sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Michael Cunningham

Escrevo para leitores que estão interessados em ser expostos a uma enorme variedade de experiências, independentemente da orientação sexual.






Ao Cair da Noite (Gradiva, trad. Ana Falcão Bastos) é o mais recente romance de Michael Cunningham (1952), autor de As Horas (1998), com o qual garantiu os prémios Pulitzer e PEN/Faulkner.




MICHAEL CUNNINGHAM em entrevista a SARA FIGUEIREDO COSTA para a revista LER (2011)

Em Ao Cair da Noite acompanhamos um casal incapaz de comunicar para lá da banalidade do quotidiano. Essa incapacidade resulta do facto de haver coisas que não temos como partilhar, uma espécie de solidão inevitável?
Sim, independentemente das relações que possamos estabelecer, há uma parte em que estamos profundamente sozinhos. E isso é tão maravilhoso como assustador.
Essa é uma das motivações para a escrita?
Em grande parte. É muito difícil, ou mesmo impossível, falar dessa zona que não temos como partilhar. Somos criaturas misteriosas e há uma parte, aquilo a que as pessoas religiosas chamariam «alma» e que eu não sei ao certo como chamar, que não é explicável perante os outros. Mas pode escrever-se a partir daí, e é isso que faço.
Os dois personagens principais de Ao Cair da Noite, Peter e Rebecca, vivem uma parte considerável da sua vida em função das aparências, entre festas e roupas caras. É o retrato de uma certa sociedade nova-iorquina?
De uma parte da sociedade, sim. Estas são pessoas tremendamente privilegiadas, com belas casas, roupas de marca, empregos bem pagos. Mas depois há o outro lado disto, que espero retratar no próximo livro...
[...]

A ideia de procura, de demanda, acaba por ser um denominador comum a todos os seus livros. É um dos motores do seu trabalho, ou o processo de contar uma história sobrepõe-se a isso?
Eu quero contar uma história. Mas estou profundamente interessado no desejo difuso que o ser humano sente perante aquilo que o mundo não pode dar-lhe. Numa conversa recente com leitores, perguntaram-me porque é que os meus personagens parecem querer sempre mais do que aquilo que podem ter. Pedi às pessoas na assistência que levantassem a mão caso não desejassem mais do que aquilo que tinham, e claro que não houve mãos no ar. Faz parte da nossa condição querer mais, e não necessariamente mais casas ou roupas...
Como acontece com Peter, neste romance.
Sim, e por isso é que decidi situar este romance num ambiente cheio de pessoas privilegiadas materialmente, para se perceber que tal não é suficiente. É claro que as pessoas que vivem na rua têm como principal desejo e preocupação a próxima refeição. E se isso estiver assegurado, sempre? Nunca é suficiente.
É por isso que Peter, tal como Laura, de As Horas, por exemplo, parecem tão perdidos, querendo algo que não têm a certeza de querer realmente?
Sim, os meus personagens estão sempre à procura de uma sensação de satisfação, na sua vida e no próprio mundo, que insiste em iludi-los. Peter acaba por descobrir que aquilo que realmente quer está mesmo à sua frente, e que tem de olhar para aquilo que tem, a sua mulher e a sua vida. Porque se de repente deixarmos tudo para trás, assim como quem quer fugir com o circo, acabamos no mesmo sítio, a pensar no motivo pelo qual continuamos insatisfeitos e a querer algo que nos preencha.
Não há outra saída?
Acredito que é a única saída: mergulhar no que temos. Esta é a minha vida e vou vivê-la o melhor que posso.
Então, qual é o objectivo de criar personagens que estão constantemente à procura de uma saída, de outra vida, de um sentido que não é o seu?
Bem, talvez porque os meus personagens ainda não perceberam que a única saída é viverem a sua vida. [Risos.]

os meus personagens ainda não perceberam
que a única saída é viverem a sua vida



Os seus livros reflectem frequentemente sobre a fronteira entre aquilo a que chamamos «vida» e aquilo que entendemos por «arte», e fazem-no misturando os dois lados, como acontece em As Horas, Os Dias Exemplares e neste Ao Cair da Noite. Identifica-se com o atravessar constante de uma fronteira que não deixa de ser imaginária?
Claramente. Talvez porque, de certo modo, é isso que faço quando escrevo, Escreve-se sempre sobre aquilo que se conhece, e aquilo que conheço melhor é o espaço entre o meu desejo de escrever um grande romance e os limites daquilo que realmente posso fazer. Uma das dificuldades de escrever um romance é esta: andamos ali às voltas com uma ideia, e parece-nos que vai ser o melhor livro alguma vez escrito, e vai abarcar tudo aquilo que conhecemos ou conseguimos imaginar. Mas depois o livro está pronto e, por muito bom que seja, nunca é o livro que imaginámos.
Nunca?
Nunca. Uma vez mais, é algo que faz parte da condição humana, a nossa imaginação supera aquilo que o mundo pode dar-nos, seja o amor ou um processo criativo. Queremos mais. Se um extraterrestre alcançasse a Terra e quisesse saber qual a coisa que melhor define os humanos, diria que é isso: queremos sempre mais, seja do que for.
[...]
Para além de Thomas Mann, que outros escritores são referências fundamentais para o seu trabalho?
Virginia Woolf, claro. Sobretudo pelo trabalho da linguagem, porque até ter lido Virginia Woolf não tinha a menor ideia daquilo que se podia fazer com uma frase. Estudei numa escola pública, em Los Angeles, e os meus professores não foram extraordinários. Digamos que, até uma certa altura, apenas estava familiarizado com as frases declarativas mais básicas. E foi nessa altura que alguém me ofereceu Mrs. Dalloway, e percebi que era possível fazer coisas extraordinárias com a linguagem. Era um miúdo e a ideia com que fiquei foi que o que Virginia Woolf fazia com a linguagem era parecido com o que Jimmy Hendrix fazia com a guitarra, e isso marcou-me muito. Flaubert é outra referência importante. E depois há outros escritores que não são tão «mortos e veneráveis», como Dennis Johnson, a que regresso com frequência.
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Sente-se confortável com a ideia de ter os seus livros na secção de «Literatura LGBT», como acontece em Portugal?
Sinto-me um pouco dividido em relação a isso. Por um lado, acho importante que se defina um corpus ficcional sobre gays e lésbicas, pelo menos porque neste preciso momento podem estar jovens, numa livraria, à procura de livros que falem deles, que lhes permitam um contacto com realidades que podem ser as suas. E para isso pode ser importante que haja uma secção bem delimitada, caso contrário não vão encontrá-los. Por outro lado acho que sou, antes de tudo, um escritor, e só depois um escritor homossexual. Escrevo para leitores que estão interessados em ser expostos a uma enorme variedade de experiências, independentemente da orientação sexual. Leio livros sobre pessoas homossexuais e pessoas heterossexuais, sobre mulheres, sobre negros, porque através da leitura quero poder viver num mundo mais alargado. E espero isso mesmo dos meus leitores. Os livros deviam estar todos na mesma secção, mas a separação não é exactamente prejudicial, porque os livros são livros, e porque não deixo de pensar na imagem de um rapazinho um bocado perdido e envergonhado, que entra numa livraria sem saber o que procurar...
[...]
Extracto da entrevista a Michael Cunningham
para a revista LER nº 101 - 2ª série, Abril de 2011

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