terça-feira, 1 de outubro de 2019

Frederico Lourenço - crónica





Gianecchini e o filósofo francês

Duas notícias lidas hoje deram-me que pensar. Uma foi a novidade explosiva (que toda a gente já sabia há muito anos): que Reynaldo Gianecchini - deixem-me acertar no eufemismo certo - já teve «romances com homens».

A segunda notícia deixou-me menos perplexo, mas tem a ver - já explico porquê - com a primeira. O distinto filósofo francês Bernard Pivot tweetou - para choque genuíno de muitas pessoas - que a jovem activista Greta Thunberg desilude no que toca à fantasia que heterossexuais da geração dele associam a mulheres suecas.

Ao que parece, para o filósofo, ela não é suficientemente sexy; não só lhe faltará (estou a fantasiar agora) a morfologia corporal de Anita Ekberg, mas falta-lhe aquilo que, desde tempos imemoriais, os homens heterossexuais consideram obrigação óbvia das mulheres: vestirem-se, arranjarem-se, comportarem-se para agradar aos homens.

Todos somos meros seres humanos e ninguém é perfeito. Objectificar quem achamos lindo é algo de inelutável, porque é inconsciente. Eu já objectifiquei, nas minhas fantasias, Reynaldo Gianecchini? Quantas vezes! Sempre o achei (para o meu gosto) o paradigma máximo da beleza masculina. E é algo com que o meu marido André, que não idolatra como eu a beleza de Gianecchini, se pode rir comigo. Trata-se de uma objectificação, apesar de tudo, inocente. E se calhar desconcertante para homens heterossexuais que me estejam a ler: «então os gajos também se objectificam uns aos outros?»

Um dos temas que se discute a propósito da timidíssima saída do armário por parte de Gianecchini é que nenhum gay tem obrigação de sair do armário; que todos temos direito à nossa privacidade, porque ninguém obriga um heterossexual a declarar publicamente a sua heterossexualidade.

Ok. Talvez porque tantos e tantos heterossexuais outra coisa não fazem do que fazer, permanentemente, essa declaração. Uma das coisas que sempre me incomodou na universidade é a maneira como muitos dos meus colegas heterossexuais esticam a corda, por assim dizer, nas «bocas» que «mandam» de teor objectificante relativamente a pessoas do sexo oposto. Esses comportamentos são internamente defendidos em circuito hétero: não só os próprios se desculpam com «eu ainda sou dos antigos que gosta de mulheres» (como quem diz «não adiro à moda de ser gay»), como outros dizem sobre eles «pronto, ele gosta de mulheres - isso para mim não é defeito».

Na verdade, na nossa sociedade, nenhum homem heterossexual é obrigado a declarar publicamente «eu sou heterossexual», porque o faz, no fundo, diariamente, de muitas maneiras diferentes.

É o que está a fazer o grande intelectual francês, que exprime desilusão pelo facto de Greta Thunberg ficar aquém do seu conceito do que uma sueca devia ser. É o que faz o professor universitário que chega à aula e cumprimenta as alunas com «estão boas - ou são boas?»

A heterossexualidade masculina vive desde sempre esse estatuto de «entitlement», que só no século XX começou a ser posto em causa pelos movimentos de libertação feminina e pelo movimento LGBT. Homens heterossexuais podem declarar a sua heterossexualidade com cada gesto e cada palavra do dia a dia; mas homens homossexuais vêm expor-se «desnecessariamente» quando afirmam, com dignidade e sem objectificação de outrem, a sua homossexualidade.

Vivemos (e viveremos ainda) no mundo dos parâmetros duplos, é certo.

Seja como for: a Reynaldo Gianecchini transmito os meus parabéns e quero deixar claro que respeito o tempo dele para fazer o que fez.

Ao filósofo francês só posso dizer que a afirmação de heterossexualidade através de bocas foleiras sobre suecas já passou do tempo.

Venha a próxima polémica!

Frederico Lourenço, 2019-10-01


 

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