António Franco Alexandre | syrinx, ficção pastoral
I
Vou pôr anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro da água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.
II
Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.
IV
Não são nunca de cetim, amarelo cetim,
cetim de seda talvez (é possível) os lençóis
quando a casa é de lençol, televisão quadrada
a olhar para a cama, no canal enigma,
e às vezes há uma piscina geriátrica no tecto
cadeiras e mesas voltadas ao contrário
o vento em baixo a raspar o tejo
leite mal passado no frigorífico (porque
A Mulher está ausente) e retratos dos filhos
a patinar no jardim. Tem quase a tua idade.
Imagino, e já não gosto dos bonitos.
Melhor é rápido, à esquina
só com o lençol de cimento,
ou o brusco pesadelo
de mãos e pernas torcidas, que não dura, dá vantagem,
mas deixa o corpo dorido.
Patrick Pottier, Pulsion " Envie irrésistible " Terre cuite chamottée patinée Pièce unique - H33 x L14 x P15 cm |
VI
As palavras pouco importam: um murro
no estômago, uma vez, alguns pontapés,
chumbo na escola a português, pra mais depressa ver
como se trama a vida, silenciosamente.
Quando se canta é diferente, a voz
pode quebrar-se contra o corpo, e quebra
alguma coisa por detrás da boca
como uma mão mirabolante e escura
que se viesse, dentro, na explosão
de pedaços de carne incandescente.
Acontece também cantar calado, ou com a boca
fundida nos lençóis, pra me esquecer de quem
agora me cavalga por um jantar no poço,
passeio de automóvel, duche morno,
e depois as moedas que se deixam
caídas no passeio como estrelas.
Patrick Pottier, Masque de l'ange Terre cuite patinée - pièce unique H38 x L30 x P8 cm |
Patrick Pottier, Jockstrap
Terre cuite patinée - pièce unique H20 x L30 x P25 cm |
x
Deito fora cavalo, pó, e fumo,
e juro não comer, nem ser, ou ter
outro suor de gente no meu ventre
por cem dias ao menos; ou seja, enquanto
a voz me ouvir, no fax das alturas.
Bem sabeis que não sei amar ninguém
e trago a boca cheia de mãos turvas
e me esqueci do nome de princesa;
que nada do que sou me sabe a certo
nem mesmo a errado, injusto ou justo;
e nunca saberei teologia,
astrologia, física celeste,
o bastante que explique o nascimento
a profusão das árvores e gente
que diz bom-dia quando a gente passa
e, indiferente, segue em frente.
Patrick Pottier, Avec le temps...
"Plus le malheur est grand, plus il est grand de vivre" Terre cuite patinée, disque et socle métal rouillé Pièce unique - H170 x L70 x P20 cm |
XI
Está tudo errado, tudo, ou quase: na verdade, apenas
um salto quântico de computador,
um fio trocado na electrónica mente
que manda nos horóscopos, e já se perde
a metamorfose de outro sapo;
não encomendei! não pedi! não quero
no lugar reservado à favorita imagem
este caso-problema que se droga e vende
e tem de todo errada a identidade,
a idade, o sexo, a cara indiferente.
Quando abre a boca avisto com terror
a língua, inteira, rósea, e gengivas com dentes
capazes de ladrar, de me morder,
de em público me dizer inexistente,
de me abrir pelo meio e me tirar
tudo o que tenho, como um ladrão demente.
XIX
Já tudo te ensinei, das equações elípticas
ao pastiche de pã; só não ouso
abrir-te a arca do puro e do impuro,
do bem e mal que nos separa e ata.
Por um lençol ou lenço vou sentir
ciúme e escuridão e medo abjecto
de te perder, de te ganhar, de ter
nas minhas mãos o fecho do teu pranto.
Já só posso aprender: a, como tu, cantar
sem voz nem duro rosto de palavras,
a abrir a porta que nunca ninguém viu,
a descobrir, mas sós, a fenda azul do céu.
Hás-de esquecer-me, como me esqueci
do amor mais claro que jamais vivi,
para que a rima cesse e ao longe se ouçam
passar pela floresta os instrumentos.
António Franco Alexandre, Quatro Caprichos,
«syrinx, ficção pastoral»,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1999
«syrinx, ficção pastoral»,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1999
António Franco Alexandre, natural de Viseu, estudou Matemáticas e Filosofía, e é profesor desta última materia na Facultade de Letras de Lisboa. É un poeta innovador, cun estilo ben diferenciado do dos seus coetáneos e unha temática vinculada á vital cidade de Lisboa.
Son os seus libros Quatro Caprichos (1999) e Duende (2002) os máis premiados, publicados con fidelidade, como toda a súa obra, na editora Assírio & Alvim.
Como mostra do seu quefacer poético vou centrarme nun texto do libro Uma Fábula (2001):
Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.
En ausencia do outro, fican as palabras. O amor está no pensamento, no poema -capaz, por outra parte, de ser a súa xusta expresión, segundo o poeta- que nos inventa. Poema críptico, como moitos de A. Franco, no que a complexidade do tema se manifesta nun contraste latente que paira polos versos: capacidade ou impotencia na expresividade do amor, coma se só nun tempo futuro fose posíbel amarnos, na palabra, no poema, do que formamos parte ao sermos "mera fábula".
Antón Fortes Torres, “Poesía contemporánea europea gay”,
http://www.terraetempo.com/artigo.php?artigo=99&seccion=5, 2010-02-27.
http://www.terraetempo.com/artigo.php?artigo=99&seccion=5, 2010-02-27.
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