Índios vestidos de Jean-Baptiste Debret em Santa Catarina, 1834 |
“Não
existe pecado do lado de baixo do Equador”, escreveu o holandês Gaspar Barleu
ao se deparar com a libidinagem no Recife do século 17.
Não
EXISTIA. A liberdade sexual dos primeiros moradores do Brasil seria logo
substituída pela noção de transgressão, pelo pudor excessivo, pelas proibições
e pelo preconceito –a homofobia, por exemplo, nascia ali. Em que contribuíram
os europeus para a sexualidade das Américas além de nos apresentar à culpa?
Tudo o
que era possível trazer para cá, em termos sexuais, já era conhecido entre os
nativos: homossexualidade, bissexualidade, transexualidade, bigamia, poligamia.
As posições também iam muito além do “papai-e-mamãe” no escuro e sob lençóis
dos colonizadores: masturbação mútua, sexo anal, oral, grupal. Sexualmente
falando, eram os indígenas os avançados e os homens brancos, os primitivos. Mas
foi só chegar a igreja e pronto: a pretexto de civilizar-nos, destruíram
milênios de conhecimento autóctone sobre a sexualidade.
As
próprias narrativas dos primeiros cronistas são contaminadas pelo puritanismo
da época. No México, Hernán Cortés escreveu: “fomos informados de que são todos
sodomitas e usam aquele abominável pecado”. O tema da sexualidade, é claro, sofreu
censura por parte dos colonizadores, e só recentemente historiadores e
arqueólogos têm apresentado descobertas neste campo. Cortés estava bem
informado: entre os maias, a homossexualidade era frequente, e uma espécie de
rito de passagem da infância para a adolescência (como ocorre, aliás, com
tantos homens e mulheres, de forma velada, em todos os tempos).
“Viam
no prazer sexual um dom divino, equiparável ao alimento, à alegria, ao vigor
vital e ao repouso cotidiano. Era questão de moderar o desfrute daquele
presente, como se fazia com qualquer outro bem concedido pelos deuses”,
escreveu o antropólogo Alfredo López Austin em um dos artigos da edição
especial da revista Arqueologia
Mexicana sobre sexualidade entre os maias, em 2010.
A
masturbação ritual era praticada por muitos indígenas da América Central como
uma maneira de fecundar a terra, considerada “feminina”. As carícias mútuas
faziam parte do coito: o homem tocava as partes íntimas da mulher e a mulher
tocava o homem. Moderno, não? Tem gente que não faz isso até hoje…
Tudo
isso foi documentado em esculturas em pedra e cerâmica que ficaram escondidas,
trancafiadas em salas de museu até a metade do século 20. Uma mostra de arte
erótica pré-colombiana organizada no México em 1926 foi relegada a um salão
secreto durante décadas. Em Uxmal e Chichen Itzá há esculturas dedicadas ao
órgão sexual masculino, cujo significado ainda permanece um mistério. Supõe-se
que os falos gigantescos simbolizavam a fertilidade e eram objeto de culto.
No
Peru, só em 1957 foi aberta a sala onde ficavam escondidas as cerâmicas
eróticas pré-colombianas do Museu Nacional de Antropologia. Veio a público então
uma impressionante série de cerâmicas da cultura mochica, anterior aos incas,
representando atos sexuais de forma explícita, em posições que fariam corar
ainda hoje em dia algumas senhoras de Santana da renascida direita tupiniquim.
Algumas delas podem ser apreciadas no Museu Larco, em Lima.
Cerâmicas do museu Larco, em Lima: sexo oral |
masturbação mútua |
sexo anal |
Na
América protestante a repressão não foi diferente. Muito igualitária, a
sociedade Cherokee dava às mulheres postos semelhantes aos dos homens; elas
podiam integrar o conselho da tribo e ser guerreiras. O adultério era permitido
a ambos os sexos, sem punição, assim como o divórcio: bastava a mulher colocar
os pertences do homem para fora da casa.
Havia
ainda os transgêneros, encontrados em mais de 150 tribos norte-americanas.
Chamados de Two-Spirit (“dois
espíritos”) ou “berdaches”, eram homens que gostavam de estar entre as
mulheres, fazer as coisas que elas faziam e vestir-se como elas. Ou o
contrário: mulheres que gostavam de se vestir como homens. Os primeiros relatos
de colonizadores sobre os Two-Spirit aparecem
já no século 16. O preconceito contra eles só vai surgir mais tarde, por
influência do homem branco. A partir daí, eles passam a ser rejeitados por suas
tribos e são marginalizados.
Na
América católica, a “Santa” Inquisição foi convocada para reprimir sexualmente
os nativos, coibindo “delitos” como a bigamia ou a sodomia, embora fossem
práticas permitidas em algumas culturas indígenas. No México, conta-se do índio
Ángel Porecu, de Michoacán, punido por bigamia com cem chibatadas. No Brasil,
um projeto da Universidade Federal do Pará rastreou
os casos de naturais da Amazônia, entre eles indígenas, enviados aos tribunais
do “Santo” Ofício em Lisboa por “crimes” similares.
Foi o
caso da índia Florência Perpétua, de 28 anos, acusada de bigamia em 1766,
levada a Portugal e condenada à prisão, após a qual foi solta e admoestada a
viver com o primeiro marido. A sodomia (prática de sexo anal) também era
razão para julgamento e punição pela Inquisição, mas apenas a masculina. “A
sodomia feminina não era alvo da Inquisição porque não havia o derramamento de
sêmen, considerado pecado. A masculina era considerada bestialismo”, explica o
historiador Antonio Otaviano Vieira Jr., coordenador do trabalho.
Tribunal da Inquisição no México |
A ordem
era vestir as índias, cobrir o que foi olhado com tanto espanto e deleite pelos
primeiros exploradores. “Desde o início da colonização lutou-se contra a nudez
e aquilo que ela simbolizava. Os padres jesuítas, por exemplo, mandavam buscar
tecidos de algodão, em Portugal, para vestir as crianças indígenas que
frequentavam suas escolas. ‘Mandem pano para que se vistam’, pedia padre Manuel
da Nóbrega em carta a seus superiores”, escreve Mary del Priore no livro Histórias Íntimas. “Aos
olhos dos colonizadores, a nudez do índio era semelhante à dos animais; afinal,
como as bestas, ele não tinha vergonha ou pudor natural. Vesti-lo era afastá-lo
do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas duramente
combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados da
carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, as indígenas não se negavam a
ninguém.”
Enquanto
fora de casa o homem se divertia, dentro do casamento era um pudor só. “Até
para ter relações sexuais as pessoas não se despiam. As mulheres levantavam as
saias ou as camisas e os homens abaixavam as calças e ceroulas. Mesmo nos
processos de sedução e defloramento que guardam nossos arquivos, vê-se que os
amantes não tiravam a roupa durante o ato”, lembra Mary.
A
sexualidade dos índios no Brasil é ainda hoje pouco estudada. Há alguns relatos
de cronistas, como o de Gabriel Soares de Sousa entre os tupinambás, na caliente Bahia
do século 16. “São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria
que não cometam”, escreve Gabriel no Tratado Descritivo do Brasil em 1587.
Segundo ele, os índios não só transavam muito como gostavam, homens e mulheres,
de falar sobre sexo desavergonhadamente.
Havia
homossexualidade e o adultério era permitido também às mulheres, que seduziam
amigas para o leito conjugal. “As que querem bem aos maridos, pelos
contentarem, buscam-lhes moças com que eles se desenfadem, as quais lhe levam à
rede onde dormem, onde lhes pedem muito que se queira deitar com os maridos, e
as peitam para isso; cousa que não faz nenhuma nação de gente, senão estes
bárbaros”, constata, não sem uma pontinha de inveja, nosso cronista.
As
mulheres mais velhas, por sua vez, “desestimadas dos homens”, tratavam de
iniciar sexualmente os meninos: “ensinam-lhes a fazer o que eles não sabem”. E
os insatisfeitos com o tamanho do membro –nada de novo sob o sol– “costumam
pôr o pelo de um bicho tão peçonhento, que lho faz logo inchar, com o que têm
grandes dores, mais de seis meses, que se lhe vão gastando por espaço de tempo;
com o que se lhe faz o seu cano tão disforme de grosso que os não podem as
mulheres esperar”.
“O
esforço no sentido de fazer prosperar na colônia estrita monogamia teve que ser
tremendo”, escreveu Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala. O
pernambucano, que assumia com tranquilidade suas experiências homossexuais na
juventude, prestou atenção nas práticas entre o mesmo sexo e na bissexualidade,
que não eram incomuns entre os indígenas brasileiros e tampouco eram práticas
condenadas. Pelo contrário, os homossexuais eram bem-vistos e tinham relevância
na comunidade. Freyre supõe que a função de curandeiro das tribos, não só brasileiras
como as demais do continente, fosse destinada aos gays. Também se afirma isso
sobre os Two-Spirit, que seriam os xamãs da América do Norte.
O Feiticeiro, gravura de John White, em 1585, na cidade indígena de Pomeiooc, atual Carolina do Norte, EUA |
“Quanto
aos pajés, é provável que fossem daquele tipo de homens efeminados ou
invertidos que a maior parte dos indígenas da América antes respeitavam e
temiam do que desprezavam ou abominavam”, defende Freyre. “Uns, efeminados pela
idade avançada, que tende a masculinizar certas mulheres e a efeminar certos
homens; outros, talvez, por perversão congênita ou adquirida. A verdade é que
para as mãos de indivíduos bissexuais ou bissexualizados pela idade resvalavam
em geral os poderes e funções de místicos, de curandeiros, pajés, conselheiros,
entre várias tribos americanas.”
Entrevistei
o antropólogo Estevão Fernandes, professor da Universidade de Rondônia, que
estuda a homossexualidade indígena.
Socialista Morena – Era
frequente a homossexualidade entre os índios brasileiros? Ou depende da etnia?
Estevão Fernandes – Não apenas “era”, como é,
algo normal. Um grande desafio no tocante aos indígenas homossexuais em várias
terras indígenas do País é o de romperem com uma imagem que se tem, no Brasil,
de que os povos indígenas sejam coletividades paradas no tempo. Isso faz com
que indígenas cujas sexualidades não se enquadram no modelo hegemônico sejam
vistos como “perdendo sua cultura” ou “gays por causa do contato com os
brancos”, gerando preconceito, inclusive, em suas próprias aldeias –muitas
vezes devido ao contato com os não-índios, com igrejas diversas, por meio da
mídia. A perspectiva de que estas sexualidades eram abjetas chegou com a
colonização, com a imposição de padrões ocidentais de sexo, gênero, família,
pela necessidade do colonizador de se organizar o trabalho, o espaço e o tempo
nas aldeias. Assim, os homens deveriam se vestir como homens, trabalhar onde os
homens trabalham, ter nome de homem, e se comportar como os homens se
comportam; idem com relação às mulheres. Os indígenas que não se enquadravam
nesta perspectiva (r)estrita de dimorfismo sexual e heteronormatividade eram
castigados –há relatos, por exemplo, de execuções, cortes de cabelo
forçados, castigos físicos, etc., levados a cabo pelos colonizadores, não pelos
indígenas. Neste sentido, a heteronormatividade e o preconceito são parte integrante
da colonização, mas não das formas pelas quais os indígenas lidavam com essas
práticas. Temos fontes que situam práticas queer entre povos indígenas no Brasil
desde, pelo menos, meados do século XVI e em diversas etnias e povos indígenas
do país, sem que houvesse qualquer tipo de preconceito ou exclusão destes
indivíduos em suas aldeias.
– Só há relatos de
homossexualidade masculina ou feminina também?
– Tanto uma quanto outra (ainda que
as fontes sejam mais frequentes no tocante ao sexo entre homens, reflexo da
perspectiva viricentrada e patriarcal quase sempre assumida pelos
observadores).
– Gilberto Freyre propõe que muitos
dos pajés eram homossexuais. Será verdade?
– No Brasil há poucos dados sobre
isso, ainda que existam. Isto talvez explique a perseguição que os homo e
bissexuais sofreram ao longo da colonização. Há vários relatos na literatura
que nos permitem afirmar que havia (e talvez ainda haja), entre povos
ameríndios, o ponto de vista que relaciona homo/bi/transexualidade ao potencial
sagrado, como mostram os Two-Spirit nos Estados Unidos e Canadá. Também há o
caso dxs Muxes, no México, que apontam não apenas para
esse importante papel religioso, mas também político e social desempenhado por
esses indivíduos.
– A sexualidade indígena é um
assunto muito pouco estudado no Brasil. Por quê? Qual a principal dificuldade
em pesquisar este campo?
– Ainda é, embora venham
surgindo boas pesquisas a este respeito. Uma das hipóteses é, talvez, a
própria resistência que algumas lideranças indígenas têm em tocar no assunto,
por temerem o preconceito em relação às suas comunidades… Outra é a
relativamente pouca penetração de ideias como as teorias queer na academia
brasileira. Neste sentido, um grande desafio é trazer o queer para uma
discussão mais próxima da etnologia indígena e da crítica às práticas
coloniais, administrativas e políticas empregadas junto aos povos
indígenas. Por outro lado, fico feliz em ver que alguns e algumas
indígenas já se mobilizam em suas comunidades para pensar estas questões,
inclusive trazendo estas reflexões para a própria academia –um exemplo é o
texto Sexual Modernity in Amazonia,
escrito em coautoria com uma indígena Tikuna, aluna da UFAM (Universidade
Federal do Amazonas).
– Os relatos dos primeiros
cronistas sobre sexualidade eram sempre permeados de julgamentos e preconceitos.
Há alguma exceção? Algum cronista foi mais, digamos, permissivo?
– Até onde pude observar, não há
exceções… Quase sempre o enquadramento a partir do qual a sexualidade indígena
é vista reflete as perspectivas e preconceitos do observador… No tocante aos
missionários e cronistas é ainda mais evidente como a sexualidade era vista,
junto com a poligamia e a antropofagia, como prova da necessidade de se
converter –quase sempre pelo uso do medo– os indígenas.
***
Talvez
a própria imagem do indígena como “inocente” ou “assexuado” tenha sido útil à
Igreja para disseminar suas teorias sobre céu e inferno. A analogia com Adão e
Eva era perfeita: nus, no “Paraíso”, os “inocentes” foram tentados pela
serpente do “pecado”. Era preciso fazê-los sentir-se mal em relação a algo
natural e convertê-los à “fé”. E assim morria, no “descobrimento”, a genuína
sexualidade das Américas. Mas o pecado, Barleu tinha razão, não está mesmo em
nosso DNA.
(A presença dos africanos, sobretudo
das africanas, modifica a vida sexual dos colonizadores, mas apenas dos homens.
Toda esta parte é razão, porém, para outro post.)
Cynara Menezes, http://www.socialistamorena.com.br/como-a-igreja-arruinou-a-vida-sexual/
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