segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Masculinidade tóxica



 
Sôbolos rios que vão 

Masculinidade tóxica. Este conceito tem adquirido o seu espaço na discussão mediática (e não só) quando se fala sobre o modo como certos comportamentos machistas influem negativamente na vida de pessoas humanas que não são homens adultos com comportamento de «macho alfa»: refiro-me a mulheres, a crianças e também a homens com défice desse tipo de masculinidade, aos quais se chamaram muitos nomes ao longo da História humana, mas a quem hoje chamamos gays ou queers ou outra coisa assim.

Ao longo da História, as principais vítimas da masculinidade tóxica foram as mulheres e as crianças. As mulheres pela forma como foram objectificadas, vistas como propriedade do pai, do marido ou do dono (no caso de serem escravas). Todos sabem como eu amo profundamente a poesia de Homero, mas sinto sempre um mal estar enorme quando leio aqueles versos em que Aquiles, ao celebrar jogos fúnebres em honra do seu amigo Pátroclo, institui um campeonato de boxe, em que ao vencedor cabe o prémio de um artefacto em metal, que valia doze bois. O segundo prémio (para o pugilista vencido, portanto) era uma mulher, excelente tecelã, cujo valor no mercado era de quatro bois (Ilíada 23.702-705). Como se não bastasse esta objectificação da mulher - que, sendo escrava no acampamento grego em Tróia, era uma cativa que tinha sido levada para a escravatura depois do saque de uma cidade ali à volta - ainda por cima ela é vista como valendo menos do que uma trípode e, humilhação suprema, é o SEGUNDO PRÉMIO, dado ao atleta vencido.

Que vida seria a dessa mulher? A que sofrimentos seriam sujeitas essas escravas? Violência de todo o tipo, claro: eram abusadas sexualmente (isso está logo escancarado no verso 31 do Canto 1 da Ilíada); certamente seriam espancadas se não obedecessem aos donos e não trabalhassem como eles queriam. Tinham condições de vida, nalguns casos, que lembram o campo de concentração nazi em que os prisioneiros tinham de produzir um número certo de artefactos por dia; se o não fizessem, eram chicoteados de forma bárbara. Esse regime de trabalho forçado das escravas está patente na Odisseia 20.109-110.

Mas o pior sofrimento das cativas era perder os filhos no momento de serem capturadas. Esse é o pior crime de guerra da Antiguidade, do qual temos vários ecos no Antigo Testamento e na literatura grega. Toda a gente conhece o caso do filho de Heitor e de Andrómaca, lançado das muralhas de Tróia para cima das pedras lá em baixo. Por vezes pensamos que isso foi uma crueldade excepcional. Não foi excepcional. Era normal.

Quando uma cidade era saqueada na Antiguidade, a população adulta que tinha sobrevivido ao cerco e ao saque da cidade era levada para a escravatura. As mulheres deixavam de ter qualquer identidade própria: já não eram filhas dos seus pais, já não eram esposas dos seus maridos: eram agora escravas de um dono. A maior crueldade era que deixavam de ser mães das crianças pequenas que tinham, porque essas crianças eram simplesmente mortas, muitas vezes com a barbaridade de serem apanhadas pelos pés e atiradas com a cabeça contra paredes ou pedras.

Porquê? Porque os novos donos dessas mulheres agora escravas, segundo o código da sua masculinidade tóxica, não iam ficar com filhos de outros homens a seu cargo. As novas escravas iriam a partir de agora engravidar dos donos e criar esses filhos como escravos dele. Os filhos de gravidezes anteriores tinham de morrer.

No Salmo 137 (na Vulgata, Salmo 136), ouvimos os lamentos dilacerantes dos judeus deportados para a Babilónia. «Sôbolos rios que vão...» (como escreveu Camões; «Super flumina Babylonis», na lindíssima versão da Vulgata). O último versículo deste salmo é chocante: pois os judeus bendizem e consideram bem-aventurado o soldado que pegar nos filhos pequeninos dos babilónios e os esmagar contra as pedras.

A desculpa dos judeus é que foram eles próprios vítimas dessas atrocidades por parte de assírios e de babilónios. A culpa? Essa cabe inteiramente à masculinidade tóxica. Não há volta a dar.

Ontem celebrámos os 50 anos de Stonewall. Não se trata apenas de mudar as mentalidades em relação aos direitos LGBT. Trata-se também de pensar que podemos querer uma sociedade em que os valores do machismo patriarcal não têm de ser dominantes. No «Daily Telegraph» de hoje, um alto funcionário do Banco de Inglaterra culpa o excesso de testosterona nos mercados de capitais pelos crimes financeiros em que os grandes bancos do mundo ficam com buracos e com fraudes de biliões. Na opinião dele, devia haver mais mulheres a trabalhar nos mercados de capitais e nas bolsas de valor. Felizmente, hoje uma mulher - até para o Banco de Inglaterra - vale mais do que quatro bois. 

Frederico Lourenço, 2019-06-29
 

 
MASCULINIDADE TÓXICA
 
É a masculinidade tóxica enraizada no nosso caldo cultural que mata mulheres em números todos os anos insuportáveis, este ano a deixar-nos sem voz, em desespero e culpa coletiva.
Há várias masculinidades, mas continua a persistir a tal masculinidade tóxica, porque a sociedade ainda empodera – porque não desarma – os homens que na rua, no local de trabalho e em casa olham a mulher como o sexo neutro.
A mulher é o que os homens definiram ao longo da história: o seu papel, em casa, na rua ou mesmo numa estrutura organizativa não é um lugar de reclamação própria, mas um reflexo. Um reflexo, porque para a masculinidade tóxica as mulheres são – ainda que inconscientemente – propriedade, obedientes, recetoras menores de opiniões maiores, objetos sexuais, gente que se trata mal porque “homem é homem, é da natureza”. A masculinidade tóxica implica uma orgulhosa recusa de lidar com emoções, essa coisa de mulheres.
A masculinidade tóxica é apegada ao preconceito, é homofóbica, é misógina, odeia mulheres na proporção em que admira homens quanto a um mesmo comportamento. Isso é visível no duplo padrão em que ainda vivemos em matéria de liberdade sexual: por todo o lado as “putas” e os “garanhões”, essa dualidade.
A masculinidade tóxica bebe da moral religiosa bafienta muita da sua base para rebaixar as mulheres a destinatárias de uma moralidade própria. De resto, faz parte do caldo recusar direitos de maternidade a casais de lésbicas, por exemplo, que isto de ter filhos sem tutela masculina é a loucura.
É neste país que vivemos, onde nos corpos e na expressão da nossa inteligência somos alvos de sexismo e de misoginia. Não há nenhuma mulher que não saiba o que isto é. Umas saberão de graus maiores e outras de menores, mas todas sabemos o que é ser menos, não apenas nas relações interpessoais, mas em estruturas organizativas e na sociedade em geral.
Os juízes e as juízas não nascem em Marte, bebem deste caldo cultural, e se a advertência ao Juiz Neto Moura soube a pouco – obviamente não devia ser juiz -, a verdade é que nos mexemos, ouvimos de nós a condescendência tóxica habitual enquanto exigíamos uma tomada de posição do CSMJ, mas pela primeira vez todas e todos os juízes prontos a pôr de lado a laicidade do estado e a igualdade de género estão advertidos.
Talvez a masculinidade tóxica que afirma a igualdade em abstrato, mas dá cabo de nós quando combatemos as causas profundas deste caldo cultural, pense duas vezes daqui para a frente antes de enxovalhar quem recusa livrinhos escolares diferenciados por sexo ou quem reclama pela liberdade das crianças na escolha dos seus brinquedos.
Talvez, perante nove mulheres mortas neste início do ano, as pessoas que dizem “feminismo, mas”, as pessoas que dizem “ah, mas há homens que também são vítimas”, percebam que não há um fenómeno social de homicídio conjugal de homens em contexto de violência doméstica. Há homens vítimas de violência doméstica, e ela tem de ser combatida, mas a expressão monstruosa da violência dos homens exercida sobre as mulheres não tem simetria possível – daí ser fenómeno -, e não há correspondente masculino para a palavra “femicídio”.
Não há um caldo cultural que leve as mulheres a estruturarem o que é um homem, pronto.
Temos uma boa lei.
Está a ser feito um investimento crescente na Rede nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, bem como nos protocolos de proximidade e na formação específica dos vários intervenientes.
Fundamental é a aposta, desde 2017, na estratégia nacional de educação para a cidadania.
Porque o objetivo é mesmo zero mortes, zero casas de abrigo (por desnecessidade): isto implica uma aposta feroz na mudança de mentalidades. Acabar com a masculinidade tóxica com a ajuda de homens e mulheres que querem, mesmo, sem adversativas, para bem de todos, o fim desta insuportável subjugação das mulheres.
 
Isabel Moreira, Expresso, 2019-02-16
https://expresso.pt/blogues/blogue_contrasemantica/2019-02-16-Masculinidade-toxica
 

domingo, 22 de setembro de 2019

Rapazes e ballet: o preconceito interno



Hoje, dei-me conta de uma tempestade no Instagram, onde sigo muitas personalidades internacionais do mundo do ballet (que é, como sabem os que me lêem, uma das minhas grandes paixões). Num programa televisivo nos EUA, alguém referiu de forma trocista o facto de o Príncipe George (filho de William e Kate) estar a ter aulas de ballet.

Todos sabemos o que está por trás dessa troça: a convicção, ainda mantida por tanta gente em 2019, de que os meninos que aprendem ballet desaprendem a sua «correcta» identidade heterossexual. Ballet - segundo esse estereótipo - é só para meninas e para gays. Pior: o ballet torna os meninos gays.

A ideia por trás desta paranóia é algo que nunca me deixa de surpreender: no fundo, no inconsciente de tanta gente, a homossexualidade masculina parece ser um chamamento tão aliciante que, se um rapaz não for daí desviado, inevitavelmente por aí enveredará. Para isso parece servir o futebol e os outros desportos; para isso parece servir a educação dos pais, que têm de incutir comportamentos certos de masculinidade. Por isso o ballet é um problema.

Porque é um problema - continua a ser um problema em 2019 - quando um rapaz decide que quer aprender ballet.

Há bailarinos gays? Há.

Há bailarinos héteros? Há. (Hoje, se calhar, até são a maioria.)

A realidade profissional do ballet mostra-nos que os bailarinos se dividem, tal como o resto da Humanidade, em heterossexuais, homossexuais, bissexuais etc. Não é uma questão que tenha a ver com o ballet em si. Sempre houve os gays como Nureyev; sempre houve os héteros como Baryshnikov; e sempre será assim.

No entanto, é fácil sentirmos pena dos héteros, pelo modo como nunca se livram da fama/suspeita: ainda me lembro da primeira vez que ouvi o nome Mikhail Baryshnikov nos anos 70 e como a pessoa que o mencionou (a professora de ballet da minha irmã) disse que ele fingia ser um grande conquistador de mulheres (que conceito de heterossexualidade, «by the way»...), mas na verdade era um gay encapotado.

Quantos e quantos bailarinos héteros não têm sofrido desse estigma de que a sua heterossexualidade é uma capa para esconder outra coisa? E quantos hoje em dia não sobre-compensam com a projecção de uma imagem de macho que quase se torna caricata? Enchem o seu Instagram com fotos de desportos «machos» (futebol, basquete, etc.), com carros de alta velocidade, com motos, com surf - com tudo o que possa desfazer a imagem convencionalmente associada a um homem que dança ballet.

Mas há aqui, a meu ver, uma homofobia subjacente que me incomoda. Tal como me incomoda o argumento das pessoas que querem defender o direito dos meninos a fazer ballet, dizendo que é uma actividade muito «masculina» e muito «atlética». Irrita-me sempre ouvir que «é preciso muita força, é preciso muito músculo», para saltar, para levantar as bailarinas, etc.

O argumento parece ser que, contrariamente ao suposto preconceito, o ballet masculino é, na verdade, algo de intrinsecamente heterossexual. Só porque a sua prática exige o atletismo e a força que, segundo esse ponto de vista, é garantia de heterossexualidade. Como se um homossexual não pudesse ser detentor de tais qualidades: atletismo e força.

Por isso, por muito que eu me solidarize com o bullying a que rapazes e homens heterossexuais são sujeitos por fazerem ballet, não posso deixar de me solidarizar ainda mais com os bailarinos gays.

Pois estes não só sofrem bullying da parte dos preconceituosos e ignorantes fora do universo do ballet. Sofrem bullying cada vez que alguém, no interior do mundo do ballet, vem a público dizer que o facto de um rapaz ou homem dançar ballet «não é o que as pessoas pensam», porque é algo de «muito másculo» e de «muito atlético».

Como se «muito másculo» é «muito atlético» fossem expressões antónimas de «gay».

O que este discurso quer dizer - o que a sobre-compensação dos bailarinos héteros projectando caricatamente imagem de macho quer dizer - é que, dentro do próprio mundo do ballet, o preconceito contra o bailarino gay (ainda) existe.

Frederico Lourenço, 2019-08-23

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Nanette (Biografia, Comédia, 2018)


HUMOR

Hannah Gadsby: stand up ou cilada? O espectáculo que está a mudar o humor

"Nanette" chegou há pouco tempo ao Netflix. Susana Romana já o viu três vezes, recomenda-o a toda a gente e todos dizem que se fartam de chorar. Confusos? Ela também. Mas não consegue parar de ver.

 
Já li mais livros sobre comédia do que aqueles que me consigo lembrar assim de cabeça. Dos mais densos aos mais galhofeiros, do Stendhal ao Jimmy Carr. E se vos parece um tema interessante é porque nunca me viram a dar seca a pessoas em jantares, com explicações eloquentes mas indesejadas sobre o bathos ou o pay off, enquanto a pobre alma que ficou sentada ao meu lado tenta ensurdecer com recurso a muita sangria. Há um eixo comum na esmagadora maioria destes livros, independentemente do século ou do tom: o humor serve para nos apaziguar dores, dar perspetiva, curar as tormentas. Daí o provérbio velho como o tempo: “o riso é o melhor remédio”.
Hannah Gadsby, comediante australiana, discorda. Diz que é a penicilina. E depois remata com uma articulada mas violenta explicação de como o facto de moldar todas as suas experiências em pequenas tiradas cómicas lhe está a arruinar a vida. Fico em suspenso. Isto é o oposto de tudo o que aprendi e de tudo o que ensinei.
“Nanette”, o espectáculo que chegou há pouco tempo ao Netflix e fez de Gadsby uma estrela mundial, é uma pedrada no charco. Esta expressão cliché é usada geralmente com displicência, para categorizar tudo, desde óperas a hamburguerias. Mas “Nanette” muda efectivamente o paradigma do que é um solo de stand up. Mais: será mesmo isto um espectáculo de stand up? Já o vi três vezes e continuo sem saber. Todo este espectáculo é uma cilada, um canto da sereia humorístico que nos prende para depois se transformar num Adamastor visceral e dramático. Mistura piadas com autobiografia, o que está longe de ser novo. Mas fá-lo de um modo que denuncia o humor como algo que deturpa a nossa verdade e pode por isso ser perigoso.  Cilada é mesmo a palavra que melhor descreve a viagem por “Nanette”, a começar logo no título, desmontado nos primeiros instantes: Nanette é o nome de uma mulher que Hannah conheceu e achou que lhe ia render uma hora de piadas; tal não aconteceu de todo, mas o nome já estava precocemente dado.
[o trailer de “Nanette”:]

No início, a comediante faz-nos rir com piadas sobre as suas experiências como lésbica assumida numa pequena cidade da Tasmânia. Apenas para depois nos explicar que limitamo-nos a rir de uma versão abusivamente simplificada de experiências traumáticas. No início fala-nos entre risadas da vez em que um rapaz a confundiu com um homem e achou que Hannah se estava a fazer à namorada dele. Juntamo-nos a ela nas risadas. Muito mais à frente no set, quando já esquecemos esse episódio mascarado de comédia de costumes, elucida: esse rapaz acabou por a espancar e ela ficou tão tolhida pela vergonha de ser quem era que nem foi à polícia. Nós rimo-nos, com ela, da versão tosca e divertida a lápis de cera de um episódio que afinal é uma enorme pintura a óleo de dor e trauma. Se calhar, não era para rir. Culpa dela? Culpa nossa? Nós vamos à traição, porque a única pessoa que Hannah Gadsby quer parar de trair é a ela própria.
Tenho recomendado “Nanette” a toda a gente que consigo. Podem até não adorar (algumas pessoas caracterizam-no como TED Talk, e não de modo elogioso), mas é certo que levarão uma lambada no cérebro e na alma e ficarão a pensar naquilo um algum tempo.  A reacção que mais recebo de quem acede à recomendação é “fartei-me de chorar”. Estranho, num especial de comédia. Já vi pessoas serem mudadas por filmes ou por livros, acho que nunca tinha visto acontecer com stand up. “Ainda estou a pensar naquele fim”. Se o estômago embrulhado vai durar um dia, uma semana ou uma vida? Não é possível saber.
Filmado na ópera de Sidney, o espectáculo dura cerca de uma hora e dez. E é ao minuto 17 que tudo muda. Os conterrâneos de Hannah a rirem-se com as suas aventuras de coming out e ela a largar a bomba:
Acho que tenho de deixar a comédia. Este não é o melhor sítio para fazer este anúncio, pois não? (…) Mas tenho questionado esta coisa da comédia.”
Depois de um ano de reflexão, a mulher que faz aquilo há uma década depois de ter ganho um concurso de televisão quer parar. Não tem plano B, assegura. Mas já não se sente confortável naquele papel. Construiu toda carreira no humor auto depreciativo e já não o quer fazer mais. Explica que para quem se sente a viver à margem, o bota abaixo humorístico “não é humildade, é humilhação”.  Não fará mais isto nem a ela nem a quem se identifica com ela. “Se a minha carreira acabou, seja.” O público bate palmas.
[uma entrevista com Hannah Gadsby:]

A história de vida de Hannah Gadsby era terreno demasiado fértil para desperdiçar sem uma colheita artística. Natural de Smithton, uma pequena cidade no noroeste da ilha da Tasmânia, diz que teve de sair quando descobriu que era “um pouco lésbica”, algures em meados dos anos 90. Aos gays era ordenado, segundo a própria,  que “metam a SIDA numa mala e vão para o Mardi Gras!”. Até 1997, a homossexualidade era ilegal na Tasmânia. Na parte já séria de “Nanette”, Gadsby garante que quando descobriu que era lésbica, ela própria já era homofóbica. Precisou de dez anos depois de se assumir para tentar encontrar o seu lugar no mundo. Garante que o truque é parar de tentar encaixar.
A australiana é mestre não só de texto, mas especialmente da arte de bem saber manipular os sentimentos de quem a vê em palco. “Eu faço-vos tensos, esta é uma relação abusiva”. A tensão é, academicamente, a rampa de lançamento de qualquer piada. Qualquer um dos livros que li garante que o riso é causado para relaxar perante a tensão do ilógico ou inesperado. É natureza humana. Mas Hannah Gadsby não se deixa convencer por esta fórmula: “eu não tinha de inventar a tensão. Eu sou a tensão”.
Regressando à ideia de desistir, a tasmaniana confessa que o modo como conta em palco, com piadas, o momento em que se assumiu perante a mãe é um dos principais factores para a decisão. Nos seus espectáculos, congelou linhas gerais dessa experiência no seu ponto mais traumático, confundindo assim esse congelamento com o que aconteceu mesmo. Porque uma piada precisa de trauma para funcionar, para ter a tal tensão. Mas na vida fora do palco (real ou metafórico), não funciona assim, com esta sede de choque e imediatismo. “Aprendemos com a parte da história em que nos concentramos. Preciso de contar a minha história como deve ser”. Gritos. Suspiros. “Nanette” termina sem a clássica piada final antes da saída em grande de palco. Hannah Gadsby parte para cuidar da sua história. E nós ficamos do lado de cá dessa porta que se fecha.
Susana Romana (guionista e professora de escrita criativa)
 

Decore este nome: Nanette, o mais recente fenómeno Netflix

Deem o microfone certo a uma “mulher errada”. Mas preparem-se. Sobretudo se o fizerem a meio do turbilhão #MeToo. Uma “mulher errada”, como a própria se define, tem material que chegue para fazer piadas sobre ela própria. Felizmente, Hannah Gadsby sabe que os tempos não estão para auto-depreciação, ou pelo menos nem sempre – não é com as vítimas que devemos gozar, é com os agressores. E não são as mulheres que são erradas, talvez seja a comédia que o está.
A mais jovem de cinco irmãos, que sofre de perturbação de hiperatividade/défice de atenção, nasceu há 40 anos em Smithton, pequena localidade na conservadora Tasmânia, Austrália. Lésbica assumida, confortável num smoking, inteligente nas tiradas, é a mulher à frente de Nanette, o mais recente fenómeno de popularidade na Netflix, ou “Nanetteflix”, como a comediante justamente batizou.

“Aconteceu por acaso, como tudo na minha. Eu sou obra do acaso”, confessou a australiana quando em junho passou pelo talk show Late Night with Seth Meyers. Hannah andava a plantar árvores quando lesionou um pulso. Passou a recuperação a entreter os amigos, até que um deles decidiu que Hannah merecia uma “audiência mais vasta”. Gadsby acabou inscrita num concurso de comédia e o resto da história passa por uma década a participar em festivais e espetáculos de stand up. Até que uma audiência internacional se começou a render a este registo incubado nos antípodas.
Hannah passou de uma discreta humorista com participação na sitcom australiana Please Like Me para as bocas do mundo. E Nanette, que se estreou no Netflix a 19 de junho, depois de levar a melhor no irlandês Fringe Festival, de um périplo pela Austrália, e de uma digressão pelos EUA, tem tudo para continuar a alimentar o fenómeno, sempre a questionar os parâmetros do stand up.
Hoje, são uma e uma só, alinhadas na mensagem. É através de Nanette que a comediante passa em revista a atualidade e uma série de cabeças debaixo de fogo, para tensão e incómodo das plateias. De cano apontado à cultura que admite e perdoa o abuso, ataca nomes como Louis C.K:, Harvey Weinstein e Bill Clinton, numa “engenhosa acusação ao sexismo e sentimentalismo das nossas narrativas sobre os génios”, como sublinhou no The New York Times o crítico e colunista de comédia Jason Zinoman.
No limite, Nanette (o nome foi inspirado numa mulher comum com quem Hannah se cruzou) põe em sentido a própria comédia e os seus padrões e conteúdos vigentes. Não por acaso, a revista Slate cunhou o seu desempenho como “stand up tragedy”, enquanto a Vulture antevê que depois de Nanette este conceito de espetáculo nunca mais será como dantes. E para tal, em muito contribui o histórico da protagonista.
“Não tenho uma família ou um passado como a maior parte das pessoas. Portanto a relação entre o lado pessoal e político deu mesmo forma ao que Nanette é. Donald Trump foi eleito e a minha avó morreu – essas duas coisas foram um gatilho”, recordou Hannah em entrevista à revista Rolling Stone, resumindo o seu método de forma contundente – o propósito “não é elevar o riso, mas sim tirar o tapete” – e louvando a universidade e espírito democrático da comédia (“Podes vir de um contexto sócio-económico baixo como eu”.
À Rolling Stone, Gadsby resume o seu método de forma contundente – o propósito “não é elevar o riso, mas sim tirar o tapete” à plateia
É a brincar que se abordam temas bem sérios como a misoginia, a homofobia, ou até a violação corretiva de lésbicas como prática menos rara do que se pensa. Para não falar das sábias incursões no mundo da arte e na alusão a referências como Woody Allen, Roman Polanski ou Bill Cosby, referências entretanto maculadas pelo escândalo. Acredite, errado é não assistir ao programa.
 

Como a 'fúria' impulsiona a revolução da comediante Hannah Gadsby no stand-up

Em seu especial da Netflix, 'Nanette', a humorista australiana está furiosa com o setor em que trabalha: 'Se sua única responsabilidade é arrancar risadas das pessoas, se mande da televisão'.

By Katla McGlynn

A australiana Hannah Gadsby, diante de um café de Nova York alguns dias antes da estreia de seu especial...

Horas antes de meu encontro com a humorista Hannah Gadsby em um café de Manhattan chegou a notícia de que a jovem comediante australiana Eurydice Dixon tinha sido estuprada e assassinada quando voltava para casa sozinha a pé em Melbourne, depois de fazer uma apresentação em um bar.
Gadsby admitiu que estava abalada. "Eu não conhecia Eurydice, mas 12 anos atrás estava me lançando no mundo, como ela estava", escreveu no Twitter mais tarde. "Envio minhas condolências mais profundas à família dela."
Gadsby está acostumada a falar de temas dificeis e dolorosos. Seu especial mais recente de stand-up, Nanette, que estreou no Netflix no início de junho, trata de temas como o movimento #MeToo e a homofobia que ela enfrenta, como lésbica. Ao longo do dinâmico show de uma hora de duração ela se alterna entre piadas sobre a bandeira do orgulho gay e críticas declaradas a abusadores sexuais como Bill Cosby, Harvey Weinstein e até mesmo Pablo Picasso.
É engraçado, sem dúvida alguma, com alguns trechos irônicos que você pode se descobrir repetindo dias mais tarde. Mas há uma virada que obriga a plateia a ter uma nova percepção do que uma comediante é capaz de fazer sobre o palco.
A tensão oculta vem à tona na metade do especial, quando Gadsby revela que um cenário da vida real que ela havia apresentado anteriormente não teve o final feliz que ela relatou. Em vez de contar como ela supostamente ironizou a ignorância de um sujeito que, confundindo a humorista com um homem, quis bater nela por ter falado com a namorada dele, Gadsby admite que o homem na realidade a agrediu fisicamente.
Revelando a realidade de seus próprios materiais autoirônicos sobre sexualidade, gênero e violência, ela desconstrói seu próprio stand-up e ao mesmo tempo cobra ações concretas de seus pares humoristas. Em vários momentos, deixa a plateia calada, em suspense.
Gadsby está inegavelmente irada em Nanette, mas seu tom condiz com os tempos atuais.
"Eu não teria podido fazer esse trabalho sem meus dez anos de experiência anterior com comédia. Portanto, o show é o ponto culminante de minhas habilidades, meu talento e experiência – e minha fúria", disse Gadsby. "E não ficou mais fácil fazer com o passar do tempo. Como é reviver traumas? Não recomendo isso a ninguém."
Sentada num banco do lado de fora do La Colombo, no SoHo, vestida de azul marinho casual dos pés à cabeça, com óculos de sol azuis com fones pendurados no pescoço, Gadsby tomava um café gelado... Na noite anterior ela participou do Late Night With Seth Meyers. Ela acha que o show foi bom, mas não tem certeza.
"Não gosto muito de me assistir", ela admitiu. "Mas estive lá."
Nascida na Tasmânia, a humorista fez sucesso com seus shows premiados de stand-up, participações em festivais na Austrália e Europa e na série de TV australiana "Please Like Me". Agora Gadsby está começando a chegar a um público americano maior com seu especial no Netflix. Ela escolheu a cena inicial, em que ela prepara uma xícara de chá em casa, com seus dois cachorros, para fazer um contraste com sua imagem de comediante já muito conhecida.
Mas Nanette – pelo qual o New York Times descreveu Gadsby como "uma nova e importante voz no humor" – é mais do que apenas humor stand-up.
"Antes o programa inteiro era isso, não havia piadas", disse Gadsby sobre a última metade de Nanette, admitindo que encarar a apresentação inteira como uma "crítica severa nada divertida" se mostrou inviável. "Nas primeiras apresentações, eu simplesmente estava furiosa sobre o palco, deixando a plateia completamente em estado de choque. Depois disso, fui construindo as piadas em torno disso, para fazer os espectadores entenderem por que eu estava furiosa e se sentirem em segurança."
Nanette representa uma mudança grande para Gadsby, depois de uma década fazendo humor stand-up em que ela ironizava a si mesma para arrancar gargalhadas da plateia. As piadas sobre seu corpo e sua saída do armário não chegavam a captar toda sua vivência – a de ter crescido na Tasmânia, onde a própria homossexualidade era ilegal até 1997 e onde ela própria tinha vergonha de quem era e fazia críticas aos gays.
Um ano antes de montar Nanette, ela começou a refletir sobre como estava usando a plataforma pública que possui, como humorista. No ano passado, em meio à discussão sobre o casamento homossexual na Austrália, ela viu cristãos normalmente bem-intencionados se descreverem como vítimas depois de terem sido tachados de homófobos por terem se oposto à legalização do casamento gay. Gadsby começou a perceber que seu stand-up poderia virar uma plataforma poderosa para discussões sobre intolerância, sobre vítimas e acusadores, em diversos cenários.
"Percebi uma coisa: eu tinha deixado de ser vítima, porque já tinha bastante influência", ela contou. "Mas achei que eu estava sendo irresponsável, porque não estava usando minha influência corretamente – estava contrariando meus próprios interesses. Eu estava lutando para conciliar a dinâmica de poder: tinha a liberdade de expressão que é amplificada no palco do humor, tinha um público grande na Austrália, e pensei: 'o que é que estou dizendo?""
Em Nanette, Gadsby chama a atenção de outros humoristas por terem convertido Monica Lewinsky em alvo fácil de piadas nos anos 1990, mais que Bill Clinton, e sugere que a situação talvez estivesse diferente hoje se eles tivessem voltado sua atenção mais ao então presidente.
"Se os humoristas tivessem feito seu trabalho corretamente e zombado de um homem que abusou seu poder, quem sabe tivéssemos na Casa Branca hoje uma mulher de meia-idade com a experiência necessária para exercer o cargo, em vez de termos um homem que admitiu abertamente ter agredido sexualmente mulheres jovens e vulneráveis, simplesmente porque podia", ela fala no especial.
"Não podemos desfazer o que já foi feito, mas, basicamente, lanço um chamado à ação aos humoristas de hoje, para que sejam construtivos", Gadsby me disse. "Há humoristas mais preocupados com sua liberdade de expressão do que com o que diabos estão falando ao mundo."
E há também humoristas que estão fazendo tudo certo. Gadsby elogiou o especial da HBO de Tig Notaro, Bottom of Form
"Boyish Girl Interrupted", que também inclui um momento inesperado e chocante no meio, quando Notaro revela que passou por mastectomia dupla e faz o restante de seu show de topless.
Gadsby elogiou Sarah Silverman, admitindo que teve dificuldade em aceitar "alguns de seus primeiros materiais porque sou meio pudica".
"Sarah está fazendo algo incrivelmente construtivo no momento, tenho que tirar o chapéu para ela. Também curto Maria Bamford, e Margaret Cho eu sempre gostei muito porque ela denuncia mentiras", disse Gadsby. "Um dos shows que influenciou Nanette foi o da artista performática Adrienne Truscott. Ela fez um show em Edimburgo chamado 'Asking for It' em que tirou as calças sobre o palco e adaptou piadinhas sobre estupro."
Cameron Esposito segue uma linha semelhante em seu especial recente, intitulado abertamente "Rape Jokes" (Piadas sobre Estupro), que ela lançou gratuitamente em seu site na internet.
Em meio à ascensão da chamada "cultura da correção política", os humoristas discutem se têm alguma responsabilidade perante suas plateias, além de serem engraçados. Para Gadsby, nossa realidade atual significa que sim.
"Se sua única responsabilidade é arrancar risadas das pessoas, se mande da televisão", ela disse. "Se você vai difundir suas ideias tóxicas apenas porque isso é seu direito, saiba que muita gente é engraçada. Se mande. Esses mesmos homens choram quando as pessoas dizem que eles são uns merdas. E então escrevem todo um novo especial no Netflix sobre alguma crítica que receberam de pessoas no Twitter. Na realidade, são vocês, caras, que precisam criar coragem. Eu já tive gente na primeira fileira soltando ameaças de estupro. Esses caras não sabem o que é resiliência de verdade."
Que fique registrado que o ritual que Gadsby segue após seus shows para se acalmar envolve ouvir música ambiente, especificamente Red Gold Yesterday , de Luchs, ou gravações de cantos de pássaros.
Dito isto, a humorista acredita (e explica em Nanette) que, assim como o riso, a raiva possui o poder de unir as pessoas. Ela enxerga Nanette como a maneira mais construtiva de conter a fúria que sente e sugere a outros que façam a mesma coisa. Várias falas da segunda metade do show dela, especialmente quando são gritadas, soam como slogans que poderíamos ver estampados em camisetas feministas.
"Sua resiliência é sua humanidade."
"Não há nada mais forte que uma mulher ferida que se reconstruiu."
Sentada diante do café, Gadsby disse, brincando, que desde que está vivendo temporariamente em Nova York, criou um novo slogan: "A certeza é uma perversão".
Em vários momentos do especial, Gadsby fala que está abandonando o humor. Mas isso não é inteiramente verdade, se bem que ela diga que poderia aposentar-se sem arrependimentos depois de Nanette. Ela está escrevendo um livro e acha que esse será seu próximo grande trabalho. Mas vai continuar a tentar aperfeiçoar seu show, independentemente de como ele venha a ser classificado.
"Não vou desistir do palco, mas não vou seguir as regras do jogo", falou Gadsby, tomando os últimos goles de seu café. "Não vou me preocupar em saber em que estado deixei a plateia. Seja o que for que eu venha a fazer, sempre vou contar histórias com muito humor no meio, mas se a única razão de eu abrir a boca for arrancar gargalhadas das pessoas, isso não será o bastante para mim. Já há gente demais elevando a voz no mundo. Meu irmão me ofereceu trabalho na quitanda dele. Vou fazer isso. Vou sair deste mundinho assim que eu começar a me preocupar mais com minha carreira do quem com a mensagem que estou tentando passar. Vim do nada e vou voltar para lá."
03/07/2018 19:20 -03 | Atualizado 04/07/2018 12:29 -03