Alex Gordenkov, 2022 |
Uma
poética do olhar e do desejo
Embora a dicção ou
a representação do homoerotismo na poesia portuguesa não oriunde necessariamente
de um movimento formalizado em termos de expressão, esta tematização parece constituir
uma espécie de continuum, uma tradição silenciosa, que nesse caso não é defeito,
mas qualidade, a que determinados poetas recorrem e de que se utilizam com alguma
recorrência. Para além da simples semelhança temática, há […] uma recorrência a
determinadas imagens e recursos que, se não são próprios dessa poesia, parecem engendrar-se
como referencial ou recurso comum ao procedimento desses diversos poetas.
Assim, cabe enumerar alguns desses vetores, de forma a desenhar essa forma de dizer:
a) relação do
fazer poético com a experiência do corpo do outro: escrever o poema é antes experimentar
um outro corpo igual, desejante e orgástico, é escrever o desejo, como é percetível
em Al Berto (A procura de um vento no jardim de Agosto, Salsugem) e Luís
Miguel Nava (Películas e Onde à nudez);
b) a vida quotidiana,
o corriqueiro e o comum da vida elevados à motivação estética
do poema, como se observa
particularmente em poemas como "Com halteres e outros instrumentos':
de Joaquim Manuel Magalhães, e "Opus 133”, de João Miguel Fernandes
Jorge. Neste item podem ser relacionados, ainda, a conversão de factos comuns em
metáforas complexas, de forma a estetizar este quotidiano e as vivências homoeróticas
nele localizáveis. Da mesma forma, os lugares tradicionais de engate e as formas
variadas de aproximação afetivo-sexuais constituem dados de extrema recorrência;
c) revisão dos
valores próprios da lírica tradicional portuguesa, como por exemplo, a
utilização de recursos próprios da cantiga de amigo (As Canções, de
Botto), Al Berto (Três Cartas da memória das Índias), "Alba”, de
Joaquim Manuel Magalhães; ou mesmo a recorrência às formas tradicionais como a
canção e a elegia, em Eugénio de Andrade. Há na poética portuguesa uma relação que
parece intrínseca a sua constituição, que é a questão das formas de
representação do erótico. Desde as formas tradicionais da medievalidade - cantigas
líricas e satíricas -, passando por Camões, Garrett, Cesário e Pessanha, tem-se
sempre este índice como um forte traço do poético, podendo se constituir como um
vetor que se mantém e que é redimensionado à medida em que um novo valor, como
a representação homoerótica, passa também a comparecer no escopo literário de
forma mais amiúde nas produções mais recentes.
d) constante recurso
de referência a outros poetas que tematizam a mesma questão, como em João Miguel
Fernandes Jorge (Eugénio de Andrade, Mário de Cesaríny, Jean Genet), Al Berto
(Cesariny, Álvaro de Campos, Sá Carneiro);
e) construção poética
que geralmente perpassa a ordem sensorial, sobretudo o olhar: o enunciador
sempre observa a coisa amada, o objeto desejado ou uma situação e relata o
efeito dessa visada, que geralmente altera a sua forma de perceber o mundo; o
olhar fetichista é o que proporciona a enunciação poética;
f) a relação olhar/poema
estabelece ainda uma espécie de forma testemunhal, pela qual tanto o enunciador
procura representar aquilo que presencia, como também indica um processo de ficcionalização
do desejo, como no caso de Sena e Eugénio de Andrade. Nesse caso, o testemunho
se auto-rasura, visto que não indica necessariamente a presença do locutor, mas
o desejo de estar presente e testemunhar, como se vê, ainda, em Al Berto; é uma
forma de pautar o testemunho na ordem do desejo erótico, fazendo-o servir como
relato, posterior, de diversas sensações;
g) há ainda em poetas
como Fernando Pessoa, José Régio, Eugénio de Andrade e Jorge de Sena um procedimento
de encenação, uma espécie de redobra do processo de ficcionalização no qual o
enunciador, não sendo quem mormente enuncia desejos homoeróticos, precisa
fingir o fingimento duplamente, no mesmo sentido aludido por Pessoa;
h) esvaziamento do objeto
amoroso com relação ao seu gênero gramatical, procedimento recorrente em Eugénio
de Andrade, João Miguel Fernandes Jorge, Reinaldo Ferreira, dentre outros. Essa
dessubjetivação pode aprioristicamente indicar um desejo pelo feminino, mas, por
outro lado, indica a suspensão da anunciação clara em favor do mistério em
torno da identidade da coisa amada. Nesse sentido esse "vazio" do género
poderia indicar a interdição atinente ao enunciar do desejo por outro homem ou
mulher, demarcando a inefabilidade das relações homoeróticas;
i) constante
recorrência à figura do efebo, aos rapazes e aos homens mais jovens como
objetos sobre os quais recaem os desejos ou que precisam ser enunciados na sua
beleza, como bem se vê em Botto, Nava (Atrás da página, Há uma pedra feroz).
AI Berto (Alguns poemas da rua do Forte), Sena ("Ganimedes”,
"Sobre esta praia"), Pessoa ("Antinoo");
j) questão
escatológica: excrementos. sémen, saliva e suas decorrentes metáforas; no mesmo
diapasão, a constante recorrência a um corpo cindido, fragmentado, que muitas
vezes se esfacela pelo desejo, como em Nava, ou pela falta dele.
“Poesia e (Homo)Erotismo - sobre alguma produção poética portuguesa dos últimos 30 anos”, Emerson da Cruz Inácio. In: Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Ano 12. Número 22 (Jan-Jul/2010). São Carlos: UFSCar, 2010. Revista disponível em: https://issuu.com/revistaolhar/docs/olhar_22_site
Sem comentários:
Enviar um comentário