sexta-feira, 11 de abril de 2014

José António Almeida







INTERIOR DE PROVÍNCIA

Relembra a data, quando começou
a trabalhar nas obras, de servente.

Um cigarro fuma. Fala com outro.
Dezasseis anos, quando começou.

A mesma mesa partilhamos por
míngua de espaço na descolorida

sala de fumo do café da vila.
O jornal, que finjo ler: um tabique

cómodo para mim e para todas
as faces cerradas na pouca sorte.

O meu olhar ensaia-se furtivo,
mas volta sempre para a letra morta.

Os olhos, doces e tristes, são negros
‑ de cor trigueira, seu perfeito corpo.

E não há revolta na voz que lembra
os verdes anos, quando começou.





Foto: www.homo-online.com






O ELEVADOR

Avariado o elevador do prédio
- numa tarde de tórrido calor.
Na penumbra do átrio decadente,

um rapaz intentava restaurar
a perdida potência da roldana.
Cansada do perpétuo movimento

de corpos em procura de prazer
na morada de má reputação.
Robustez e perícia do operário

casavam na manobra delicada
de consertar a máquina doente.
Com farta cabeleira cor de fogo,

ungido de óleo, mácula no torso
possante e quase nu na jardineira
- a farda de trabalho, por pobreza.

Mas ao vê-lo nem sombra de avaria.
Olhar aquela face era subir
- subir ao mais azul do céu safira.








ALGARVE, POSTAL SEM DATA

Só talvez uma gaivota
se lembre do nosso beijo.
Agora que sete dias

já correram rente ao muro.
Duna, falésia, ravina
do tom ocre da caveira

entre mãos doutro rapaz
num desenho cor de sépia.
Mesmo na beira da praia,

ao pé de morta palmeira.
Quando o seu corpo de fogo
me empurrou contra a parede,

que era de noite sabíamos.
No mar passava um veleiro
- e no céu, louca gaivota.

José António Almeida, Arco da Porta do Mar
Lisboa, &etc, 2013.

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