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O realizador Cristophe Honoré cruzou o cinema de autor com a estética "porno" e fez nascer um filme controverso. O protagonista de Homme au Bain é um ícone da pornografia gay. O filme é um ensaio sobre o corpo e o desenho, retrato da solidão e das tragédias amorosas.
Não basta o
corpo, lugar do desejo, para sustentar uma relação. É isto que diz "Homme
au Bain", que passa amanhã, às 21h45, na sala 1 do cinema São Jorge
(repete-se dia 14, à mesma hora). Estreado em Agosto do ano passado, no
Festival de Locarno, é a obra mais recente do realizador francês Christophe
Honoré, o mesmo de "Minha Mãe" (2004), "Em Paris" (2006) ou
"As Canções de Amor" (2008).
Há uma cena,
no início, capaz de resumir tudo. Emmanuel, o protagonista, entra em casa do
vizinho (o escritor gay Dennis Cooper) e põe-se nu. "Pareces ter sido
esculpido a partir de uma coisa muito simples, ou demasiado tosca", diz o
vizinho. "Mas será que eu te compraria, como compro outras obras de arte?
Não. És uma má peça de arte, és kitsch." Emmanuel parece não compreender.
O outro prossegue: "As grandes obras de arte têm densidade e são
comoventes. Reservam-nos sempre mais qualquer coisa, mesmo que as olhemos todos
os dias. Mas quando olho para ti, está tudo visto."
Ensaio sobre
o corpo e o desejo, retrato da solidão e das tragédias amorosas, o filme tem
como protagonista François Sagat, de 32 anos, ícone da pornografia gay atual.
Longe do plateau da indústria do sexo, o actor deixa de ser apenas um objeto e
ganha emoções, mas o fundamento "porno" está lá por inteiro e
contamina o filme, a ponto de as cenas de sexo explícito serem a própria
narrativa.
Emmanuel é um
desvalido e esconde debaixo da impressionante musculatura uma fragilidade maior
do que os subúrbios onde vive. Sabe usar o corpo para ganhar dinheiro, mas
descobre que o corpo, numa relação emocional, é um bem perecível. Quando
abandonado por Omar (Omar Ben Sellem), o namorado, resiste com sofrimento.
Aquele corpo kitsch, efemeramente desejado pelo vizinho de cima e outros
vizinhos do bairro, esgota-se em si mesmo. É insuficiente para alimentar uma
vida a dois e conduz à rutura. Não por acaso, a banda sonora inclui canções de
separação e perda: De T''avoir Aimée (1966), de Aznavour; ou Come Back Home
(2010), dos Two Door Cinema Club.
"Homme
au Bain" lembra clássicos da pornografia para o grande público, como
"O Último Tango em Paris" (1972), de Bertolucci, "O Império dos
Sentidos" (1976), de Oshima. Mas será que faz sentido tanto realismo na
era da pornografia em direto na Internet? Aquando da estreia em Locarno, a
crítica da revista americana Variety foi inclemente: "A forma como Honoré
utiliza Sagat é problemática: filma a estrela como se fosse um objeto, mas a
nudez abundante - que inclui ereções e sexo oral explícito - é superficial e
um pouco absurda." A revista francesa Les Inrockuptibles mostrou-se
rendida: "O filme é de uma argúcia inaudita no que toca à intimidade
sexual, esse lugar em que o menor gesto contém a maior plenitude
emocional."
Em entrevista
ao Ípsilon, no ano passado, Sagat desvalorizou as cenas de sexo: "A minha
personagem é muito sensível e vulnerável, o que talvez não coincida com a
imagem extremamente viril que transmito nos filmes ''porno''", disse.
"Apesar de ser uma ficção, o filme mostra uma realidade e uma sensibilidade
que eu nunca tinha explorado. Muitos consumidores de pornografia só querem
saber da parte sexual e desconhecem tudo o resto."
Na mesma
linha, Honoré, citado pelo site gay Yagg.com, justificava assim a escolha de
Sagat: "Não me interessam as competências de ator ''porno'' que ele tem,
mas a ideia de corpo ''porno'' que ele emana. Sagat é um produto da sua época,
redefine a noção de virilidade, tem um corpo como não existe outro no cinema
francês atual."
O filme
resulta de uma encomenda do Teatro de Gennevilliers, no subúrbio parisiense com
o mesmo nome. O quadro "Homme au Bain" (1884), do pintor
impressionista Gustave Caillebotte, falecido em Gennevilliers em 1894, forneceu
o título. É nessa paisagem urbana que a personagem principal é filmada - no formato
tradicional de 35 milímetros. Já o namorado em fuga aparece em Nova Iorque, em
fantasias sexuais captadas em formato DV, ao estilo "porno" amador.
Estas cenas, que tinham sido gravadas por Honoré durante uma viagem a Nova
Iorque em 2009 para promover "Não Minha Filha, Tu Não Vais Dançar"
(2009), protagonizado por Chiara Mastroiani, só agora foram utilizadas. É isso
que explica a presença da atriz, em nome próprio e de forma secundária, neste
novo filme.
"Nunca me considerei masculino"
Entrevista a François Sagat
Transgressor, tímido e irónico, François Sagat, intérprete de "Homme au Bain", de Christophe Honoré, que esteve em competição no Festival de Locarno, em conversa com o Ípsilon por e-mail
Tornou-se ator pornográfico para se testar a si mesmo e aceitou protagonizar o novo filme de Cristophe Honoré, "Homme au Bain", exatamente pela mesma razão. Ainda assim, aos 31 anos, o astro "porno" francês vai formoso e não seguro: "Transmitir emoções e articular é muito mais difícil do que ter sexo frente às câmaras." Quanto à sua imagem viril, que foi a razão do convite de Honoré, é apenas uma construção do nosso olhar e nunca correspondeu à sua vontade. Porque o que lhe dá prazer é pôr em causa a ideia de masculino.
Considera-se um ator?
Sou um "performer" erótico e pornográfico, nunca senti que fosse um ator. Nunca frequentei sequer aulas de representação. Falar para uma câmara, articular e transmitir emoções é muito mais difícil e desafiante do que mostrar o corpo e ter sexo frente às câmaras. Tal como outros "performers" porno, sou muito tímido e reservado. Aceito de boa vontade entrar em projetos diferente que exigem representação. Por que não? Mas só aceito porque as pessoas são criativas e querem mesmo trabalhar comigo. No fundo, é tudo uma questão de experimentar coisas novas. Foi assim que entrei na pornografia. Se calhar, nunca quis sequer tornar-me "performer" porno. Mas, claro está, como sou considerado acima de tudo um modelo "porno", nunca me vão levar a sério como ator convencional, é assim que as coisas funcionam, é fatal. Não me importo. É muito francês, talvez muito europeu, rotular as pessoas e fazer juízos de valor sobre elas. Digam o que disseram, eu faço o que eu quiser.
A participação em "Homme au Bain" pode mudar a forma como olham para si?
Talvez algumas pessoas fiquem ainda mais desiludidas. A minha personagem, Emmanuel, é muito sensível e vulnerável, o que talvez não coincida com a imagem extremamente viril que transmito nos filmes porno. Este filme, apesar de ser uma ficção, mostra uma realidade e uma sensibilidade que eu nunca tinha explorado. As imperfeições dão maior naturalidade ao filme.
Muitos consumidores de pornografia só querem saber da parte sexual e desconhecem tudo o resto. Nem sabem do meu lado estranho e sonhador, mas tudo bem. Fazer pornografia é muito diferente de fazer cinema convencional, mas há quem faça as duas coisas. Neste sentido, o meu modelo é Traci Lords [actriz americana, que começou na indústria "porno"]. É pena que o público não saiba aceitar.
Honoré diz que você mudou a forma como a masculinidade é hoje entendida pelas pessoas. Concorda?
Nunca me considerei masculino e sempre joguei com isso. Se calhar, bem vistas as coisas, sou mesmo um bom ator, porque quem me vê nos filmes e lê as minhas entrevistas acha mesmo que sou masculino [ah, ah, ah]. Sempre achei que tenho uma personalidade moldável, não sou suficientemente simples para me conter na ideia de gajo masculino. Digo "simples" no melhor sentido, no sentido da mais pura atração pela masculinidade. Não sou assim. Nasci rapaz, mas quando era criança sentia-me uma rapariga em muitos aspetos. Tive várias fases durante a adolescência e no fim ganhei uma aparência masculina e robusta, mas a minha atitude e sensibilidade são hoje as mesmas de quando eu lidava com a minha feminilidade. Não tenho problemas com isso. Considero-me uma pessoa muito lógica e, definitivamente, não tão misteriosa quanto pensam. Esta postura não é uma tentativa de parecer excêntrico, nem sequer acho que o seja. A palavra excêntrico, em 2010, é odiosa. Como diz um amigo meu, posso considerar-me um "transexual de homem para homem" [alusão à forma como se identificam as pessoas que mudam de sexos: "homem para mulher" e "mulher para homem"]. Posso, no entanto, assegurar que o meu corpo é perfeitamente natural. Enquanto me der prazer, vou continuar a reinventar a perceção do meu género. Sinto que os heterossexuais, homens e mulheres, são por vezes mais tolerantes do que os próprios homossexuais [relativamente a este tema].
Como é que lida com o facto de ser uma fantasia sexual para muitos homens em todo o mundo? É um assunto sobre o qual costuma pensar?
Serei uma fantasia sexual de determinado ponto de vista, para um grupo restrito de pessoas, não para toda a gente. Ou seja, sou uma fantasia muito relativa. Não sou bom a avaliar o meu poder sexual. Secretamente, talvez me questione sobre este assunto, mas não consigo lidar com ele. Ninguém, de forma modesta e realista, sabe lidar com isto. Não é assim que me vejo [como uma fantasia]. Comecei aos 26 anos, ser uma personagem ainda é uma novidade e uma coisa irreal. Quem sonha comigo não sabe nada da minha realidade. Além de que há muitos homens e mulheres que me acham feio, ridículo ou risível. Tudo bem. Comecei a fazer pornografia para ter novas experiências, não para dar prazer a quem quer que fosse.
Outro dos filmes em que entrou foi "L.A. Zombie", de Bruce La Bruce, também exibido em Locarno. O filme foi considerado obsceno pelas autoridades australianas e proibido de passar num festival. Qual é a sua opinião?
Não me preocupa, não fiquei afetado. É uma decisão deles que não vai conseguir impedir as pessoas de verem o filme. Sempre ouvi dizer que "má publicidade é boa publicidade", portanto, talvez esta proibição até ajude a tornar o filme mais conhecido. "L.A. Zombie" talvez seja repugnante para a maior parte das pessoas, mas não acho que se deva fazer disto um caso. É um filme "softcore". Nem sequer há violência. A única verdadeira razão para a proibição foi o conteúdo pornográfico, ou pior ainda, o facto de mostrar sexo homossexual. Apenas isto: homofobia e conservadorismo. O sangue e o terror do filme não pesaram nada na proibição, não sejamos hipócritas.
Pensa deixar a pornografia e dedicar-se ao cinema alternativo?
Não tenciono deixar nada. Nem sei o que significa "alternativo". Quero apenas fazer coisas novas e interessantes, sejam ou não de cariz sexual. Uma pessoa pode sempre fazer uma pausa e desaparecer por uns tempos e depois voltar, ou, entretanto, mudar de ideias e não voltar. Nunca disse que ia desistir da pornografia, disse que me tinha cansado. Prefiro não fazer declarações definitivas. O tempo dirá o que acontece.
Quando é que fez a tatuagem na cabeça? Que pensa de quem o imita?
Fiz a tatuagem há uns anos porque estava a ficar careca. Não é mau ver alguém com uma tatuagem igual, até gosto, sinto-me fonte de inspiração de um erro enorme. A minha fica-me bem, adapta-se bem à minha cabeça, o mesmo não acontece com a maior parte dos homens que me imitam. Tenha pena deles, deram cabo da vida. Não entendo porque é que alguém se quer parecer comigo. Um Sagat basta.
Onde vive?
Em Paris. Estou aqui há 13 anos e não penso mudar.
Quantas vezes por semana vai ao ginásio?
Cinco vezes por semana, todas as semanas.
Em quantos porno já entrou?
Não costumo contar. Uns 40, talvez. Um pouco mais ou menos não tem importância nenhuma.
Bruno Horta, Público, 12/08/2010
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