quarta-feira, 18 de maio de 2011

Pai homossexual, cidadão português de segunda


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Julho de 1994 - João Mouta, pai homossexual, consegue em Tribunal de Família que lhe seja confiado o poder paternal da filha menor. A mãe recorre da sentença e em Janeiro de 1996, o Tribunal da Relação retira o exercício do poder paternal a João Mouta. Em Dezembro de 1999, após queixa feita ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o Estado Português é condenado ao pagamento de uma indemnização a João Mouta.  (Fonte: O movimento LGBT em Portugal: datas e factos)






TITO LÍVIO ENTREVISTA JOÃO MOUTA (2000)

Quando se casou, sabia já da sua homossexualidade?
Estive casado sete anos. Sabia já então que era gay mas as pressões sociais determinaram, em grande parte, o meu casamento apesar de gostar da mãe da minha filha. Enquanto durou esta relação, não mais pensei no problema, até porque ser pai envolve uma aturada participação na vida da criança como adulto em formação.
Para a vossa separação contribuiu de alguma forma o facto de ser gay?
Sim, foi determinante. Antes de casar, fiz saber à minha futura mulher que tinha tido experiências homossexuais; ela mostrou não se importar porque faziam parte do meu passado. Mas foi acontecendo, entre nós, um afastamento gradual, de tal modo que, quando nos distanciámos emocionalmente, a minha condição gay tornou-se fundamental. Conheci entretanto o Luís, meu actual companheiro, e apaixonei-me por ele. O meu casamento já estava a desmoronar-se e assim saí de minha casa para a dele.
A paternidade foi para si gratificante?
Muito, sobretudo na fase inicial, visto que se trata do apoio a um ser frágil e dependente que responde, de uma forma cabal e bonita, aos nossos afectos.


O vosso divórcio foi de mútuo acordo ou litigioso?
Depois da separação, em Abril de 1990, combinámos como se iriam processar as visitas à minha filha. Como tudo estava a andar bem, arranjei um advogado para tratar de um divórcio por mútuo acordo. Um mês e meio mais tarde, a atitude da minha mulher começou a modificar-se de uma forma drástica: levantou dificuldades nos contactos com a criança pelo que pus um processo de regulação da paternidade. Em 1993, foi finalmente decretado o divórcio litigioso, sendo o poder paternal regulado antes, em Fevereiro de 1991.
A sua condição de homossexual foi bem aceite por parte do Tribunal?
Logo no início do processo de exercício de regulação do poder paternal, dei conhecimento da minha homossexualidade, facto que não provocou nenhuma situação de discriminação por parte do Tribunal de Loures. Quanto à minha filha, a mãe cumpriu o estatuído pelo Tribunal durante ano e meio: visitas cada 15 dias, férias e Natal. Em finais de 1991/92 a Maura começou a queixar-se de que não via a mãe já que tinha sido entregue aos avós matermos com quem aliás eu me dava pessimamente e que, entretanto, já tinham tentado agredir-me, um dia, no meu emprego.
O vosso divórcio pode ter afectado, pelas circunstâncias litigiosas em que se processou, a criança...
Dividiu-a sobretudo porque, por um lado, gostava da mãe e dos avós matemos, e, por outro, estava continuamente a ser bombardeada com coisas pavorosas que lhe diziam a respeito do outro ser que também amava, do género: «O teu pai tem Sida» ou «é paneleiro». Um dia, já com três anos, fui buscá-la para passar connosco um fim de semana e, de repente, com a sinceridade das crianças, contou-me: «A minha avó diz que és paneleiro».
Parece que faltava à criança a necessária referência e acompanhamento maternos...
Quando, ainda em 1991, a Maura se começa a queixar da ausência da mãe, procurei saber se a minha ex-mulher vivia com os pais. Como entretanto tinha assumido a relação com o patrão, não tinha a filha consigo. Por tal, abri um novo processo de alteração de regulação do exercício de poder paternal.
O vosso divórcio, dados os seus motivos, deu origem a um difícil lavar de roupa suja?
Propriamente, no divórcio, não, porque eu já tinha facilitado o assunto ao dizer que tinha saído de casa para ir viver com um homem. Essa parte difícil da situação começou a existir nos processos de exercício de regulação paternal que se lhe seguiram.
Como viveu a situação imediatamente posterior ao divórcio e como se repercutiu tudo isso no relacionamento com a sua filha?
O divórcio surgiu como um alívio, o fim de uma mentira, a procura de uma necessária autenticidade. Depois, em todo este processo, tenho contado com a solidariedade do meu companheiro. Quando vivia ainda com a minha ex-mulher, tendo já conhecido o Luís, levava a Maura nos fins de semana connosco sempre que a mãe se ausentava, tendo-lhe antes dito que era um amigo meu, de tal modo que, quando se consumou a separação, a empatia que já tinha com ele continuou. O engraçado é que, enquanto eu representava a autoridade, o meu companheiro era o amigo das brincadeiras, aquele que ela usava como último recurso para tornear qualquer proibição por mim imposta. De resto, nunca colocou questões quanto ao nosso relacionamento, porque já antes, em casa, lhe tinham tentado transmitir ideias erradas a nosso respeito. Uma vez, em 1995, chegou a perguntar ao Luís, com toda a naturalidade, se ele me amava.
Como correu o processo de alteração do exercício do poder paternal?
Em Março de 1992, argumentei que se a mãe não vivia com a filha então eu estava disposto a fazê-lo e assim solicitei para mim a transferência do poder paternal. Só que entretanto a minha ex-mulher resolveu ir de férias e desapareceu durante dois anos, pelo que o processo esteve parado. Quando regressou a Lisboa, em Março de 1993, a curadora e o gabinete de psicologia do Tribunal intervieram e disseram-lhe que o argumento por ela invocado da orientação sexual do pai não vencia e que, portanto, a criança tinha todo o direito de estar comigo. Marcaram nova entrevista a que faltou, procedimento que aliás usou mais algumas vezes.
Entretanto houve uma mudança no teor das acusações...
A 18 de Agosto desse ano, a mãe reformula todas as alegações, acusando-me de dar comprimidos e álcool à minha filha e de inclusivamente ter tido relações com o meu companheiro à frente da criança. Como teve que mudar esta história por não ser crível, surge agora uma nova versão pela boca da Maura: «Há dois anos, quando tinha 4 anos, tinha-a deixado sozinha em casa do Luís que pegara à força nela, fechando-a à chave, na casa de banho, forçando-a a masturbá-lo». Encontrávamo-nos frente a uma situação difícil e difamatória perante a qual era necessário averiguar da verdade dos factos. Só que esta versão tinha dois pormenores que não batiam certo: Nunca a tinha deixado sozinha em casa e a porta da casa de banho não tinha chave!... Entretanto a mãe mostrou-se sempre indisponível para fazer o apuramento dos factos. Finalmente o Tribunal, achando que eu era o progenitor mais apto para tomar conta da criança, concede-me o poder paternal. Esta foi a decisão do Tribunal de Família, em 1994.
Mas a mãe não aceitou esta decisão...
Mal tomou conhecimento da decisão do Tribunal, andou a monte, fugida e perseguida, embora com pouca convicção, pela Polícia Judiciária.
Um tempo mais tarde, começo a receber telefonemas de uma pessoa que sabia que a minha filha estava entregue a um casal de idade e que se me propunha entregá-la a troco de dinheiro. Telefonei à Polícia e montou-se uma operação para essa suposta troca, no Jardim de Benfica; só que o intermediário veio até ao meu emprego antes combinar os pormenores da entrega confirmados depois por telefone. No momento da troca por dinheiro, foi detido e, já depois de ter ficado com a minha filha, soube que se tratava do pai do companheiro da minha mulher junto de quem, e da respectiva mulher, a criança tinha então vivido. E, até Novembro de 1995, a Maura viveu em paz connosco.
A mãe, no entanto, não desistiu de recuperar a filha...
Interpôs recurso para o Tribunal de Relação a quem pediu a anulação da sentença do Tribunal de primeira instância que me havia atribuído a regulação do exercício do poder paternal e a quem foram então transmitidos todos estes factos. Entretanto, a minha filha estava a frequentar uma consulta de pedopsiquiatria duas vezes por semana onde ia regularmente acompanhada pela minha mãe. A 3 de novembro de 1995, a minha ex-mulher dirigiu-se à escola da Maura, tendo-lhe sido dito que a criança não estava por ter ido ao médico. Munida de uma sentença do Tribunal de Família que lhe dava direito a passar os fins de semana com a filha, passou pela GNR de Sacavam, pediu que a acompanhassem a casa dos meus pais e a obrigassem a entregar-lhe a criança.
Que recurso legal foi por si accionado?
Não há, na prática dos Tribunais portugueses, a aplicação de medidas efectivas contra os pais que, sendo detentores do poder paternal, prevaricam. Se fosse nos Estados Unidos, o facto de a mãe impedir as visitas do pai era suficiente para lhe retirarem o poder paternal. Relativamente à acusação de rapto, o Código Civil é omisso quando é um dos progenitores a fugir com a criança. Existe apenas a figura jurídica da subtracção que, neste caso, os juízes, por manifesta falta de vontade, não aplicam sobretudo se a acusada é a mãe.
E qual foi a decisão do Tribunal da Relação?
Em Janeiro de 1996, tive conhecimento do «douto» acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. A sua decisão baseou-se em dois argumentos: a Magna Carta dos Direitos da Criança que diz que as crianças de tenra idade devem ser entregues à mãe e o outro que levou à condenação do Governo português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de que «um ambiente desta natureza» (leia-se: homossexual), «não seja adequado ao desenvolvimento mental e social da criança no modelo desta sociedade».
O que configura claramente uma situação de discriminação...
De tal forma que, se eu fosse heterossexual, a Relação, segundo penso, teria mantido a decisão do Tribunal de primeira instância que me entregava a tutela da minha filha. Aliás, esse fundamentalismo e preconceitos em relação à homossexualidade encontram-se presentes, embora relegados para segundo plano, nos fundamentos da decisão dos juízes da Relação.
Nunca mais viu a sua filha?
Vi-a ainda mais três vezes: no Instituto de Reinserção Social e na esquadra da Polícia de Benfica. Como o Estado português não consegue fazer cumprir as suas decisões, apelei, ainda, por uma situação flagrantemente discriminatória, em Fevereiro de 1996, para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, ao fim de três anos e meio, me deu uma reparação social. Claro que o seu acórdão funciona mais como jurisprudência para situações futuras em que terá de ser tomado em linha de conta já que, em relação à minha situação, o Estado português não é obrigado a cumprir, porque o Tribunal Europeu não tem força sobre o Direito interno de cada Estado com efeitos de retroactividade.


Qual é então a grande vitória que representa este acórdão?
Pode obrigar a modificações futuras no chamado Direito interno, já que, de hoje em diante, Portugal e outros Estados do Conselho da Europa não podem emitir decisões em processos de qualquer natureza, incluindo os de direito paternal, que discriminem um cidadão seu por motivo da sua orientação sexual.
Entretanto, antes deste recurso, já tinha esgotado, a nível nacional, todas as soluções possíveis?
Como o meu processo implicava questões de constitucionalidade, escrevi ao Procurador Geral da República, que não se dignou sequer a responder-me, e ao Provedor de Justiça, que acabaria por relatar a um jornalista da «Capital» que estava sensível em relação ao meu caso. Mas como este último funciona apenas como uma instância de controlo e recomendação, acaba por não ter quaisquer poderes efectivos. Quanto ao Ministério da Igualdade recém-criado, não creio que possa fazer algo por uma pessoa que teve o «atrevimento» de sentar o Estado, a nível europeu, no banco dos réus.
Quais foram os resultados efectivos, a nível concreto de decisão do Tribunal Euro­peu?
Provocou alguma mexida na situação, na medida em que comecei por pedir, numa queixa dirigida ao Provedor de Justiça, que o Estado português seja condenado pela responsabilidade civil que teve nestes processos e, portanto, outra oportunidade para voltar a solicitar uma alteração à regulação do poder paternal que então foi conferido pela Relação à mãe. E que tenha também em linha de conta a actual realidade da vida da minha filha, hoje com 12 anos.
Tem contado com o apoio, nesta difícil situação, por parte dos seus pais?
Tanto eles como a família do meu companheiro têm-me apoiado bastante. Apesar dos meus pais, de início, terem tido algumas dúvidas, hoje são meus aliados incondicionais.
Um dos factores invocados para a discriminação de que são objecto casos como o seu fundamenta-se na possível influência da orientação sexual dos pais homossexuais...
Todos os estudos até agora feitos não provam que existem mais filhos homossexuais de pais com igual orientação. A maior parte de nós é, aliás, filha de pais heterossexuais e de famílias perfeitamente tradicionais. A opção sexual é algo intrínseco ao indivíduo; não tem a ver com a socialização e aculturação da criança. As crianças não necessitam necessariamente de uma família tradicional para terem um desenvolvimento normal, equilibrado e estável. Aliás, quantos traumas não existem por detrás da imagem aparentemente serena e segura da família tradicional, modelo hoje em franca mutação? O que é importante é a qualidade do relacionamento dos filhos com os seus progenitores, o amor, carinho e compreensão que estes são capazes de lhes dar e transmitir. Se ser filho de um heterossexual fosse uma garantia, éramos todos heterossexuais também.
Muitas pessoas ditas de Esquerda argumentam com o facto de a criança poder vir a ser discriminada, em sociedade, pela diferente orientação sexual dos pais...
De facto as crianças podem ser muito cruéis e a diferença é sempre apontada, de uma forma muito agressiva, em relação ao que é diferente, isto também porque elas recebem, com a educação, os preconceitos sociais e culturais dos pais. Mas não me parece argumento suficiente para impedir que dois homossexuais que coabitem em união de facto possam ter os respectivos filhos consigo. Temos de viver, no dia-a-dia, com as nossas limitações e diferenças e há toda uma escola de aceitação delas a fazer desde pequeno. E aqui o trabalho dos formadores é o de ensinar as crianças a poderem enfrentar essas situações e fornecer-lhes meios mais adequados para as superarem.
O que aconteceu, a tal respeito, no seu caso?
No estudo então feito pelo Gabinete de Psicologia do Tribunal de Família, provou-se que, apesar da nossa relação homossexual, a minha filha tinha claramente definidas a sua identificação sexual e a dos pais. Hoje em dia, vivemos numa sociedade em que as formas de constituir família são múltiplas (cada vez há mais famílias monoparentais) e a formação da criança é complementada também por professores, amigos, pais dos amigos, pela televisão e por todas as realidades de uma sociedade em constante mutação e com uma informação múltipla.



O que pensa da luta pelo reconhecimento das uniões de facto para os gays incluída numa legislação que contemple outros casos idênticos?
Ninguém precisa de uma cerimónia de casamento tradicional para tomar efectiva a sua relação; o que se toma necessário é a existência de mecanismos legais que confiram uma devida protecção às pessoas que decidam estar numa relação assumida a dois. União de facto ou casamento passam assim, quando devidamente protegida a primeira situação, a ter efeitos semelhantes. Os homossexuais, até aqui considerados cidadãos de segunda entre nós, têm todo o direito de ver a sua relação reconhecida, em termos legais, pela sociedade e pelo Estado.
Tem algumas reticências em relação à adopcão de crianças por parte de gays?
Houve recentemente em Paris, em Outubro de 1999, uma conferência organizada pela Associação de Progenitores Gays e Lésbicas com a presença de especialistas de Direito, Psicologia e Sociologia franceses para debater este problema. Em breve, vão ser publicadas as respectivas conclusões. No entanto, já se sabe que a posição destes técnicos é favorável à parentalidade dos pais e mães gays e lésbicas. Importante é ainda incluir, de uma forma clara, na nossa Constituição que ninguém possa ser discriminado por motivo da sua orientação sexual. Os Tratados Internacionais dos Direitos Humanos que se sobrepõem à nossa Constituição o artigo 13º do Tratado de Amsterdão, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a respectiva Convenção Europeia interditam tal discriminação e encontram-se, como normas, numa posição mais avançada que a actual do Estado português que tem o dever de acatá-las. Sobretudo quando se gaba de estar no pelotão da frente dos países da União Europeia a que pertence e de que sabe orgulhosamente reclamar-se.

Entrevista de Tito Lívio a João Mouta
Revista Korpus nº 11, Lisboa, 2000.





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Só há três anos é que conseguiu localizá-la, mas era tarde de mais. Com 16 anos, e a viver com a mãe no Porto, Maura já não queria conviver com o pai, “provavelmente devido a tudo o que lhe tinham dito durante a educação”, justifica João Mouta.
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De Pedro Coelho e Fernando Faria (imagem), com edição de imagem de Ricardo Santana, grafismo de Sérgio Maduro, produção de Isabel Mendonça, coordenação de Cândida Pinto e direcção de Alcides Vieira para a estação televisiva portuguesa SIC.

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