido, o banco pediu desculpa: "Nós, do Santander, pedimos sinceras desculpas a todos aqueles que enxergaram o desrespeito a símbolos e crenças na exposição Queermuseu. Isso não faz parte de nossa visão de mundo, nem dos valores que pregamos. Por esse motivo, decidimos encerrar antecipadamente a mostra neste domingo, 10/09."

A exposição incluía obras de artistas conhecidos de diferentes eras. Além dos já mencionados Bia Leite, Adriana Varejão e Fernando Baril, há nomes como Lygia Clark, Antônio Obá, Yuri Firmesa, Cândido Portinari, Alfredo Volpi, Leonilson, Clóvis Graciano, Hudnilson Jr. ou Rogério Nazari.

Na Folha de S. Paulo, o jornalista e crítico de arte Silas Martí associa este caso a outros recentes, como o do performer Maikon K., que há dois meses foi detido a meio de uma actuação em Brasília por “atentado ao pudor”, visto estar todo nu, ou, em 2011, o cancelamento de uma exposição da fotógrafa norte-americana Nan Goldin no Rio de Janeiro.

O Globo cita uma fonte ligada ao Santander Cultural que diz que o encerramento também se deveu ao medo de represálias, com dependências do banco a terem sido vandalizadas por opositores da exposição, o que vai ao encontro de notícias sobre apoiantes do MBL terem importunado visitantes da exposição. Contudo, no artigo de opinião de Renan Santos já mencionado, o fundador do MBL sublinhou fortemente o carácter pacífico da contestação e alegou que "membro algum do movimento se manifestou no local ou constrangeu os presentes".

Estão convocados, para esta terça-feira, protestos contra o encerramento por parte de associações LGBT.



"Queermuseu": Ministério Público Federal do RS recomenda reabertura imediata da exposição

Órgão deu ao Santander Cultural prazo de 24 horas para responder se acatará a recomendação


O Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul (MPF-RS) recomendou nesta quinta-feira ao Santander Cultural a imediata reabertura da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença da Arte Brasileira até o dia 8 de outubro – data em que ficaria originalmente aberta para visitação. Acusada de conter obras que ofendiam símbolos católicos e que faziam apologia à pedofilia e à zoofilia, a mostra foi precocemente cancelada no último dia 10. O prazo do MPF para que o Santander responda se acatará ou não a recomendação é de 24 horas. A instituição não é obrigada a seguir a sugestão dos procuradores, mas corre o risco de enfrentar uma ação judicial.
A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão ressalta que os organizadores da exposição poderão adotar medidas informativas ou de proteção à infância e à adolescência no que diz respeito a eventuais representações de nudez, violência ou sexo nas obras expostas e também medidas visando a garantia da segurança das obras e dos visitantes. 
Outra recomendação do MPF é que o museu realize, a seu custo, nova exposição em proporções e objetivos similares a que foi interrompida e que esta esteja aberta ao público em um período não inferior a três vezes o tempo em que a Queermuseu permaneceu sem visitação. 

O procurador da República Fabiano de Moraes, procurador regional dos Direitos do Cidadão, ressalta no texto da recomendação que o precedente do fechamento de uma exposição artística causa um efeito deletério a toda liberdade de expressão artística, trazendo a memória situações perigosas da história da humanidade como os episódios envolvendo a "Arte Degenerada", com a destruição de obras na Alemanha durante o período de governo nazista.
Segundo o procurador da República, as obras que trouxeram maior revolta em postagens nas redes sociais não tem qualquer apologia ou incentivo à pedofilia, conforme manifestação pública, divulgada por diversos meios de comunicação, dos promotores de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul com atribuição na garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes que estiveram visitando as obras. 
Para Fabiano, as principais polêmicas que cercaram a exposição Queermuseu seriam contornadas, em grande parte, com a inclusão de informação, por parte dos organizadores, de aviso aos responsáveis por crianças e adolescentes no que se refere ao teor de algumas obras existentes na exposição, mesmo que tal exigência não esteja clara no Estatuto da Criança e Adolescente.
Procurada por ZH, a assessoria de imprensa do Santander Cultural afirmou que a instituição ainda não tem uma posição sobre acatar ou não a recomendação. 

Leia a nota do MPF na íntegra:

O Ministério Público Federal, por meio do Procurador da República signatário, no exercício das atribuições de Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, e com fundamento nos arts. 129, II e III, da CF e art. 6º, XX, da LC 75/93, e nos termos da Res. CSMPF nº 87/2006, 
CONSIDERANDO o teor das representações recebidas nesta PRDC, tanto favoráveis quanto contrárias ao teor da exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” e dos eventos que culminaram com o encerramento abrupto da exposição em exibição no Santander Cultural, pelos patrocinadores da mostra, no dia 10 de setembro de 2017;
 CONSIDERANDO que a exposição, conforme resumo constante no sítio eletrônico Versalic, do Ministério da Cultura, é “uma exposição que busca explorar a diversidade na arte e na cultura contemporânea através de um conjunto de obras que percorrem um arco histórico de meados do século 19 até a contemporaneidade.” 
 CONSIDERANDO que um dos objetivos gerais da exposição, exposto na mesma plataforma, refere a “uma exposição que visa dar projeção à cultura contemporânea, através das inúmeras questões de gênero que ultrapassam os mais diversos aspectos da contemporaneidade” (grifei);
CONSIDERANDO que os próprios itens de divulgação da exposição afirmavam de que se tratava da “primeira exposição com abordagem Queer realizada no Brasil, que traz um recorte totalmente inédito na América Latina.” 
CONSIDERANDO que, segundo o próprio curador da exposição, o termo queer “designa um significante não normativo, que se refere a uma multiplicidade de posições, identidades, práticas e expressões de gênero, que rompem com a heteronormatividade e atuam fora das categorias binárias”. 

CONSIDERANDO que o fechamento abrupto da exposição, ainda que por alegadas situações de segurança, possuem um impacto negativo tanto em relação à liberdade artística, quanto em relação ao respeito à diversidade; 
CONSIDERANDO que art. 3º, IV da Constituição Federal que estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; 
 CONSIDERANDO que a igualdade como reconhecimento enseja a não marginalização de determinados grupos em razão de sua identidade, religião, aparência física ou sua expressão de gênero; 
CONSIDERANDO ainda que mesmo atos aparentemente neutros podem caracterizar uma discriminação indireta ao colocar uma pessoa ou grupo minoritário, em posição de desvantagem comparativamente com outras; 
CONSIDERANDO que conforme o art. 216, IV da Constituição Federal, se incluem no patrimônio cultural brasileiro as obras, objetos, documentos edificações e demais espaços destinados às manifestações artísticas e culturais; 
CONSIDERANDO que o § 4º, do mesmo dispositivo constitucional informa que os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei; 
CONSIDERANDO que a liberdade de expressão não se esgota no dever de abstenção do Estado em praticar atos de censura, necessitando também por parte dele e dos por ele patrocinados exercerem ações positivas visando a possibilidade real de exercício e o aprofundamento dos debates sobre os mais diversos aspectos da sociedade; 
CONSIDERANDO que na atualidade moderna, os meios de comunicação virtual, exercem impacto, negativo ou positivo, sobre as pessoas, cabendo atuações positivas voltadas a não repressão de ideias, inclusive aquelas rejeitadas pela maioria; 
 CONSIDERANDO que a liberdade de expressão constitui direito assegurado constitucionalmente e vital para a dignidade humana; 
CONSIDERANDO que as obras que trouxeram maior revolta em postagens nas redes sociais não tem qualquer apologia ou incentivo à pedofilia, conforme manifestação pública, divulgada por diversos meios de comunicação, dos Promotores de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul com atribuição na garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes que estiveram visitando as obras; 
CONSIDERANDO que as principais polêmicas que cercaram a exposição Queermuseu seriam contornadas, em grande parte, com a inclusão de informação, por parte dos organizadores, de aviso aos responsáveis por crianças e adolescente referente ao teor de algumas obras existentes na exposição, mesmo que tal exigência não exista no Estatuto da Criança e Adolescente; 
CONSIDERANDO que o precedente do fechamento de uma exposição artística causa um efeito deletério a toda liberdade de expressão artística, trazendo a memória situações perigosas da história da humanidade como os episódios envolvendo a “Arte Degenerada” (Entartete Kunst), com a destruição de obras na Alemanha durante o período de governo nazista; 
CONSIDERANDO que a exposição contou com financiamento indireto federal, via renúncia fiscal, existindo a obrigação conjunta dos patrocinadores em cumprir o objeto previsto na exposição em detrimento dos artistas e do patrimônio artístico;
 CONSIDERANDO que um dos patrocinadores do local da exposição é uma instituição bancária que tem expertise e totais condições de realizar procedimentos de segurança que garantam tanto a segurança das obras expostas, quanto dos visitantes, inclusive impedindo acesso de qualquer material que possa danificar as obras; 
CONSIDERANDO que as negociações visando a reabertura da exposição tratadas com os responsáveis, inclusive eventual manutenção da exposição em outro local resultaram infrutíferas; 
Resolve, com fulcro no artigo 6º, inciso XX, da Lei Complementar n. 75/93, recomendar ao SANTADER CULTURAL que: 
 a) providencie a imediata reabertura da exposição “Queermuseu – Cartografias da diferença da arte brasileira” minimamente pelo período em que estava previsto originalmente seu encerramento, sem prejuízo de adotar: (i) medidas informativas ou de proteção a infância e a adolescência no que diz respeito a eventuais representações de nudez, violência ou sexo nas obras expostas e (ii) medidas visando a garantia da segurança das obras e dos visitantes; 
b) a título de compensação pelo período em que a exposição permaneceu sem acesso ao público em geral, realize, a suas expensas, nova exposição em proporções e objetivos similares a que foi interrompida, preferencialmente com temática relacionada a diferença e a diversidade, e que  esteja aberta aos visitantes em período não inferior a três vezes o tempo em que a “Queermuseu” permaneceu sem visitação. 
 Esclarece o Ministério Público Federal que o não acatamento infundado do presente documento, ou a insuficiência dos fundamentos apresentados para não acatá-lo total ou parcialmente poderá ensejar a adoção das medidas judiciais cabíveis. 
Com fundamento no art. 6º da LC 75/93, parte final do inciso XX, o Ministério Público Federal fixa o prazo de 24 (vinte e quatro) horas para responder se acatará ou não a presente recomendação, informando as medidas adotadas. 
Porto Alegre, 28 de setembro de 2017. 
Fabiano de Moraes 
Procurador da República Procurador Regional dos Direitos do Cidadão 



Jean-Wyllys, EU FUI UMA CRIANCA VIADA, 2017-09-30


EU FUI UMA CRIANÇA VIADA
(ou: Delmasso, há crimes reais aos quais você deveria dar alguma resposta)


Lésbicas, gays, bissexuais e trans não nasceram de chocadeiras. Nós também tivemos infância e sofremos por não nos encaixarmos no padrão do menino esportista e viril ou da menina prendada e submissa. Colecionamos histórias de violências, mas também de afirmação, de construção daquilo que somos hoje, com orgulho.
“Crianças viadas" sim, porque eu também fui uma delas!
Me entendi criança viada aos 6 anos de idade, ao sofrer a primeira agressão homofóbica, mesmo sem saber ainda o porquê. Criança viada porque, desde a infância, eu borrava as fronteiras de gênero, gostava de desenhar, de conviver com as meninas, das coisas que a sociedade diz que não são “de menino” e que ensina aos meninos a desprezar: o amor, o sentimento, a empatia, o respeito pelo outro, a intimidade... Ter sido uma criança viada é algo que vai muito além da minha orientação sexual, entendida e assumida com a maturidade.
Foi por sensibilidade com histórias que se parecem também à minha que Bia Leite - artista que agora vê seu nome difamado pela boca de canalhas oportunistas - começou a transformar em pinturas as fotos de infância de pessoas LGBT, enviadas por elas mesmas, a um Tumblr que emprestou seu nome à série de pinturas que representa crianças viadas reais, em momentos reais. Os quadros ganharam projeção nacional por estarem presentes na exposição QueerMuseu, fechada após protestos de grupos conservadores, sob a falsa acusação de apologia à pedofilia. Acusação que foi desmentida após visita do Ministério Público, que afirmou não existir qualquer crime ali.
Um desses quadros me foi dado de presente por Bia, e eu fiquei muito lisonjeado, por tudo o que aquela obra representa. É para isto que serve a arte: para nos encantar, para nos mostrar o belo, mas também para provocar, para denunciar e para expor as violências sofridas por todas as crianças viadas no país que mais mata LGBTs no mundo. E as reações à obra provam que Bia foi certeira: imediatamente, os mais dedicados à promoção dessas violências correram para associar as obras à prática criminosa. Sequer conseguem esconder suas reais motivações. Estão expostos aos olhares mais atentos!
Rodrigo Delmasso é deputado distrital, função análoga à de deputado estadual no Distrito Federal. Apadrinhado político do bispo Rodovalho, é membro da bancada de pastores evangélicos na Câmara Legislativa, uma das bancadas mais denunciadas por envolvimento com corrupção. Ele próprio acumula investigações por malversação de recursos públicos quando à frente da Secretaria do Trabalho do DF. Leva ainda na bagagem a presença de investigados pela Polícia Federal como comissionados em seu gabinete. Delmasso também alcançou projeção nacional, mas como opositor à lei local que pune quem comete violência homofóbica. Alega, claro, que o faz para proteger as famílias, já que aparentemente essas "famílias" só poderão prosperar com o sofrimento de cerca de 10% da população brasileira. Delmasso se coloca como cúmplice dessas violências, ao preferir impedir seu combate!
Agora, Delmasso decidiu dar um passo a mais: à frente da CPI da pedofilia, quer convocar Bia Leite. Se fosse uma pessoa minimamente honesta, teria ao menos lido o que dizem o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, antes de afirmar tamanha asneira. Os artigos 240 e 241 do ECA são claros em definir o que é o objeto do crime: "qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais". Ou seja, Delmasso sequer pode dizer que se apoia sobre a legislação vigente. Ele não busca justiça, não busca a proteção de direitos difusos de vítimas nem de qualquer cidadão. Apenas atende interesses pessoais em detrimento de um conjunto de cidadãos e cidadãs. Viola qualquer princípio ético, inscrito ou não nos códigos das instituições do Estado de direitos. Age apenas para perseguir aqueles que seus colegas também insistem em atacar diariamente, sejam nos espaços legislativos, sejam nos púlpitos das igrejas. E essa canalhice não ficará impune!
Jean Wyllys, 2017-09-30