Hoje, dei-me conta de uma tempestade no Instagram,
onde sigo muitas personalidades internacionais do mundo do ballet (que é, como
sabem os que me lêem, uma das minhas grandes paixões). Num programa televisivo
nos EUA, alguém referiu de forma trocista o facto de o Príncipe George (filho
de William e Kate) estar a ter aulas de ballet.
Todos sabemos o que está por trás dessa troça: a
convicção, ainda mantida por tanta gente em 2019, de que os meninos que
aprendem ballet desaprendem a sua «correcta» identidade heterossexual. Ballet -
segundo esse estereótipo - é só para meninas e para gays. Pior: o ballet torna
os meninos gays.
A ideia por trás desta paranóia é algo que nunca me
deixa de surpreender: no fundo, no inconsciente de tanta gente, a
homossexualidade masculina parece ser um chamamento tão aliciante que, se um
rapaz não for daí desviado, inevitavelmente por aí enveredará. Para isso parece
servir o futebol e os outros desportos; para isso parece servir a educação dos
pais, que têm de incutir comportamentos certos de masculinidade. Por isso o
ballet é um problema.
Porque é um problema - continua a ser um problema em
2019 - quando um rapaz decide que quer aprender ballet.
Há bailarinos gays? Há.
Há bailarinos héteros? Há. (Hoje, se calhar, até são a
maioria.)
A realidade profissional do ballet mostra-nos que os
bailarinos se dividem, tal como o resto da Humanidade, em heterossexuais,
homossexuais, bissexuais etc. Não é uma questão que tenha a ver com o ballet em
si. Sempre houve os gays como Nureyev; sempre houve os héteros como
Baryshnikov; e sempre será assim.
No entanto, é fácil sentirmos pena dos héteros, pelo
modo como nunca se livram da fama/suspeita: ainda me lembro da primeira vez que
ouvi o nome Mikhail Baryshnikov nos anos 70 e como a pessoa que o mencionou (a
professora de ballet da minha irmã) disse que ele fingia ser um grande
conquistador de mulheres (que conceito de heterossexualidade, «by the way»...),
mas na verdade era um gay encapotado.
Quantos e quantos bailarinos héteros não têm sofrido
desse estigma de que a sua heterossexualidade é uma capa para esconder outra
coisa? E quantos hoje em dia não sobre-compensam com a projecção de uma imagem
de macho que quase se torna caricata? Enchem o seu Instagram com fotos de
desportos «machos» (futebol, basquete, etc.), com carros de alta velocidade,
com motos, com surf - com tudo o que possa desfazer a imagem convencionalmente
associada a um homem que dança ballet.
Mas há aqui, a meu ver, uma homofobia subjacente que
me incomoda. Tal como me incomoda o argumento das pessoas que querem defender o
direito dos meninos a fazer ballet, dizendo que é uma actividade muito
«masculina» e muito «atlética». Irrita-me sempre ouvir que «é preciso muita
força, é preciso muito músculo», para saltar, para levantar as bailarinas, etc.
O argumento parece ser que, contrariamente ao suposto
preconceito, o ballet masculino é, na verdade, algo de intrinsecamente
heterossexual. Só porque a sua prática exige o atletismo e a força que, segundo
esse ponto de vista, é garantia de heterossexualidade. Como se um homossexual
não pudesse ser detentor de tais qualidades: atletismo e força.
Por isso, por muito que eu me solidarize com o
bullying a que rapazes e homens heterossexuais são sujeitos por fazerem ballet,
não posso deixar de me solidarizar ainda mais com os bailarinos gays.
Pois estes não só sofrem bullying da parte dos
preconceituosos e ignorantes fora do universo do ballet. Sofrem bullying cada
vez que alguém, no interior do mundo do ballet, vem a público dizer que o facto
de um rapaz ou homem dançar ballet «não é o que as pessoas pensam», porque é
algo de «muito másculo» e de «muito atlético».
Como se «muito másculo» é «muito atlético» fossem
expressões antónimas de «gay».
O que este discurso quer dizer - o que a
sobre-compensação dos bailarinos héteros projectando caricatamente imagem de
macho quer dizer - é que, dentro do próprio mundo do ballet, o preconceito
contra o bailarino gay (ainda) existe.
Frederico
Lourenço, 2019-08-23
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