Memória
mystica de António Maria Lisboa
Falemos
de coisas tristes.
...
a morte já foi...
Já
passou o Outomno e, agora, em plena Primavera, sinto o Inverno,
que
persiste sob um manto esfarrapado
de
dor.
Mas
o Outomno de 1953, não passou. A partir de 11 de Novembro desse ano, as
estações deixaram de se suceder, conforme o rythmo da natureza, até hoje.
A
beleza da morte provoca sempre paragens e desordens no tempo a fim de tornar
plausíveis as noções de Eternidade e de Invisível.
António
Maria Lisboa, no seu quarto pobre, morre, voltado para a parede, na direcção da
Mulher-Mãe, tal qual um sufi agonizante, a escutar o coração do Alcorão,
voltado para Meca.
Da
sua boca não saíram frases litúrgicas em árabe (como aconteceu com Rimbaud, que
ensinava o Alcorão às crianças), mas apenas o nome de duas syllabas: Sagir, de
uma língua amorosa e desconhecida.
E,
do outro lado do mar, a Mulher-Mãe ouviu pronunciar o seu nome sôbre as águas.
Entretanto,
à pressa, o pai e a irmã deste Poeta, entraram no quarto pobre e rasgaram, com
ódio, os seus poemas, deitando-os, depois, para o caixote do lixo.
A
Mulher-Mãe, do outro lado do mar
(suave
contorno com olhos de misericórdia)
liquefaz-se,
em perfume,
lágrima
a lágrima,
de
lume.
*
Os
teus cabelos loiros, Sagir, cobrem as montanhas de oiro.
As
montanhas choram para que Deus as leve para o céu.
Há
dois vultos no horizonte, envoltos em bruma,
dois
Poetas vulcânicos e convulsivos:
Jean
Arthur Rimbaud e António Maria Lisboa,
ambos
supliciados
e
ressuscitados pelo século dos séculos.
Os
teus cabelos loiros, Sagir, cobrem as montanhas de oiro.
As
montanhas choram para que Deus as leve para o céu.
Os
dois Poetas emergem da bruma e caminham de mãos dadas,
como
dois bons irmãos da Confraria do Silêncio
e
falam, em voz baixa, árabe e sânscrito.
Os
teus cabelos loiros, Sagir, cobrem as montanhas de oiro.
As
montanhas choram para que Deus as leve para o céu.
Os
dois Poetas ouviram o pranto das montanhas cobertas de oiro e comoveram-se. E
intercederam logo junto de Deus, que gosta de se rodear de santos aventureiros,
de corsários e de Poetas.
Agora,
no céu, multiplicam-se os picos de neves eternas, com cabelos loiros.
António
Barahona, Coelacanto/2, Lisboa,
s/Editor, 2013.
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