sexta-feira, 4 de abril de 2014

Memória mystica de António Maria Lisboa







Memória mystica de António Maria Lisboa
 

Falemos de coisas tristes.
... a morte já foi...
Já passou o Outomno e, agora, em plena Primavera, sinto o Inverno,
que persiste sob um manto esfarrapado
de dor.
 

Mas o Outomno de 1953, não passou. A partir de 11 de Novembro desse ano, as estações deixaram de se suceder, conforme o rythmo da natureza, até hoje.
A beleza da morte provoca sempre paragens e desordens no tempo a fim de tornar plausíveis as noções de Eternidade e de Invisível.
António Maria Lisboa, no seu quarto pobre, morre, voltado para a parede, na direcção da Mulher-Mãe, tal qual um sufi agonizante, a escutar o coração do Alcorão, voltado para Meca.
Da sua boca não saíram frases litúrgicas em árabe (como aconteceu com Rimbaud, que ensinava o Alcorão às crianças), mas apenas o nome de duas syllabas: Sagir, de uma língua amorosa e desconhecida.
E, do outro lado do mar, a Mulher-Mãe ouviu pronunciar o seu nome sôbre as águas.
Entretanto, à pressa, o pai e a irmã deste Poeta, entraram no quarto pobre e rasgaram, com ódio, os seus poemas, deitando-os, depois, para o caixote do lixo.
 
A Mulher-Mãe, do outro lado do mar
(suave contorno com olhos de misericórdia)
liquefaz-se, em perfume,
lágrima a lágrima,
de lume.

 

*

 

Os teus cabelos loiros, Sagir, cobrem as montanhas de oiro.
As montanhas choram para que Deus as leve para o céu. 

Há dois vultos no horizonte, envoltos em bruma,
dois Poetas vulcânicos e convulsivos:
Jean Arthur Rimbaud e António Maria Lisboa,
ambos supliciados
e ressuscitados pelo século dos séculos.

Os teus cabelos loiros, Sagir, cobrem as montanhas de oiro.
As montanhas choram para que Deus as leve para o céu.
 
Os dois Poetas emergem da bruma e caminham de mãos dadas,
como dois bons irmãos da Confraria do Silêncio
e falam, em voz baixa, árabe e sânscrito.
 
Os teus cabelos loiros, Sagir, cobrem as montanhas de oiro.
As montanhas choram para que Deus as leve para o céu.
 
Os dois Poetas ouviram o pranto das montanhas cobertas de oiro e comoveram-se. E intercederam logo junto de Deus, que gosta de se rodear de santos aventureiros, de corsários e de Poetas.
Agora, no céu, multiplicam-se os picos de neves eternas, com cabelos loiros.

 

António Barahona, Coelacanto/2, Lisboa, s/Editor, 2013.

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