Gianecchini
e o filósofo francês
Duas
notícias lidas hoje deram-me que pensar. Uma foi a novidade explosiva (que toda
a gente já sabia há muito anos): que Reynaldo Gianecchini - deixem-me acertar
no eufemismo certo - já teve «romances com homens».
A
segunda notícia deixou-me menos perplexo, mas tem a ver - já explico porquê -
com a primeira. O distinto filósofo francês Bernard Pivot tweetou - para choque
genuíno de muitas pessoas - que a jovem activista Greta Thunberg desilude no
que toca à fantasia que heterossexuais da geração dele associam a mulheres
suecas.
Ao
que parece, para o filósofo, ela não é suficientemente sexy; não só lhe faltará
(estou a fantasiar agora) a morfologia corporal de Anita Ekberg, mas falta-lhe
aquilo que, desde tempos imemoriais, os homens heterossexuais consideram
obrigação óbvia das mulheres: vestirem-se, arranjarem-se, comportarem-se para
agradar aos homens.
Todos
somos meros seres humanos e ninguém é perfeito. Objectificar quem achamos lindo
é algo de inelutável, porque é inconsciente. Eu já objectifiquei, nas minhas
fantasias, Reynaldo Gianecchini? Quantas vezes! Sempre o achei (para o meu
gosto) o paradigma máximo da beleza masculina. E é algo com que o meu marido
André, que não idolatra como eu a beleza de Gianecchini, se pode rir comigo.
Trata-se de uma objectificação, apesar de tudo, inocente. E se calhar
desconcertante para homens heterossexuais que me estejam a ler: «então os gajos
também se objectificam uns aos outros?»
Um
dos temas que se discute a propósito da timidíssima saída do armário por parte
de Gianecchini é que nenhum gay tem obrigação de sair do armário; que todos
temos direito à nossa privacidade, porque ninguém obriga um heterossexual a
declarar publicamente a sua heterossexualidade.
Ok.
Talvez porque tantos e tantos heterossexuais outra coisa não fazem do que
fazer, permanentemente, essa declaração. Uma das coisas que sempre me incomodou
na universidade é a maneira como muitos dos meus colegas heterossexuais esticam
a corda, por assim dizer, nas «bocas» que «mandam» de teor objectificante relativamente
a pessoas do sexo oposto. Esses comportamentos são internamente defendidos em
circuito hétero: não só os próprios se desculpam com «eu ainda sou dos antigos
que gosta de mulheres» (como quem diz «não adiro à moda de ser gay»), como
outros dizem sobre eles «pronto, ele gosta de mulheres - isso para mim não é
defeito».
Na
verdade, na nossa sociedade, nenhum homem heterossexual é obrigado a declarar
publicamente «eu sou heterossexual», porque o faz, no fundo, diariamente, de
muitas maneiras diferentes.
É
o que está a fazer o grande intelectual francês, que exprime desilusão pelo
facto de Greta Thunberg ficar aquém do seu conceito do que uma sueca devia ser.
É o que faz o professor universitário que chega à aula e cumprimenta as alunas
com «estão boas - ou são boas?»
A
heterossexualidade masculina vive desde sempre esse estatuto de «entitlement»,
que só no século XX começou a ser posto em causa pelos movimentos de libertação
feminina e pelo movimento LGBT. Homens heterossexuais podem declarar a sua heterossexualidade
com cada gesto e cada palavra do dia a dia; mas homens homossexuais vêm
expor-se «desnecessariamente» quando afirmam, com dignidade e sem
objectificação de outrem, a sua homossexualidade.
Vivemos
(e viveremos ainda) no mundo dos parâmetros duplos, é certo.
Seja
como for: a Reynaldo Gianecchini transmito os meus parabéns e quero deixar
claro que respeito o tempo dele para fazer o que fez.
Ao
filósofo francês só posso dizer que a afirmação de heterossexualidade através
de bocas foleiras sobre suecas já passou do tempo.
Venha
a próxima polémica!
Frederico Lourenço, 2019-10-01
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