O último livro, Horto do incêndio (1997), torna-se, assim, um livro
testamento, em que o poeta se dispõe a construir o diário de sua experiência
quotidiana de morte anunciada. O primeiro poema, “Recado”, já avisa, após a
construção de uma gloriosa imagem redentora e consoladora, “o mar por onde
fugirá/ o etéreo visitante desta noite”, que não sejam esquecidos “os sessenta
comprimidos letais/ ao pequeno almoço”. Ironia, sem sarcasmo, confirmada, mais
adiante, no patético poema “SIDA”, em que, ao invés de um previsível lamento
que decorreria em torno do tema, são encontrados os seguintes versos:
aqueles que tem nome e
nos telefonam
um dia emagrecem – partem
deixam–nos dobrados ao abandono
no interior de uma inútil dor muda
voraz.
um dia emagrecem – partem
deixam–nos dobrados ao abandono
no interior de uma inútil dor muda
voraz.
(...)
nem a vida, nem o que
dela resta nos consola
a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo do sono ouvimos
o rumor do corpo a encher–se de mágoa
assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longas imagens difusas
daqueles que amamos e não voltam
a telefonar
a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo do sono ouvimos
o rumor do corpo a encher–se de mágoa
assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longas imagens difusas
daqueles que amamos e não voltam
a telefonar
Al Berto, Horto do incêndio, 1997
A morte é a experiência do quotidiano, mas
relegada ao necessário plano do esquecimento, para que os mortos se reduzam ao
simples desaparecimento, como o daqueles que não voltam a telefonar.
Mário César Lugarinho, Uma nau que me carrega: rotas da
literariedade em língua portuguesa.
Manaus, AM: UEA Edições, 2012, pp. 157-158
Manaus, AM: UEA Edições, 2012, pp. 157-158
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