SE SÃO GAYS NÃO SOMOS NÓS
Passado
mais de meio século sobre a segunda guerra mundial, foi revelada a existência
de campos de concentração para homens gay na Tchetchénia. Tivemos acesso a
relatos macabros por parte de quem sobrevive a um regime que tem os gays como
impuros, que os quer eliminar, diretamente ou incumbindo a sociedade e as suas
famílias de o fazerem.
A ver
se nos entendemos: demorou demasiado tempo para que fosse reconhecido o que o
nazismo fez aos homossexuais (porque a homossexualidade era considerada uma
patologia, certo?) e em 2017 somos confrontados com uma monstruosidade contemporânea
sem grandes consequências.
Com
base em discursos de base religiosa, moral e nacionalista, Putin e outros de
sua espécie justificam a perseguição da “impureza”, por isso já sabíamos da
“lei que proíbe a propaganda homossexual” de Putin, e agora somos bombardeados
com um campo para espancar, torturar e eletrocutar gays.
A falta
de empatia relativamente à violação dos direitos humanos das pessoas LGBT é
gritante. É sempre assim e continua a ser assim mesmo quando a notícia é,
repito, a existência de campos de concentração para homens gay na Tchetchénia.
Aquando
do ataque terrorista homofóbico ao clube “Pulse”, em junho de 2016, foi
chocante ver como efetivamente se abriu um “debate” sobre se deveria referir o
facto como um ataque homofóbico e não “simplesmente” como um ato de terrorismo.
“São pessoas, para quê frisar que a discoteca era uma discoteca LGBT”? Isto era
dito por várias almas, sem empatia alguma pela evidência de se ter tratado de
um ataque movido pela homofobia, mesmo que nem todas as pessoas que estavam na
discoteca fossem lésbicas ou gays. Claro que essas mesmas pessoas não hesitam
em chamar as coisas pelos nomes se uma igreja católica ou uma mesquita for alvo
de um ataque terrorista. Nesses casos, o ataque é definido, e bem, como sendo
feito às comunidades em causa, mas nesses casos, claro.
Sabemos
da existência de campos de concentração para homens gay na Tchetchénia, há uma
manifestação em Lisboa em frente à Embaixada da Rússia quase sem imprensa
presente, nenhum telejornal tem início neste horror e os líderes nacionais,
europeus, a UE e o SG da ONU estão calados.
São
gays, não se trata de um grupo étnico, não fomos alarmados pela notícia de um
campo de concentração para outra categoria de pessoas, por isso não há empatia,
são gays, ninguém está de acordo com as perseguições e com o campo de
concentração, mas daí a reagir vai toda uma cultura de adesão total à
consideração de que as pessoas LGBT são vítimas históricas e nenhum direito
conferido ao resto da população lhes pode ser negado.
Se são
gays não somos nós, não é?
O
caminho para essa empatia é longo, o silêncio é cúmplice, a vergonha alheia é
enorme.
Isabel
Moreira, Expresso, 22-04-2017
DENÚNCIAS DE DETENÇÃO, TORTURA
E ASSASSÍNIO DE GAYS
Na
Chechénia os homens temem ligar aos amigos para saber onde é que eles estão
Duas
semanas depois de ter sido denunciada a existência de um centro extrajudicial
para deter, torturar e matar homossexuais na república da federação russa, o
“Novaya Gazeta” teme pela vida dos jornalistas que expuseram o caso e o governo de Vladimir Putin continua
alinhado com o do seu fiel seguidor checheno, Ramzan Kadyrov
Texto Joana Azevedo Viana
Vamos
seguir o exemplo de um site australiano e inaugurar este artigo com um aviso
prévio: seguem-se descrições gráficas violentas sobre o que está a passar-se
num canto remoto da Rússia chamado Chechénia, onde a homossexualidade não é
proibida por lei mas onde as autoridades responsáveis por aplicar a lei são
acusadas de estarem a torturar e a assassinar homens gay com total impunidade.
A
notícia surgiu há duas semanas pela mão do “Novaya Gazeta”. Na própria manchete,
o jornal russo dedicado a investigar violações de direitos humanos na federação
e nos seus territórios também já lançava uma espécie de aviso aos leitores, com
um ‘+18’ entre parêntesis por causa do que era descrito. E o que é descrito é a
existência de uma espécie de campo de concentração perto de Argun, a 20
quilómetros da cidade de Grozny, a capital, para onde as autoridades da Chechénia
já terão levado pelo menos 100 homens a fim de os extorquirem, torturarem e até
matarem pelo simples facto de gostarem de outros homens.
O que
começou como uma detenção isolada escalou para o que a diretora da Rede LGBT
Russa descreve como “uma campanha organizada para deter homens gay” na região
de maioria muçulmana que está sob as lides de Ramzan Kadyrov, ex-rebelde separatista
hoje extremamente fiel a Vladimir Putin, que é líder de uma milícia privada e
presidente da Chechénia desde 2007.
“Não é
possível deter e reprimir pessoas que simplesmente não existem na república”,
foi como o seu porta-voz, Alvi Karimov, respondeu na semana passada às
denúncias, garantindo que os direitos humanos têm gozado de “grandiosas” melhorias
na Chechénia. Anteontem, o próprio Kadyrov veio acusar o jornal da oposição
russa de executar um “ataque massivo” de contra-informação em que “a realidade
é distorcida”, no que classifica como “tentativas de denegrir a nossa sociedade,
estilo de vida, tradições e costumes”. O Kremlin também se juntou ao desmentido,
com o porta-voz do governo russo a dizer há alguns dias que “não há informações
fidedignas” que corroborem as alegações.
Para o
“Novaya Gazeta” há e, depois de ter visto seis jornalistas serem assassinados
desde 2001 por causa de investigações incómodas para o governo de Putin e seus
aliados, o jornal diz temer agora pela segurança dos que noticiaram a
existência deste campo de detenção e tortura, repórteres que estão escondidos desde
o dia da publicação. “A repressão em massa na Chechénia tornou-se uma má tradição”,
apontava o jornal no artigo de 4 de abril. “A cada momento, esta repressão
torna-se mais catastrófica em escala e cada vez mais absurda no seu raciocínio.”
Apesar
de não ser proibida por lei na república da federação russa, a homossexualidade
nunca foi bem aceite na Chechénia, onde há anos se acumulam denúncias dos
chamados “crimes de honra”, em que são as próprias famílias de pessoas gay a
matá-los. Agora, e segundo a investigação, a prática entrou no campo oficial,
depois de em fevereiro a polícia chechena ter detido um homem suspeito de estar
sob a influência de drogas e ter descoberto no seu telemóvel fotografias e
vídeos sexuais explícitos e “dezenas de contactos de homossexuais da
localidade”, uma “base de dados” que, segundo o “Novaya Gazeta”, gerou “a primeira
vaga de detenções e execuções”.
Desde
então, as autoridades têm estado a fazer buscas a casas privadas e locais de
trabalho de homens suspeitos de gostarem de outros homens, de homens cujos contactos
constavam da lista telefónica do primeiro detido e dos que se lhe seguiram e
até daqueles que, sendo amigos dos desaparecidos, tentam contactá-los para
saberem o que se passa. O jornal e a Rede LGBT Russa aponta que, no local para
onde os levam, são vítimas de extorsão e tortura, eletrocutados, obrigados a
enfiar garrafas de vidro nos ânus e, em última instância, mortos — até agora há
registos de pelos menos três execuções.
“Confirmamos
o que o ‘Novaya Gazeta’ noticiou”, disse à BBC Natalia Poplevskaya, diretora da
ONG com sede em São Petersburgo, que continua sem obter reações da procuradoria-geral
russa, da Comissão Federal de Investigação e da comissária para os Direitos
Humanos. “Não obtivemos respostas, apesar de todas as tentativas. A única coisa
que a relatora russa disse que foi que iam iniciar uma investigação. Isto só
depois de a Amnistia Internacional apresentar a sua própria queixa. O gabinete
do comandante militar é agora o centro de detenção oficioso para as torturas,
perto de Argun, todas as vítimas confirmaram isso.” Nas declarações ao canal
britânico, Poplevskaya rejeitou a expressão “campo de concentração” que os
media têm usado para descrever o centro de detenção extrajudicial.
“Parece
abandonado, mas não está”, relata uma das testemunhas entrevistadas pelo “Novaya
Gazeta”. “É mais como uma prisão fechada, cuja existência não é oficialmente
reconhecida. Muitas vezes por dia éramos levados para sermos espancados. A
principal tarefa [dos carrascos] é descobrir a nossa rede de contactos. Eles
acham que, se fomos detidos, então é porque todo o nosso círculo de contactos é
composto por gays. É por isso que os nossos telefones não estão desligados.
Eles estão à espera que alguém mande uma mensagem ou telefone. Qualquer homem
que ligue ou envie mensagens recebe uma chamada de volta e é convidado para um
encontro sob qualquer pretexto.”
Nos
últimos dias têm-se multiplicado os protestos frente às embaixadas russas em várias
capitais, com a Austrália, o Canadá, os Estados Unidos e a União Europeia, a
par de organizações como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional a
exigirem a Moscovo que investigue as alegações. Para já, o Kremlin continua a
distanciar-se da situação e, na Chechénia, o líder espiritual dos muçulmanos, o
mufti Salah-hajji Mezhiev, já declarou que “Alá vai castigar os que estão a
denegrir toda a nação chechena”. Confrontado com a aparente ameaça, o conselho
editorial do “Novaya Gazeta” prometeu continuar a denunciar as violações e
deixou uma indireta à federação de Putin. “O silêncio e a inação por parte
daqueles que têm capacidade para fazer alguma coisa marca-os como cúmplices.”
Expresso, 18-04-2017
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