Sôbolos rios que
vão
Masculinidade tóxica. Este conceito tem
adquirido o seu espaço na discussão mediática (e não só) quando se fala sobre o
modo como certos comportamentos machistas influem negativamente na vida de
pessoas humanas que não são homens adultos com comportamento de «macho alfa»:
refiro-me a mulheres, a crianças e também a homens com défice desse tipo de
masculinidade, aos quais se chamaram muitos nomes ao longo da História humana,
mas a quem hoje chamamos gays ou queers ou outra coisa assim.
Ao longo da História, as principais
vítimas da masculinidade tóxica foram as mulheres e as crianças. As mulheres
pela forma como foram objectificadas, vistas como propriedade do pai, do marido
ou do dono (no caso de serem escravas). Todos sabem como eu amo profundamente a
poesia de Homero, mas sinto sempre um mal estar enorme quando leio aqueles
versos em que Aquiles, ao celebrar jogos fúnebres em honra do seu amigo
Pátroclo, institui um campeonato de boxe, em que ao vencedor cabe o prémio de
um artefacto em metal, que valia doze bois. O segundo prémio (para o pugilista
vencido, portanto) era uma mulher, excelente tecelã, cujo valor no mercado era
de quatro bois (Ilíada 23.702-705). Como se não bastasse esta objectificação da
mulher - que, sendo escrava no acampamento grego em Tróia, era uma cativa que
tinha sido levada para a escravatura depois do saque de uma cidade ali à volta
- ainda por cima ela é vista como valendo menos do que uma trípode e,
humilhação suprema, é o SEGUNDO PRÉMIO, dado ao atleta vencido.
Que vida seria a dessa mulher? A que
sofrimentos seriam sujeitas essas escravas? Violência de todo o tipo, claro:
eram abusadas sexualmente (isso está logo escancarado no verso 31 do Canto 1 da
Ilíada); certamente seriam espancadas se não obedecessem aos donos e não
trabalhassem como eles queriam. Tinham condições de vida, nalguns casos, que
lembram o campo de concentração nazi em que os prisioneiros tinham de produzir
um número certo de artefactos por dia; se o não fizessem, eram chicoteados de
forma bárbara. Esse regime de trabalho forçado das escravas está patente na
Odisseia 20.109-110.
Mas o pior sofrimento das cativas era
perder os filhos no momento de serem capturadas. Esse é o pior crime de guerra
da Antiguidade, do qual temos vários ecos no Antigo Testamento e na literatura
grega. Toda a gente conhece o caso do filho de Heitor e de Andrómaca, lançado
das muralhas de Tróia para cima das pedras lá em baixo. Por vezes pensamos que
isso foi uma crueldade excepcional. Não foi excepcional. Era normal.
Quando uma cidade era saqueada na
Antiguidade, a população adulta que tinha sobrevivido ao cerco e ao saque da
cidade era levada para a escravatura. As mulheres deixavam de ter qualquer
identidade própria: já não eram filhas dos seus pais, já não eram esposas dos
seus maridos: eram agora escravas de um dono. A maior crueldade era que
deixavam de ser mães das crianças pequenas que tinham, porque essas crianças
eram simplesmente mortas, muitas vezes com a barbaridade de serem apanhadas pelos
pés e atiradas com a cabeça contra paredes ou pedras.
Porquê? Porque os novos donos dessas
mulheres agora escravas, segundo o código da sua masculinidade tóxica, não iam
ficar com filhos de outros homens a seu cargo. As novas escravas iriam a partir
de agora engravidar dos donos e criar esses filhos como escravos dele. Os
filhos de gravidezes anteriores tinham de morrer.
No Salmo 137 (na Vulgata, Salmo 136),
ouvimos os lamentos dilacerantes dos judeus deportados para a Babilónia.
«Sôbolos rios que vão...» (como escreveu Camões; «Super flumina Babylonis», na
lindíssima versão da Vulgata). O último versículo deste salmo é chocante: pois
os judeus bendizem e consideram bem-aventurado o soldado que pegar nos filhos
pequeninos dos babilónios e os esmagar contra as pedras.
A desculpa dos judeus é que foram eles
próprios vítimas dessas atrocidades por parte de assírios e de babilónios. A
culpa? Essa cabe inteiramente à masculinidade tóxica. Não há volta a dar.
Ontem celebrámos os 50 anos de
Stonewall. Não se trata apenas de mudar as mentalidades em relação aos direitos
LGBT. Trata-se também de pensar que podemos querer uma sociedade em que os
valores do machismo patriarcal não têm de ser dominantes. No «Daily Telegraph»
de hoje, um alto funcionário do Banco de Inglaterra culpa o excesso de
testosterona nos mercados de capitais pelos crimes financeiros em que os
grandes bancos do mundo ficam com buracos e com fraudes de biliões. Na opinião
dele, devia haver mais mulheres a trabalhar nos mercados de capitais e nas
bolsas de valor. Felizmente, hoje uma mulher - até para o Banco de Inglaterra -
vale mais do que quatro bois.
Frederico
Lourenço, 2019-06-29
MASCULINIDADE
TÓXICA
É a
masculinidade tóxica enraizada no nosso caldo cultural que mata mulheres em
números todos os anos insuportáveis, este ano a deixar-nos sem voz, em
desespero e culpa coletiva.
Há várias
masculinidades, mas continua a persistir a tal masculinidade tóxica, porque a
sociedade ainda empodera – porque não desarma – os homens que na rua, no local
de trabalho e em casa olham a mulher como o sexo neutro.
A mulher
é o que os homens definiram ao longo da história: o seu papel, em casa, na rua
ou mesmo numa estrutura organizativa não é um lugar de reclamação própria, mas
um reflexo. Um reflexo, porque para a masculinidade tóxica as mulheres são –
ainda que inconscientemente – propriedade, obedientes, recetoras menores de
opiniões maiores, objetos sexuais, gente que se trata mal porque “homem é
homem, é da natureza”. A masculinidade tóxica implica uma orgulhosa recusa de
lidar com emoções, essa coisa de mulheres.
A
masculinidade tóxica é apegada ao preconceito, é homofóbica, é misógina, odeia
mulheres na proporção em que admira homens quanto a um mesmo comportamento.
Isso é visível no duplo padrão em que ainda vivemos em matéria de liberdade
sexual: por todo o lado as “putas” e os “garanhões”, essa dualidade.
A
masculinidade tóxica bebe da moral religiosa bafienta muita da sua base para
rebaixar as mulheres a destinatárias de uma moralidade própria. De resto, faz
parte do caldo recusar direitos de maternidade a casais de lésbicas, por
exemplo, que isto de ter filhos sem tutela masculina é a loucura.
É neste
país que vivemos, onde nos corpos e na expressão da nossa inteligência somos
alvos de sexismo e de misoginia. Não há nenhuma mulher que não saiba o que isto
é. Umas saberão de graus maiores e outras de menores, mas todas sabemos o que é
ser menos, não apenas nas relações interpessoais, mas em estruturas
organizativas e na sociedade em geral.
Os juízes
e as juízas não nascem em Marte, bebem deste caldo cultural, e se a advertência
ao Juiz Neto Moura soube a pouco – obviamente não devia ser juiz -, a verdade é
que nos mexemos, ouvimos de nós a condescendência tóxica habitual enquanto
exigíamos uma tomada de posição do CSMJ, mas pela primeira vez todas e todos os
juízes prontos a pôr de lado a laicidade do estado e a igualdade de género
estão advertidos.
Talvez a
masculinidade tóxica que afirma a igualdade em abstrato, mas dá cabo de nós
quando combatemos as causas profundas deste caldo cultural, pense duas vezes
daqui para a frente antes de enxovalhar quem recusa livrinhos escolares
diferenciados por sexo ou quem reclama pela liberdade das crianças na escolha
dos seus brinquedos.
Talvez,
perante nove mulheres mortas neste início do ano, as pessoas que dizem
“feminismo, mas”, as pessoas que dizem “ah, mas há homens que também são
vítimas”, percebam que não há um fenómeno social de homicídio conjugal de
homens em contexto de violência doméstica. Há homens vítimas de violência
doméstica, e ela tem de ser combatida, mas a expressão monstruosa da violência
dos homens exercida sobre as mulheres não tem simetria possível – daí ser fenómeno
-, e não há correspondente masculino para a palavra “femicídio”.
Não há um
caldo cultural que leve as mulheres a estruturarem o que é um homem, pronto.
Temos uma
boa lei.
Está a
ser feito um investimento crescente na Rede nacional de Apoio às Vítimas de
Violência Doméstica, bem como nos protocolos de proximidade e na formação
específica dos vários intervenientes.
Fundamental
é a aposta, desde 2017, na estratégia nacional de educação para a cidadania.
Porque o
objetivo é mesmo zero mortes, zero casas de abrigo (por desnecessidade): isto
implica uma aposta feroz na mudança de mentalidades. Acabar com a masculinidade
tóxica com a ajuda de homens e mulheres que querem, mesmo, sem adversativas,
para bem de todos, o fim desta insuportável subjugação das mulheres.
Isabel Moreira, Expresso,
2019-02-16
https://expresso.pt/blogues/blogue_contrasemantica/2019-02-16-Masculinidade-toxica
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