quinta-feira, 21 de março de 2019

O mundo gay de António Botto





Vive só à mercê da sensação!

Definirmos, —
É reduzirmos
A alma
E é fechar o entendimento

António Botto, Canções

 
 
António Botto é considerado um poeta menor no espectro literário em Portugal. Não é estudado na escola, nem na generalidade da Academia. Não figura, com certeza, nas listas dos maiores poetas do país e, quando é lembrado, é reconhecido principalmente pela sua amizade com Fernando Pessoa. Mas durante a sua vida, na primeira metade do século XX, Botto era tema de conversa ao passar nas ruas de Lisboa, era caricaturado em jornais e revistas, ou encarnado em romances como “A Velha Casa”, de José Régio.
Era uma personagem destes tempos por estar à frente deles. Em 1921, lançou a segunda edição de Canções, um conjunto de poemas editados pela Olisipo, editora de Pessoa, com uma capa que mostrava um retrato de Botto, de aspeto andrógino, olhar sensual e ombros destapados. Esta era a primeira vez que alguém escrevia, de forma clara, assumida e publicada, sobre experiências homossexuais na primeira pessoa, em Portugal. Para Anna Klobucka, autora de “O mundo gay de António Botto”, significou “o primeiro coming out público” no país. E, por isso, atrás de “Canções” vieram as perseguições.
 

Embora não tenha direito à minha vida, tenho direito às minhas ideias
(Epígrafe de “Cartas que me foram devolvidas”)
 

Armando Ferreira, jornalista no jornal A Capital, publicou uma crónica na primeira página com o cabeçalho “O livro da D. Antónia” que denunciava a obra de Botto como vinda do “desejo de exibicionismo”: “Nem mais uma palavra de nojo, nem mais um ‘pst, pst’ ao polícia da esquina para levar a registar com uma caderneta este mancebo que tira o retrato a mostrar as ‘clavículas’ (…) Mas não haverá entre nós polícia de costumes, ou três bons honestos espíritos capazes de lançar para o monturo estes dejetos?”.
No início de 1923, os tais “polícias de costumes” por que Armando Ferreira bradava constituíram a Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, liderada por Pedro Theotónio Pereira, na altura com 20 anos e que, mais tarde, durante o Estado Novo, foi Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, Ministro do Comércio e Indústria, representante português junto do regime de Franco, e ainda embaixador em Espanha, Brasil, Estados Unidos e Reino Unido. Numa entrevista concedida por esta altura, o número um do gang dizia: “Principiaremos, em boa ocasião, por meter na ordem esses equívocos senhores que andam por aí, nas ruas e nos cafés, irritando o indígena – como eles dizem – com maneiras femininas e elegâncias ridiculamente exageradas”, prometendo “fiscalizar as livrarias e meter também na ordem os artistas decadentes, os poetas de Sodoma, os editores, autores e vendedores de livros imorais”.
 

Quem é que abraça o meu corpo
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito
Quem é que fala da morte
Docemente ao meu ouvido?
– És tu, senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido.
—Vibrar!

António Botto, Canções
 

O movimento homofóbico iniciado por estudantes da capital teve o apoio do Governo Civil de Lisboa, que se prontificou a confiscar “Canções” e “O meu manifesto a toda a gente”, de Botto, e ainda outros livros e panfletos escritos por Raul Leal, Judith Teixeira, Álvaro de Campos e Fernando Pessoa.
 
“O meu manifesto a toda a gente”, apreendido, era a resposta que Botto deixava a quem o criticava: “Eu vivo tanto nas garras da minha Arte – a quem me entrego mais e mais – que nada ouço, nem poderia, dos uivos da vilanagem”. As garras nunca o travaram: continuou a escrever e a escandalizar durante toda a sua vida. Nas duas décadas seguintes, publicou várias edições de “Canções”, escreveu prosa, contos para crianças, ensaios e peças de teatro. Em 1947, mudou-se para o Brasil, onde escreveu os seus mais pornográficos poemas, nunca editados, talvez devido à sua inesperada morte, em 1959, atropelado numa avenida do Rio de Janeiro.


Começam as línguas a brincar
Nas glandes maciças e lindas
Dos dois formosíssimos caralhos,
Esbeltos, esculturais,
Macios, veludo, mas rijo
Como granitos imortais
Que se modelavam ao lamber
Daquelas línguas vermelhas
Como rosas sem abelhas

António Botto, Caderno Proibido 

Passados 60 anos da sua morte, relembramos o legado deste “poeta de Sodoma” que escreveu o que não podia ser dito. Entrevistamos Anna Klobucka, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas pela Universidade de Harvard e autora de vários livros, incluindo “O mundo gay de António Botto”, publicado em 2018. Falamos sobre a sua obra poética, a perseguição homofóbica de que sofreu, a sua relação com Fernando Pessoa, e a razão porque parece ter sido esquecido pelo país.
 
(Obrigado também a Diogo Agostinho, Luís Sousa, Nádia Simões e Artur Freitas, que ajudaram nesta entrevista com sugestões de perguntas e temas. Um agradecimento especial a Adam Mahler, por ter ajudado na preparação e estrutura da entrevista e por ter sugerido que abordássemos este tema tantas vezes quantas as necessárias até que o fizéssemos.)
 

Anna Klobucka sobre António Botto, o primeiro poeta gay português (É Apenas Fumaça)
Captação de som e vídeo: Bernardo Afonso
Edição de texto: Pedro Miguel Santos
Edição de vídeo: Joana Batista
Edição som: Bernardo Afonso
Entrevista: Ricardo Esteves Ribeiro
Preparação: Ricardo Esteves Ribeiro, Pedro Miguel Santos, Bernardo Afonso
Texto: Ricardo Esteves


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Ligações externas:

Antônio Botto – Canções. São Paulo, Poeteiro Editor Digital, 2014. Publicado originalmente em 1921.
António Botto e o Ideal Estético em Portugal”, Fernando Pessoa. Revista Contemporânea, vol. I, n.º 3, ano I, 1922.
Através da obra do Sr. António Botto (Análise Crítica), Amorim de Carvalho. Porto, Edição do Autor, 1938.
El semiheterónimo Antonio Botto”, José Luís Garcia Martín. Archivum: Revista de la Facultad de Filología, ISSN 0570-7218, Tomo 36, 1986 (Ejemplar dedicado a: Miscelanea Filológica dedicada al profesor Jesús Neira) , págs. 381-408
A invenção do eu: apontamentos sobre a vida de António Botto”, Anna M. Klobucka.Forma Breve: Homografias: Literatura e Homossexualidade, vol 7. Aveiro, Universidade de Aveiro, 2010, p.63-80.
Canções / Songs: Fernando Pessoa traduz António Botto, Maria Cardoso Pereira Vizcaíno. Instituto Politécnico do Porto - ISCAP, outubro de 2012.
Corpo, Expressão e Identidade em Adolescente de António Botto”, Rodrigo Corrêa Martins Machado e Gerson Luiz Roani. Gláuks v. 12 n. 2 (2012) 12 – 26.
Artimanhas de Eros: Aspectos do erotismo e do esteticismo na poética de António Botto, Ricardo Marques Martins. Araraquara, Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2013.
António Botto”. In: Wikipédia, a enciclopédia livre
“António Botto não foi só amigo de Fernando Pessoa. Foi o primeiro (do mundo) a escrever poesia homoerótica sem véus”, Rita Cipriano. Observador, 2018-08-11
“Obras de António Botto vão voltar às livrarias ainda este ano”, Rita Cipriano. Observador, 2018-08-01
“O Mundo Gay de António Botto”, Anna M. Klobucka. Sistema Solar, 2018-06-11
A maior felicidade é ser-se compreendido. Sete poemas para recordar António Botto”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-16
“Como a existência dramática de António Botto acabou numa avenida de Copacabana”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-16
“Um colóquio para ficar a conhecer melhor António Botto”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-15
“Dois dias para celebrar António Botto e Fernando Pessoa, amigos e poetas”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-05
“Anna Klobucka: António Botto e Fernando Pessoa beneficiaram de forma igual e recíproca da sua relação de amizade”, Rita Cipriano, Observador, 2019-03-16
“Documentário sobre António Botto estreia a 19 de março na RTP 2”, Rita Cipriano, Observador, 2019-03-16