terça-feira, 8 de outubro de 2019

Pão de açúcar - romance sobre Gisberta




PÃO DE AÇÚCAR | Afonso Reis Cabral

Sinopse

Em fevereiro de 2006, os Bombeiros Sapadores do Porto resgataram do poço de um prédio abandonado um corpo com marcas de agressões e nu da cintura para baixo.

A vítima, que estava doente e se refugiara naquela cave, fora espancada ao longo de vários dias por um grupo de adolescentes, alguns dos quais tinham apenas doze anos.

Rafa encontrara o local numa das suas habituais investidas às «zonas sujas», e aquela espécie de barraca despertou-lhe imediatamente o interesse.

Depois, dividido entre a atração e a repulsa, perguntou-se se deveria guardar o segredo só para si ou partilhá-lo com os amigos.

Mas que valor tem um tesouro que não pode ser mostrado?

Romance vertiginoso sobre um caso verídico que abalou o País, fascinante incursão nas vidas de uma vítima e dos seus agressores, Pão de Açúcar é uma combinação magistral de factos e ficção, com personagens reais e imaginárias meticulosamente desenhadas, que vem confirmar o talento e a maturidade literária de Afonso Reis Cabral.




Crítica

A partir do brutal assassinato de Gisberta Salce Júnior, transexual brasileira, Afonso Reis Cabral (n. 1990) escreveu Pão de Açúcar, romance não ficcional. Quem leu A Sangue Frio, de Truman Capote, identifica o género.

Factos: em Fevereiro de 2006, Gisberta, 45 anos, foi encontrada morta no poço alagado de um prédio inacabado do Porto, conhecido como Pão de Açúcar. Durante três dias, fora repetidamente violada e espancada por 14 rapazes, 11 deles sob tutela da Oficina de São José, instituição católica de acolhimento de menores. Apenas um maior de 16 anos.

Gisberta foi atirada seminua para o poço, na presunção de que não resistira à tortura: pancada, queimaduras de cigarro, penetração com paus de madeira. A autópsia demonstrou que estava viva no momento da queda. Gisberta tinha sida, era toxicodependente, prostituta e sem-abrigo. Montou a sua barraca naquele andar vazio do Pão de Açúcar. Um dos rapazes é filho de uma prostituta que contratara como ama-seca uma mulher amiga de Gisberta.

Em Setembro de 2007 todos estavam em liberdade. O caso chocou a opinião pública, mobilizou a comunidade LGBT e deu origem a manifestações culturais (um documentário, duas peças de teatro, um poema notável de Alberto Pimenta, uma balada de Pedro Abrunhosa também interpretada por Maria Bethânia, vários textos de análise) que têm o seu corolário neste romance.

Ficcionando a persona de Gisberta, foi com este material que o autor lidou. A narrativa centra-se no quotidiano dos rapazes (os da Oficina de São José e os outros três), tentando explicar o caldo de cultura que propiciou a barbárie. A deriva "literária" rouba força ao discurso. Diz o narrador: "Assim em repouso, bateu-me uma falta de ar que era tanto tristeza como excesso de amizade e muita falta de carinho." Com notas no início e no fim, deixa claro que está a lidar com acontecimentos verídicos alvo de cobertura mediática. É uma espécie de Balada dos 14, bem intencionada e naïve.

Eduardo Pitta, 16/11/2018



Afonso Reis Cabral. Enfrentar o coração da vida.

Aos 28 anos, Afonso Reis Cabral terminou o seu segundo romance. Chama-se Pão de Açúcar, foi publicado pela D. Quixote e ficcionaliza a história do assassinato de Gisberta. Por Ana Bárbara Pedrosa.​​​​​​​
Fotografia de Elisa Trusso
Fotografia de Elisa Trusso
Há quatro anos, na altura em venceu o Prémio LeYa, os holofotes estiveram sobre Afonso Reis Cabral, e para muito contribuiu o rosto imberbe. Aliás, no dia 17 de Outubro de 2014, era da sua data de nascimento que se falava e o próprio júri, que decidiu cegamente, ficou admirado. No próprio dia, sem que ninguém soubesse ainda nada sobre O Meu Irmão, foi perguntado ao autor: “Então e o segundo?” Aqui está ele: Pão de Açúcar.
De 2014, lembro-me das palavras em entrevistas: “Um escritor tem de escrever sobre aquilo que conhece.” É por isso surpreendente a escolha deste tema: o assassinato de Gisberta, transexual, ocorrido em 2006, pelas mãos de 14 miúdos, após dias de agressões. O livro usa a base real dessa história e a partir daí urge a ficção.
Portanto, lendo-se a contracapa, poderia perguntar-se ao autor se mudou de ideias. Contudo, ao ler-se o livro, a questão não surge. O que ali está não florescerá da vida de Afonso Reis Cabral, mas o trabalho de investigação levado a cabo faz com que, pela segunda vez, tenha escrito sobre aquilo que domina: acções, espaços, histórias, modos de fala. As semelhanças biográficas entre o autor e o seu primeiro narrador serão conhecidas, o resto é o estertor da ficção. Neste caso, torna-se óbvio o exercício de outrar-se, imagino que para explorar as potencialidades da literatura e a versatilidade da mão, e é tal a diferença entre os contextos (família, classe social, habilitações literárias, amigos) que, em primeiro lugar, não podemos deixar de gabar-lhe a exímia construção de personagens. O que saltará à vista é que, com dois romances, já se percebe a solidez de um estilo e até a predilecção de ideias.
Exemplo 1:
- “E de facto não sofria, porque para isso precisava de ter consciência das próprias circunstâncias.” (Pão de Açúcar, p. 22)
- “Nada o afecta porque não tem capacidade para ser afectado.” (O Meu Irmão, pp. 18/19)
Exemplo 2:
- “Era como os doentes que gostam do privilégio da doença.” (Pão de Açúcar, p. 137)
- “Ele bem vê a alegria e o entusiasmo da mãe quando a doença o leva à cama, ele bem sabe que ser doente é torná-la útil” (O Meu Irmão, p. 195)
 
Percebe-se, no primeiro romance, que a prosa é trabalhada, adivinha-se que o autor queira mostrar talento. Manuel Alegre referiu-se à “prosa enxuta” de O Meu Irmão, mas eu não concordei a cem por cento. Era uma prosa escorreita e não deixava nada por dizer, o autor era atento aos detalhes e por isso os parágrafos alongavam-se e as descrições também. Em algumas partes, após um início muito bem construído, até fresco e surpreendente, a prosa parecia tactear, descobrir-se à medida que era escrita, a mão do autor - incisiva nos parágrafos - parecia perder-se nos capítulos, sendo por vezes demasiado explicativos e tendo algumas comparações escusadas. Daí um romance que, por ter texto inoperante, se tivesse lentificado mais do que, por vezes, seria expectável ou do que a sua arquitectura pediria. Aliás, o próprio autor afirma que a prosa, ao contrário da poesia, permite disfarçar alguma falhas. Nota-se o trabalho de disfarce, a longitude das explicações para que nada fique ao acaso.
Fotografia de Elisa Trusso
No caso de Pão de Açúcar, as descrições são muito mais operantes. Não há ervas daninhas, não se notam, como em O Meu Irmão, excepto em exemplos pontuais, as tentativas de sublimar a prosa, e a partir de uma certa altura a acção precipita-se já com vertigem, e isto apesar de o leitor conhecer o fim já desde a primeira página (é a busca do meio que torna o livro vivo). Não há aquela tendência para se contemplar o olhar demorado, antes para se saber onde é que cada olhar encaixa. Desse ponto de vista, a prosa deste livro é muito mais enxuta. No mesmo sentido, poderá sentir-se que o autor perdeu alguma delicadeza, e ainda bem que assim foi, já que não torna tão evidente a tentativa de disfarce de trabalho. Ou seja, quatro anos depois, temos um autor muito mais seguro, que nos ilude como é já costume nesta arte, fingindo perante nós que não há qualquer esforço na sintaxe.
 
Não há aquela tendência para se contemplar o olhar demorado, antes para se saber onde é que cada olhar encaixa.
É que o exercício da ficção está em tornar escorreita uma coisa que é esculpida. O mistério da ficção é descobrir - ou é até a própria impossibilidade de fazê-lo - qual é o botão de rosa do que é surpreendente. Convencionalmente, chamamos-lhe talento, mas também ninguém sabe bem o que isso é. Assim como assim, dominar esse mistério consiste em conseguir que o leitor julgue que tudo é uma assentada, não lhe descubra os trabalhos. “Que prosa escorreita”, dizemos nós, enganados. “Os parágrafos fluem sem qualquer dificuldade”, seguimos num enlevo. E os escritores continuam quase a ocultar o trabalho a bisturi e ninguém parece perceber os passos de formiga. Tudo é esmagado na ideia abstracta do talento.
Posto isto, nunca leitor nenhum adivinhará quanto tempo foi posto em cada frase, mas na prosa de Reis Cabral o que surpreende é o que parece natural:
- “Haveria qualquer coisa bela e aliciante nas lajes de cimento, nas ruas abandonadas, nos restos que a construção largou à sorte de gajos como nós.” (p. 16)
- “Ele bem tentou passar ao papel coisas volúveis e maleáveis como nós, mas o Nélson dizia-lhe que não, mas que merda era aquela, eu num desenho com o Rafa; o Samuel buscava o meu apoio, só que eu respondia que merda era aquela, eu num desenho com o Nélson. Ele que usasse a paisagem, o Porto, o caralho mais velho.” (p.18)
- “paisagem parada como outra qualquer” (p. 19)
- “grávidas de dez meses” (p. 36)
“E eu ia percebendo como temos de negar a nossa faceta boa repetidas vezes para levarmos o rancor avante. Seria mais fácil ceder às saudades: deixar-me do ir-não-ir e regressar em definitivo.” (p. 154)
- “Contornei-a na esperança de que ela mudasse de ideias ao olhar para mim. Mas os olhos fecharam-se-lhe de tanto cansaço e desarranjo mental.” (p. 221)
 
Difícil entender que isto não foi vivido, que é tudo malabarismo de autor. E ainda sobre esses malabarismos caberá uma nota sobre a linguagem. Há sempre um problema para quem faz um romance e tem-me parecido que se acentua em língua portuguesa: a vertigem entre a linguagem literária - trabalhada, fora de série, surpreendente - e a linguagem oral - aquela que, se surpreender, está mal realizada. Ora, o romance está escrito na primeira pessoa: um homem iletrado, que pouco estudou, bruto, que usa calão. Este perfil contrasta com o do próprio Reis Cabral: licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos, mestre em Estudos Portugueses, pós-graduado em Escrita de Ficção, um leitor constante, com bagagem cultural e literária, com um romance escrito e algumas tentativas. É óbvio que o background linguístico e cultural do autor e o do narrador em muito diferirão. Ainda assim, é de louvar o esforço pela aprendizagem do calão, a naturalidade com que aparece nas bocas das personagens. Contudo, parecer-nos-á que o problema se mantém, já que, fora dos diálogos, algum calão existe, mas não muito. O narrador escreve como um Reis Cabral, mas fala como um Rafa. O que espanta é que isto se leia sem soar a falha técnica, a descarada ficção. Aqui no meio, haverá um ou outro exemplo de misoginia gratuita (muito poucos, entre muitos de operante), atirados para dar coesão e veracidade à personagem, mas onde dispara a implausibilidade do resultado dessa busca:
 
- “Pena e também vergonha de ter por padrasto um homem que não se conseguia impor à mulher, ou sequer corrigi-la, e às vezes ela bem merecia que lhe arriassem com força.” (p. 78)
- “O próprio acto de contar, esse sim, revelava uma vulnerabilidade que muitos poderiam entender como feminina - quer dizer, como fraqueza.” (p. 107)
- “pareceu-me justo ela ter levado com uma pedra, já que é típico as mulheres levarem com pedras.” (p. 204)
Fotografia de Elisa Trusso
Os exemplos de violência operante não são poucos, de forma que os inoperantes, no conjunto global, se tornam de somenos. De resto, não há meias palavras nem romantizações escusadas, o que nos leva a um romance bem sucedido nas suas intenções. As indecisões, as incongruências, o abismo que há dentro de cada um de nós, a vergonha, a inveja, o ciúme, a dor, a carapaça dura que a falta de amor cria, a masculinidade que chega a roubar infâncias, e um fundo de beleza, como canto de sereia, suave, lento, a palpitar ao fundo, relembrando ao leitor, se é que pôde esquecer-se, que isto é literatura, que o que interessa é o coração da vida, que para fazer grandes obras há que sujar as mãos. E, portanto, de mãos sujas, Afonso Reis Cabral conseguiu roubar a beleza ao horror, pegar no coração da vida e pô-lo nas mãos do leitor, como o seu próprio, enquanto folheia o livro.
Não sendo este um romance explicativo, não querendo dar lições a ninguém, através do operante, o autor conseguiu humanizar os agressores sem desculpá-los. Conseguiu humanizá-los mas não deixar dúvidas ao leitor sobre estar perante o monstruoso. No meio desta humanização, o que emociona no romance é precisamente não ser sentimental.
Pão de Açúcar não é um panfleto ideológico, não é uma tese académica, é literatura com aquilo a que se propõe: ir à verdade. E isto misturando ficção com realidade. Verdade no sentido de descobrir a humanidade, de escarafunchar os factos e até de inventar alguns. A verdade inventiva de Afonso Reis Cabral foi o que mais me comoveu sobre este caso. Até agora, tudo o que li foi revoltante, mas foi só lógica. Assim, não sendo este um romance explicativo, não querendo dar lições a ninguém, através do operante, o autor conseguiu humanizar os agressores sem desculpá-los. Conseguiu humanizá-los mas não deixar dúvidas ao leitor sobre estar perante o monstruoso. No meio desta humanização, o que emociona no romance é precisamente não ser sentimental.
Reis Cabral escreveu sem temer sujar as mãos, encontrou a engrenagem da ficção. Quis discutir o mais confuso, por vezes vil, que há em cada um de nós e fê-lo sem ceder à caricatura. Não há um intento inócuo, há uma vontade de mergulhar no escondido. Não é coisa pouca. Aliás, é quase tudo.


 

Afonso Reis Cabral. Quando a ficção se torna uma forma parasitária
DIOGO VAZ PINTO09/10/2018 11:22





Para seu segundo romance, Afonso Reis Cabral escolheu uma espinhosa história verídica. Esta exigia não só temeridade, mas a capacidade de a ficção estar à altura da realidade e, ao mesmo tempo, reclamar autonomia e dar-lhe um reflexo imaginário igualmente profundo, para superar o desafio ético e não cair no oportunismo. Infelizmente, falhou
 
 
A história, já a conhecemos. Mal contada ou muito resumida, chegou-nos alguma versão, e isso bastaria para que não se juntasse ao curso da mais vaga memória. Ainda que só alguns detalhes mais sinistros rompam a película rumorosa, é difícil apagar o arrepio que logo cresce em aflição diante dos contornos do que aconteceu em fevereiro de 2006, no Porto. O fim de Gisberta Salce Júnior persiste como uma lenda atroz, um crime que provoca mal-estar à imaginação só de tentar reconstruí-lo, um desses episódios tenebrosos que marcam de forma indelével a consciência de uma cidade, de um país inteiro.
A autópsia indicaria afogamento como causa da morte, mas a morte da antiga estrela transexual brasileira, aos 45 anos, seguiu-se a vários dias de tortura. Espancada até à inanição, ficou por um fio depois de ser apedrejada e levar repetidamente com murros, pontapés e pauladas. Apanhou sobre o choro, enquanto suplicava. Os agressores eram adolescentes, menores de 16 anos, boa parte deles entregues às Oficinas de São José – instituição católica que recebia dinheiro do Estado para acolher rapazes retirados às famílias –, vagueavam pelas ruas da cidade, sem nada que fazer, em vertigem delinquente, e tinham dado com ela na cave de um prédio abandonado na Avenida Fernão de Magalhães, no Campo 24 de Agosto.
A certa altura, julgando-a morta, e temendo as consequências que adviriam quando o corpo fosse encontrado, resolveram livrar-se dele. Ainda pensaram deitar-lhe fogo, enterrá-lo, mas fosse pelo receio de que isso alertasse o vigilante do parque fosse por falta de ferramentas, três acabaram por arrastar o corpo uns cem metros, do colchão encardido onde agonizava há dias e onde aparentemente já nem respirava, até uma cratera na placa de betão que formava um poço, com a água a cerca de dez metros da superfície. Foi ali que Gisberta acabou por morrer.
Depois de uma aproximação benevolente, com um dos miúdos a reconhecê-la dos tempos em que tomara conta dele, oito anos antes, ele e outros passaram a visitá-la no intervalo do almoço. Chegaram a levar comida à barraca que ela improvisara num extremo da cave, a cozinhá-la, e a mulher que nascera com corpo de homem no interior de São Paulo falou-lhes da vida que levou, do sonho interrompido de ter um corpo que refletisse quem era interiormente, e sentiu-se na obrigação de explicar também a sua degradação, os sinais físicos exteriores que denunciavam o tão débil estado de saúde. Imigrante ilegal, depois de passar por França antes de chegar ao Porto, de ter servido às mesas, alcançado fama com os espetáculos de transformismo em que deslumbrava a noite do Porto com a figura elegante, os modos delicados e os cabelos volumosos, louros, encarnando Marilyn Monroe e outras divas, começou a usar drogas e acabou por se virar para a prostituição. Apanhou sida e, mais tarde, foi-lhe diagnosticada tuberculose pulmonar, pneumonia e candidíase laríngea, uma combinação que, por si só, seria o suficiente para prostrar qualquer um, provocando-lhe astenia, anorexia, febre, anemia, dificuldades respiratórias e mialgia.
Quando se espalhou a notícia de que alguns dos rapazes tinham começado a dar-se com “um travesti” que até tinha mamas, fizera operações, pintava os lábios, os olhos, e que parecia “mesmo uma mulher”, Gisberta voltou a abalar a modorra daquela cidade, e mais miúdos vieram ver. Depois, tudo o que foi preciso foi que um deles se lembrasse de lhe bater. Os outros seguiram-no.
Depois de se terem visto livres do corpo, alguns dos miúdos não conseguiram enterrá-lo na consciência e falaram. As autoridades foram alertadas e, na cave, além do corpo, encontraram “um colchão, dois cobertores, um casaco de ganga com forro amarelo, uma écharpe de malha, uma camisola de malha, várias peças de roupa emaranhada, diversos sacos de plástico. E um par de luvas, um pente, dois batons, um rímel, um eyeliner, uma gilete, uma pequena caixa com dois espelhos, seis preservativos”.
Isto é um resumo, nem sequer da história, mas das circunstâncias do crime. Seguiu-se o processo judicial, não menos complexo no retrato que traçou das condições e abusos que sofriam, tudo o que levou aqueles rapazes a andarem amatilhados pelas ruas da cidade, estrafegando o tédio na fronteira entre a brincadeira e a maldade, jogando à bola ou divertindo--se a atirar pedras a carros em circulação, aventurando-se em pequenos furtos. Apesar do frenesim mediático, das tantas notícias e algumas reportagens que vieram expor uma dolorosa urdidura de problemas provocados pela negligência não só parental como das instituições de acolhimento, pela desorientação, miséria e exclusão social, volvidos 12 anos, a história está longe ainda de ter sido narrada de forma escrupulosa, e descontando a tão bela quanto terrífica elegia que Alberto Pimenta dedicou a Gisberta – “Indulgência Plenária” (2007, ed. & etc) –, esta aguarda ainda um relato capaz de fazer-lhe aquela “forma selvagem de justiça” que Alberto Manguel diz ser o ponto em que os escritores são investidos “no papel de espiões de Deus”.
Num exemplo de formidável otimismo frente aos poderes da literatura para expiar os mais atrozes feitos cometidos pela humanidade, Manguel acredita que a mente humana tem provado ser mais sábia do que o terror e que isto acontece quando pode dar-lhe um nome: “Na própria descrição dos nossos atos mais abomináveis, algo na boa escrita os mostra como abomináveis e portanto não conquistáveis.” E acrescenta que “apesar da debilidade e da arbitrariedade da linguagem, um escritor inspirado pode contar o impronunciável e atribuir uma forma ao impensável, para que o mal perca alguma da sua qualidade divina e fique reduzido a algumas palavras memoráveis” – “Os Espiões de Deus”, ensaio integrado no livro “No Bosque do Espelho” (2009, Dom Quixote).
Depois de uma tão alardeada estreia com o romance “O Meu Irmão”, que fez de Afonso Reis Cabral, em 2014, o mais jovem dos escritores galardoados com o prémio Leya, passaram quatro anos e há um romance que ficou a meio quando, em 2016, vários órgãos de comunicação assinalaram os dez anos da morte de Gisberta. Afonso assumiu que foi o instinto que o levou a abandonar o romance que andava a escrever, percebendo que tinha neste caso matéria bem mais desafiante para servir de base ao seu segundo romance.
Em 2006, Reis Cabral tinha 16 anos, a mesma idade que o mais velho dos 14 rapazes que foram julgados em tribunal, aquele que, apesar de nunca ter agredido Gisberta, de até ter pedido aos outros que parassem, não teve força para se impor e foi julgado como adulto e condenado a oito meses de prisão efetiva pelo crime de omissão de auxílio. Numa entrevista ao “Público”, o romancista diz que teve a reação que o caso provocou em quase toda a gente: ficou “incrédulo”. “Pensava na idade deles, pensava na minha, pensava: o que pode levar pessoas da minha idade, da minha cidade, a fazer isto? E a fazer isto a alguém desamparado?”
“Pão de Açúcar”, publicado há semanas com selo da Dom Quixote, é a sua tentativa de, através da ficção, compor as lacunas, tentar dar resposta àquele “enigma”. E é uma ficção que, se não deixa de estar bem consciente do enorme risco ético que levanta este caso, se abalança com a convicção de que “só a ficção teria esse condão”. E se é notório que Afonso estudou o processo judicial, visitou o prédio – que continua devoluto, embora ostente atualmente um aviso da construtora Lúcios, afirmando que planeia fazer ali apartamentos, lojas e escritórios –, leu muito do que saiu na imprensa e noutras partes e até chegou à fala com algumas das pessoas que conheceram Gisberta, procurando munir-se de uma base sólida de factos antes de estruturar o livro. Contudo, há uma suspeita que começa a  cercar o leitor depois de ter despachado meia dúzia dos seus breves capítulos.
O narrador chama-se Rafa (Rafael Tiago) e é um personagem entre o ficcional e o compósito. Parece captar diversas frequências do que se sabe sobre os rapazes, e a dimensão psicológica depressa acaba por cumprir um mero dispositivo funcional, servindo como eixo para um ponto de vista que raramente consegue ganhar alguma espessura dramática e refletir verdadeiramente as dimensões sociológica, cultural e etária em causa. A narrativa começa, assim, a ceder muito cedo a uma composição formulaica e damos por nós a ler uma reportagem romanceada, cheia de ecos introduzidos ali de forma forçada, a tal ponto chega a transparecer a disciplina com que o autor se fechou a montar as cenas para um guião pré-definido.
Como há quem pinte por números, a sensação é a de estarmos a ler uma ficção esquemática, introduzindo, um por um, os dados apurados no processo e na imprensa, com a imaginação tateando a medo e segurando-se ao corrimão dos factos, copiando à vista a realidade através de uma técnica bastante tosca, num realismo em que, logo depois de aplicada a cola, dá a sensação de que tudo fica meio despegado. Vamos avançando por meio de frases de contornos suaves, uma estética branda, medida, controlada, num contraste absurdo com a história que tem por trás. E é a precipitação do final que já conhecemos que nos mantém na expetativa. Nisto, Reis Cabral leva o seu tempo, cobrindo a cerca de arame farpado com o tapete dos dados levantados pela investigação para saltar para o outro lado. Mas, por mais saltos que dê, sempre parece falar de uma realidade que lhe escapa. E são raros os momentos em que a ficção, ao invés de amaciar, nos faz enfrentar “o coração das trevas” que sentimos pulsar uns bons passos à sua frente.
Aquilo que nos é servido não chega sequer a impor-se como um romance, pois não se consegue discernir nesta narrativa qualquer ambição estética e nada de novo se acrescenta à compreensão do caso, do mesmo modo que não há qualquer mudança de perspetiva seja na compreensão que temos do homem ou sequer da forma romanesca.
Ao invés de expor a realidade, Afonso Reis Cabral parece não fazer mais do que aplicar verniz. Se as personagens aludem vagamente aos abusos e maus-tratos de que os rapazes eram vítimas, se vão largando umas asneiras, adotam enfaticamente o calão, trocam insultos e mostram traços de crueldade, raramente conseguem ganhar mais relevo do que desenhos animados. O narrador parece um corretor automático, fabricando uma interioridade que passa a cursivo o que deveria estar em itálico, trocando os demónios íntimos por diabinhos tatuados na pele.
Se as cenas de violação se fazem valer da crueza própria da reportagem, noutros momentos, o registo mostra-se duro de ouvido, incapaz de variações ou de calibrar a tensão, e a ação provoca a dormência própria do ruído branco.
Este modelo de ficção apresenta-se como uma dobra conformista, e é revelador, de resto, o facto de a generalidade das páginas de cultura terem logo vindo caucionar a obra. Nem semanas tinham passado e já surgia o primeiro artigo, em viés de reportagem, a colar este poster ficcional numa superfície que, se não diz “afixação proibida”, deveria pelo menos convidar a uma certa reserva, algum pudor diante de uma história que está longe de ter tido o seu momento de expiação.
Do que aqui se trata – e neste aspeto é que esta obra se mostra uma chave para analisar a amorfia da ficção portuguesa atual – é de um romance-performance. Um género que não é nada invulgar no contexto da nossa literatura nos últimos anos, num definhamento que resulta tanto do modo de receção paroquial como do vazio da crítica, tanto jornalística como académica. A divulgação de uma obra literária passa hoje, necessariamente, por um acordo de vontades, um arranjo, ficando dependente da boa vontade dos pares para obter validação e fazer carreira. A obra está, por isso, incompleta sem o efeito mediador, e, quanto ao romance, este nem chega a desembaraçar-se do mundo, de forma a criar a sua própria razão dissonante, um universo equilibrado sobre leis próprias, mas torna-se um manequim para ser desfilado e vestido coletivamente. De tal modo que, no fim, todos os outros intervenientes – editores, publicitários, dinamizadores culturais, jornalistas e críticos – se sentem coautores, cada um ocupando uma função no negócio familiar.
Na rudimentaridade do modelo de ficção que Reis Cabral aqui aplica, como um bom aluno resolvendo sem dificuldade um exercício de escola (escrita criativa 101), este livro prova ser um tratado sobre as convenções que tornam este um género imediatamente reconhecível e popular entre nós. Sem atrito, marcado por um tom complacente, incapaz de provocar qualquer estremeção, gere habilmente o tempo, compõe um biombo com flores para tapar a cena de um crime, devolvendo algum conforto ao público. E isto é conseguido temperando a infâmia com o pó de arroz da literatice, os lugares-comuns, frases sem grumos, capítulos curtos, um livro que se lê sem esforço, que se alonga, demora desnecessariamente. O leitor é entretido e levado a um estado de torpor pelo éter das frases, da prosa sem espinhas, de uma narrativa como pão de forma, sem côdea.

Diogo Vaz Pinto. Quando a crítica se torna uma forma parasitária

Afonso Reis Cabral
A crítica literária tem uma responsabilidade muito grande. Não apenas funciona como uma resposta especializada na relação dialógica que os autores iniciam como influencia e potencia, ou o contrário, futuras relações. Daí que o que se diga sobre uma obra deva ser bem esmiuçado e daí que a própria crítica tenha de se preparar para o combate. Da mesma forma que um romance deve saber defender-se, também a crítica deve ter essa capacidade, e de diálogo, e de levantar problemas. A diferença entre crítica e insulto é um abismo e é desse abismo que quero aqui tratar.
No dia 9 de Outubro de 2018, Diogo Vaz Pinto ocupou três longas páginas no jornal i sobre Pão de Açúcar, romance de Afonso Reis Cabral. Os debates sobre a tabloidização deste jornal terão o seu espaço, mas quero aqui focar-me no teor da crítica em questão, intitulada “Afonso Reis Cabral. Quando a ficção se torna uma forma parasitária”. É um título possante, pede o clique na tela, faz com que não se vire a página. Por isso, espera-se que o texto venha calibrado, que justifique aquele título, que não deixe pontas por atar. Infelizmente, a pretensão não passa de intento e falha.
Logo no lide, há duas acusações ao autor: não supera “o desafio ético” e cai “no oportunismo”. São declarações fortes, mas não há qualquer problema, seja no campo da ética ou do oportunismo, em fazê-las. Há, contudo, em não justificá-las, em atirar isto para a praça pública sem o justificar convenientemente. Embora o crítico afirme que a ficção de Reis Cabral “não deixa de estar bem consciente do enorme risco ético que levanta este caso”, não vemos, ao longo de três páginas de jornal, qualquer justificação nem para a dita incapacidade de superar o “desafio ético” (qual?) nem para o pretenso “oportunismo” do autor (porquê?), transformando-se o que devia ser uma crítica numa gratuita imputação para o descrédito.
Deixar pensamentos no ar, sem justificação, com a desresponsabilização absoluta do crítico sobre o teor da sua crítica, terá os seus problemas em termos de rigor e seriedade, honestidade intelectual e bravura, mas o crítico vai ainda mais longe e deixa mesmo frases por acabar. Ora veja-se: “E se é notório que Afonso estudou o processo judicial, visitou o prédio — que continua devoluto, embora ostente atualmente um aviso da construtora Lúcios, afirmando que planeia fazer ali apartamentos, lojas e escritórios –, leu muito do que saiu na imprensa e noutras partes e até chegou à fala com algumas das pessoas que conheceram Gisberta, procurando munir-se de uma base sólida de factos antes de estruturar o livro.” Parece que vai rebater, mas deixa a frase a meio, o que só pode criar cepticismo no leitor (terá a leitura sido assim apressada, inconsequente, indolente?). De seguida, atira: “Contudo, há uma suspeita que começa a cercar o leitor depois de ter despachado meia dúzia dos seus breves capítulos.” Há uma suspeita? Qual? Não sabemos. E de rajada vem o comentário sobre a figura do narrador, Rafa, que, de acordo com o crítico do i, “acaba por cumprir um mero dispositivo funcional, servindo como eixo para um ponto de vista que raramente consegue ganhar alguma espessura dramática e refletir verdadeiramente as dimensões sociológica, cultural e etária em causa”. Mais uma frase robusta, outra sem justificação, numa altura em que, para que o crítico possa cumprir o seu papel, precisa de dar um pouco mais de si.
Será difícil, porque também ele está confuso. Por um lado, diz que a narrativa começa “a ceder muito cedo a uma composição formulaica”; logo a seguir, “demora desnecessariamente”, embora o autor, pasme-se, gira “habilmente o tempo”. Afonso Reis Cabral será assim um mestre do tempo: num mesmo romance, enquanto aplica uma fórmula matemática, demora-se inutilmente no conteúdo e gere com habilidade o tempo. É um caso em que as aparências não iludem: parece impossível e é mesmo.
Disse “romance”? Talvez o crítico discorde. É que, a meio da leitura, os leitores dão por si “a ler uma reportagem romanceada”, embora também não se entenda porque é que o romance, afinal, se transforma em reportagem. E mais: vem “cheia de ecos introduzidos ali de forma forçada”, mas ninguém sabe quais. E é tudo tão forçado que “chega a transparecer a disciplina com que o autor se fechou a montar as cenas para um guião pré-definido”, mas não há um único exemplo disto. Pois é, estamos perdidos. Afinal, deparamo-nos com “uma ficção esquemática” que “se alonga” (não cumpre o esquema?). São introduzidos “os dados apurados no processo e na imprensa”, mas, sendo o propósito do autor criar uma verdade possível dentro de uma realidade, não se percebe como poderia ser de outra maneira. A narrativa segura-se “ao corrimão dos factos”, mas se esse corrimão não existisse a história seria outra. A técnica é “bastante tosca”, mas também não se sabe o que lhe falta. Na narrativa, “fica tudo meio despegado”, mas talvez seja redundante exemplificar as pontas soltas. A seguir, lá vem o descalabro: “Vamos avançando por meio de frases de contornos suaves, uma estética branda, medida, controlada, num contraste absurdo com a história que tem por trás.” Para mais, “são raros os momentos em que a ficção, ao invés de amaciar, nos faz enfrentar “o coração das trevas” que sentimos pulsar uns bons passos à sua frente”. Pois que poderia querer-se? A assunção clara da monstruosidade enquanto é cometida aos poucos? Um passado imbuído do conhecimento do futuro? Pensamentos de uma personagem maculados pelas alheias visões pós-acto? Que literatura panfletária seria essa, se entregasse todas as cartas a priori?
Assim como assim, como se não bastasse, parece que Reis Cabral “sempre parece falar de uma realidade que lhe escapa”, mas também não se sabe em que é que os intentos do autor caem por terra. Alguém nomeia ou as três páginas do i são apenas uma corrente de lâminas sem faca?
Talvez o que incomode Vaz Pinto seja que o narrador pareça querer trocar “os demónios íntimos por diabinhos tatuados na pele” e é aqui que, depois de uma crítica desastrosa, também a sua leitura falha. Ao esperar um panfleto, falha. Ao não perceber que ruído é que deve ser incorporado numa história já existente, falha. Falha, por isso, na análise da concepção de literatura de Afonso Reis Cabral e, enquanto crítico, tenta impô-la, falhando também em prol dessa imposição. Enquanto o faz, talvez não se aperceba de que clama uma literatura robotizada, submissa à fórmula, sem brio e longe do seu amado coração das trevas. Essa falha de leitura é particularmente evidente na frase “Ao invés de expor a realidade, Afonso Reis Cabral parece não fazer mais do que aplicar verniz.” Será mesmo possível que três páginas de jornal dedicadas a um romance sejam escritas sem que o seu autor diferencie antropologia, jornalismo, sociologia, etc., de literatura? Que nelas se reduza a ficção à exposição da realidade?
Depois vem o grande escândalo: “Nem semanas tinham passado e já surgia o primeiro artigo” sobre o livro. Não é suposto? E não foi o que fez Vaz Pinto? E é precisamente o crítico do i que diz que a obra devia “pelo menos convidar a uma certa reserva, algum pudor diante de uma história que está longe de ter tido o seu momento de expiação”. A consideração não tem préstimo algum; longe do autor, em todas as suas declarações públicas, ter afirmado querer expiar alguma coisa. Também não se percebe o convite à reserva ou a necessidade de pudor. Queremos, afinal, o medo, a vergonha, o cinzentismo? Se os tivermos, como contrariar “a amorfia da ficção portuguesa atual” de que fala Vaz Pinto, uma vez mais sem justificar nada?
É que “do que aqui se trata” é “de um romance-performance”, e finalmente entende-se qual é, afinal, o problema do crítico com a obra de Reis Cabral. Não ético, como dizia o lide, enganando todos os leitores, puxando-os para um texto que, afinal, fala de outra coisa qualquer. É antes uma visão da literatura que torna um crítico num inútil panfletário, ao invés de uma voz especializada, com conhecimentos e capacidades analíticas, que seja capaz de entrar com dignidade na relação dialógica proposta pelos autores.
Vaz Pinto fez uma crítica literária que não tem qualquer intento de criticar literatura. Ele bem critica “o vazio da crítica”, num plot twist auto-referencial, e depois vai tudo a eito: autores, editores, publicitários, dinamizadores culturais, jornalistas e críticos. Na óptica do crítico do i, as publicações em literatura não passam de uma cabala, a divulgação passa “necessariamente, por um acordo de vontades”, a obra está “incompleta sem o efeito mediador”, o romance torna-se “um manequim para ser desfilado e vestido coletivamente”. Talvez a parte mais chocante seja mesmo a da acusação da mediação. Pois se ela serve para que o início tenha um fim, se o processo dialógico se inicia precisamente para que alguém o actualize, se postula a cooperação do leitor enquanto condição dessa actualização, como poderia a obra sequer existir se não chegasse às mãos antes de chegar às prateleiras?
Finalmente, num chorrilho de insultos sem justificação, Reis Cabral “compõe um biombo com flores para tapar a cena de um crime, devolvendo algum conforto ao público”, o que só “é conseguido temperando a infâmia com o pó de arroz da literatice, os lugares-comuns, frases sem grumos, capítulos curtos, um livro que se lê sem esforço, que se alonga, demora desnecessariamente”. Sobre as demoras desnecessárias, já aqui foi feita referência, mas um crítico que se quer sério tem de exigir mais de si e do que faz do que isto. Venham pois os exemplos de lugares-comuns, de frases sem grumos. Diga-se pois em que é que o tamanho dos capítulos influi na narrativa, diga-se se essa narrativa é afinal esquemática ou se se demora desnecessariamente. Diga-se, já agora, o que é o necessário na literatura. E diga-se pois qual é o capítulo inoperante.
Vaz Pinto cita Manguel e tudo, mas uma crítica que se deixa levar a um estado de torpor pelo éter das frases está condenada ao falhanço, a cumprir o papel de bobo da corte da arte. E o que é preciso, numa altura em que Chagas Freitas e Minh’Almas inundam prateleiras, fazem estantes, é de uma crítica que se ponha no centro da relação dialógica, que perceba que tem de ter a mesma exigência para consigo que tem para com as obras que escrutina, que não ceda ao fatalismo e ao facilitismo do insulto, das insinuações, das frases ácidas que não são irmanadas com as suas justificações, que permita a literatura em triplo movimento, produção-recepção-comunicação. Caso contrário, nunca deixará de ser imprestável, auto-laudatória, auto-deslumbrada, e para mais perversa: ao não contribuir, não propor, não dialogar, usa o espaço privilegiado que tem de forma desonesta e pueril. Ao permitir-se escrever sem justificar, sem exemplificar, o crítico fala não como um par, não como parte integrante da referida relação dialógica, mas como um avaliador totalitário, sobranceiro e superior, assumindo uma atitude perniciosa para com aquilo a que se propõe e matando o próprio trabalho, inutilizando o próprio olhar. Assim, torna-se no cancro que envenena a relação entre escritores, leitores e críticos, tornando-se difícil dar o salto para deixar de ser parasitário.




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