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A retórica dos direitos – um debate escolar nos anos noventa do século XX.
Não se tratava de resolver uma operação aritmética . Nem sequer se pedia para identificar uma personagem histórica . Pretendia-se tão-só que os jovens aglomerados em plateia assumissem, individualmente , uma posição que , sem ser formal , exigia razoabilidade. E a pergunta que se lhes fazia era não fácil : “Deve um casal homossexual ter o direito de adoptar uma criança ?”
Truques e técnicas para vencer a argumentação ? Não . O professor que organizou a iniciativa , Francisco Teixeira, garante que isso não era o mais importante . O que interessava era que a plateia aderisse a uma das duas ideias apresentadas em oposição com recurso à razão e à emoção . No caso , uma turma de Artes defendia que um casal homossexual devia ter o direito de adoptar uma criança e uma turma de Humanidades contrariava essa ideia.
A utilização dos diferentes argumentos foi, como se esperava, várias vezes contestada. Numa coisa os jovens estavam de acordo : “Os homossexuais são discriminados pela sociedade .” Assente este ponto , convinha avançar e perceber se um casal homossexual deveria ter igualdade de tratamento numa lista de espera para adopção. Primeiro argumento arrasador da equipa de Humanidades : “Se todos os casais em lista de espera reúnem as mesmas condições económicas, vai ter que se escolher o casal heterossexual !”
De pouco valia à turma de Artes explicar que “são pessoas iguais ” e que o que interessa na escolha de um casal adoptante é a sua formação e a capacidade de transmitir respeito , amor e carinho . Do outro lado da barricada , os representantes de Humanidades contrapunham: “Nada melhor do que um homem e uma mulher para educar uma criança !”
Nas entrelinhas deste discurso estava patente o receio de que uma criança , ao ser adoptada por um casal homossexual , viesse a ter “uma educação sexual tendenciosa ”. Mas a verdade é que , dos três elementos da turma de Humanidades , só uma rapariga acreditava no que dizia. Mais tarde , a equipa confessava que o rapaz hesitava na opinião e que a outra rapariga até pensava que os casais homossexuais deviam poder adoptar. Mas o que interessava era assumir o exercício de retórica .
Situando-se numa “sociedade preconceituosa” e zelando pelo bem-estar da hipotética criança adoptada por homossexuais, a turma de Humanidades imaginava já a entrada na escola secundária. E o panorama traçado era quase negro: os pais dos colegas iriam “induzi-los a hostilizar essa criança” e ela iria sentir-se “imensamente mal”. E como é que o casal homossexual poderia atenuar a situação? De uma única forma: dizendo à criança “olha, para tu existires foi preciso um homem e uma mulher, mas nós somos os dois homens”. Palmas e assobios; a plateia estava dividida.
Quem já não estava a gostar da argumentação era a turma de Artes, que, de facto, estava a defender aquilo em que acreditava. Os seus representantes, todos rapazes, falavam no “direito à diferença”, contestavam a ideia de que uma criança criada num meio homossexual seria também ela homossexual e chamavam a atenção para a quantidade de crianças que ficam sem ser adoptadas quando podiam estar num lar homossexual.
A equipa de Humanidades continuava a optar por “proteger as crianças”. E o raciocínio era, aparentemente, lógico: se a sociedade discrimina os homossexuais, não temos garantias de que, no futuro, a criança venha a ser aceite. Então, os homossexuais deveriam “integrar-se lentamente na sociedade e não fazer tanta questão na diferença”. Podia ser que, depois da integração, os casais homossexuais não fossem tão discriminados e que a adopção passasse a ser natural.
Na argumentação final, a equipa de Artes fez valer a emoção: “Existem crianças que nunca sentiram amor e carinho e casais de homossexuais discriminados pela sociedade mas dispostos a receber essa criança.” Sendo assim, por que não juntá-los todos? A pergunta ficou no ar. Mesmo depois, a equipa de Humanidades insistia em que o pai e a mãe são insubstituíveis e lembrava que uma criança adoptada por um casal homossexual nunca poderia dizer “estes são os meus pais”, porque eles são “incapazes de conceber”.
O auditório, na votação que culminou o exercício, pronunciou-se, em geral, a favor da argumentação da equipa de Artes. Mas o júri especializado (composto por professores e representantes de cada turma) optou pelo desempenho da turma de Humanidades.
Hália Costa Santos, jornal Público, 23/05/1996, pp. 2-3.
PONTAPÉS NO CONCEITO DE FAMÍLIA
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DEBATE NA ILGA-PORTUGAL NO ANO 2000
Cada vez mais, no mundo inteiro, a comunidade gay e lésbica está a constituir novas famílias. Em Portugal, as famílias gay e/ou lésbicas raramente são reconhecidas enquanto tal. Aos olhos da lei, da sociedade geral e dos mass media são inexistentes.
Tendo como uma das suas funções estatutárias lutar contra toda a discriminação com base na orientação sexual, o Grupo de Intervenção Política da Ilga-Portugal organizou, no Centro Comunitário Gay e Lésbico, um debate sobre estes temas, que contou com a presença de João Mouta, enquanto pai e homossexual, e do coordenador do GTH Sérgio Vitorino, a que a revista Korpus assistiu. Texto de Isidro Sousa para a revista Korpus nº 11, Lisboa, 2000, pp. 12-14
Originariamente, a primeira forma de união entre um homem e uma mulher ocorria através da força, isto é, o macho simplesmente pegava a fêmea pela qual sentia desejo. Tratava-se de uma captura, de uma união forçada e não de um casamento. A instituição do casamento, no que diz respeito ao seu aspecto jurídico, desperta interesse como objecto de estudo a partir do período de dominação do Império Romano, onde existiam normas que regulavam a existência desse instituto, que era dividido em três espécies distintas: a «confarretio», a «coemptio» e o «usus».
«Confarretio» era o casamento dos patrícios, ou seja, dos cidadãos romanos, e que correspondia ao matrimónio religioso, caracterizado pela oferta de um pão de trigo aos deuses, o que demonstra nos dias de hoje, de um modo estilizado, a origem do bolo de noiva. Todavia, no Império Romano esta oferta caiu em desuso.
«Coemptio» era o matrimónio dos plebeus, ou seja, aqueles que não eram cidadãos romanos, enquanto o «usus» era equivalente a um usucapião, já que a mulher era adquirida pela posse. Posteriormente, esse instituto evolui até ao casamento livre, no qual era exigido apenas a capacidade dos nubentes, o seu consentimento e a inexistência de impedimentos.
Com o passar do tempo, a Igreja Católica apodera-se dos direitos sobre a regulamentação e celebração do matrimónio, excluindo o Estado de qualquer participação.
Num outro momento histórico, os Estados começaram a rever esta situação pelos mais diversos factores, culminando com a equiparação do casamento religioso ao casamento civil.
Steve Walker, “Some Family's Values", 1995 |
FAMÍLIA TRADICIONAL E PATRIARCAL
Conceituar o casamento tem sido um grande desafio para os doutrinadores, pois existem inúmeros conceitos para o matrimónio, de acordo com a concepção que cada um tem do instituto. Inúmeros autores tentaram dar as suas definições, tais como: «fundamento da sociedade, base da moral pública e privada», «casar é perder metade dos seus direitos e duplicar os seus deveres», «é uma ridícula instituição dos filisteus», «casamento é a conjugação do homem e da mulher, que se associam para toda a vida, a comunhão do direito divino e do direito humano», «a união permanente entre o homem e a mulher, de acordo com a lei, a fim de se reproduzirem, de se ajudarem mutuamente e de criarem os seus filhos», entre outras.
Quanto à natureza jurídica do casamento, a doutrina também não chegou a um ponto pacífico, uma vez que existem pelo menos duas correntes distintas no direito pátrio. Uma defende que se se trata de um contrato de direito de família, corrente essa apoiada no direito canónico, segundo a qual o consentimento dos nubentes é o factor preponderante na formação do veículo matrimonial.
A outra corrente defende que o casamento é uma instituição, apresentando diversos factores que diferenciam o contrato da instituição: uma vez celebrado o casamento, várias consequências são projectadas na vida social dos nubentes, nas suas relações económicas, nos deveres a serem cumpridos por ambos, bem como nas suas relações com os seus filhos. Deste modo, a doutrina divide os efeitos do casamento em três categorias: pessoais, patrimoniais e sociais.
Enquanto os efeitos matrimoniais variam conforme o regime de bens, os pessoais têm a ver com os direitos e deveres de ambos os consortes que seriam o de fidelidade mútua, coabitação e mútua assistência, todos eles regulados no Código Civil. Já os efeitos sociais seriam a criação da família legítima; estabelecer o vínculo de afinidade entre cada cônjuge e os parentes do outro.
A palavra casamento é associada à imagem de uma família (tradicional) composta de marido, mulher e filhos, amparada pelo Estado e abençoada pela Igreja. Enquanto acto jurídico que é, se realizado entre pessoas do mesmo sexo, coloca-nos perante um acto jurídico nulo, dado não haver legislação sobre os mesmos, e o Código Civil trazer nas suas entrelinhas inúmeros casos, dos quais se depreende que a diversidade de sexo é uma condição essencial para a existência do casamento.
Diz o Artigo 1577º [estamos no ano 2000]: «Casamento é o contrato celebrado entre duas famílias de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida».
Também no livro «Direito de Família», em vigor nas Faculdades de Direito dos nossos dias, Antunes Varela diz: «o casamento é o acto jurídico fundamental do direito da família, pois através do vínculo matrimonial se constituí o cerne da sociedade familiar. Pode haver relações de carácter familiar ou para-familiar, como a adopção ou a filiação natural (…), ilegítima ou extra-matrimonial, à margem matrimonial. Mas não há família ou sociedade familiar fora do casamento. A pessoa casada, que viva em regime de concubinato com terceiro, não tem duas famílias. Tem uma só, a proveniente do matrimónio, da qual se pode encontrar afastada, por qualquer razão, mas que só finda com a extinção do casamento e da prole dele nascida».
Como se pode verificar, o casamento, nos nossos dias, ainda é considerado a base fundamental da família, aliás, da família tradicional, que, por sua vez, é considerada o instituto mais importante na organização da sociedade e que, quando colocada em risco, pode colocar em risco a própria civilização.
Contudo, este modelo tradicional de família alicerçado no casamento é, cada vez mais, posto em causa porque, além de discriminatório, está a revelar-se ultrapassado e falido e começam a vislumbrar-se outros em perspectiva. Foi com o objectivo de discutir estes e outros modelos, os conceitos de família e as novas famílias gay e lésbicas que se têm vindo a formar pelo mundo inteiro, que o Grupo de Intervenção Política (GIP) da Ilga-Portugal organizou um debate sobre estes temas no Centro Comunitário Gay e Lésbico, tendo como ponto de partida a família patriarcal e as transformações que sofre com a Revolução Industrial.
Steve Walker, “Family by Water" 2003 |
O ADVENTO DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
Sérgio Vitorino, coordenador do GTH-PSR e representante do GIP, começou por abordar a história da família patriarcal, «o modelo de referência que temos em relação à família, e para vermos o que ela foi ao longo dos tempos».
Ao longo da História dos últimos séculos e antes da Revolução Industrial, a estrutura familiar era basicamente um núcleo de sobrevivência, ao qual era «muito complicado escapar» porque, segundo Sérgio Vitorino, havia uma prisão económica. «É muito fácil ver esse modelo de família como uma prisão. Reparem: este modelo de família está em todas as pessoas que fazem parte do núcleo familiar, que estão dependentes do poder económico da figura patriarcal, o chefe de família. É muito complicado, num contexto destes, as pessoas autonomizarem-se, conseguirem ganhar em termos económicos e ter uma vida longe desse poder da figura paternal, principalmente em sociedades em que a pobreza era generalizada relativamente aos padrões que temos hoje em dia».
A família pré-Revolução Industrial era extremamente hierarquizada; face à figura paternal, as crianças e a mulher eram destituídas de todo o poder económico e de decisão, que estava na mão do homem, o chefe de família. Eram famílias que, devido a essa hierarquização, reproduziam de geração para geração este sistema de valores.
Nessa estrutura familiar, muito consistente até à Revolução Industrial, o casamento era um acto simbólico de tomada de posse da mulher por parte do homem. «Ainda hoje se mantêm traços disso, na cerimónia do casamento religioso, nomeadamente naquele acto altamente monopolizador das mulheres, em que a noiva é levada pela mão do pai até à mão do marido», constata Sérgio Vitorino. «Portanto, é basicamente uma passagem de testemunho de poder. A mulher está sempre enquadrada pelo poder decisório do homem dentro da família, seja ele o pai, o irmão ou, mais tarde, o marido». Este modelo familiar era único, hegemónico. Todavia, sofre um duro abalo com o advento da Revolução Industrial, nomeadamente com a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, o que vai «desestruturar completamente as relações dessa família porque vem dar poder económico às mulheres», assim como trazer uma «melhoria das condições de vida das pessoas, que antes eram miseráveis».
Tal facto permite que as pessoas escapem mais facilmente ao poder patriarcal, através da via económica, autonomizando-se mais em relação à família que, por sua vez, perde em parte esse poder, esse domínio enquanto prisão.
Outro fenómeno paralelo é a desagregação das grandes estruturas familiares — que englobavam muitas famílias diferentes — de que também fazem parte os irmãos, avós, sogros, tios, noras, primos até ao 4º, 5º grau, etc, além do pai, da mãe e dos filhos.
MOVIMENTO GAY E LÉSBICO... UMA AMEAÇA À FAMÍLIA TRADICIONAL?
Frequentemente, o movimento gay e lésbico é acusado de ser uma ameaça à família tradicional, pelo facto de reivindicar direitos e exigir ao Estado que reconheça as «nossas uniões», social e culturalmente.
«Geralmente, nós respondemos: nada disso! Longe de nós pensar em atacar a família...» defende Sérgio Vitorino, avançando que, no fundo, até têm alguma razão. Porque «nós somos uma ameaça à ideologia da família patriarcal, que mudou e levou uma transformação profunda com a Revolução Industrial. Mas essa ideologia manteve-se praticamente intocada, ou seja, houve uma evolução muito grande nas estruturas familiares da sociedade, mas não houve evolução na ideia que as pessoas têm sobre a família. Portanto, hoje temos muitas formas de organização em vida familiar, como por exemplo, as famílias monoparentais, já reconhecidas socialmente, que vêm abalar esse lugar único que a família patriarcal tinha como forma de associação das pessoas. Mas a ideologia continua a ser a de que a única forma legítima de associação das pessoas em família é aquele modelo de família hierárquico patriarcal».
Actualmente, existem novas estruturas familiares como realidade social. «Temos uma liberdade tão grande de nos associarmos às outras pessoas como queremos», continua Sérgio Vitorino, destacando: as famílias monoparentais, anos atrás negadas e sem qualquer tipo de estatuto; o reconhecimento dos filhos nascidos fora do casamento, antes considerados bastardos e maltratados na sociedade; famílias homossexuais, «por mais que custe ao Estado e às Instituições reconhecer que as pessoas do mesmo sexo quando se associam formam uma família»; e uma nova possibilidade de associação livre sem o condicionamento económico que existia na família patriarcal — as pessoas já se podem associar baseando-se sobretudo na sua afectividade e na atracção que sentem uns pelos outros.
Essa transformação não está completamente feita porque os laços familiares continuam a ter um peso forte na sociedade, mas é um facto que nos dias de hoje já nos associamos a outras pessoas por questões amorosas, e não por dependência ou conveniências económicas, como acontecia antes da Revolução Industrial. Outras transformações na sociedade não podem ser ignoradas como o aparecimento dos anti-concepcionais, «uma machadada muito grande no patriarcado e nesta estrutura familiar que colocava todo o poder nas mãos do homem» porque a mulher passa a ter um instrumento para poder decidir parcialmente sobre o seu corpo, nomeadamente quando e com quem deseja ter filhos.
O divórcio também não era possível anos atrás. Actualmente existe um grande aumento de divórcios em Portugal, o que também vai implicar uma nova modalidade das relações, «porque se as pessoas se associam por motivos afectivos, também se podem desassociar facilmente por esses motivos e escolher novos parceiros». O próprio valor da fidelidade, a monogamia, também perdeu algum peso simbólico, levando as pessoas a associar-se mais facilmente com vários parceiros sexuais.
«Houve esta transformação brutal na sociedade. Ela está a decorrer. E há novas formas de família que não conseguimos antever... E se falarmos em inseminação artificial, em âmbitos em que as relações já são novas, inclusive entre pais e filhos, a parentalidade vai muito para além da parentalidade biológica.
Mas a ideologia tradicional mantém-se. E existem forças conservadoras na sociedade em geral, e particularmente no Estado (a principal dessas forças), que mantêm a defesa dessa ideologia patriarcal e que agem na sociedade como se ela continuasse a ser o modelo único. Como, por exemplo, as resistências ao funcionamento das Uniões de Facto ou a introdução de leis de protecção ao casamento (na medida em que heterossexuais casados, no trabalho, têm direito a marcação de férias em conjunto, por exemplo, a benefícios fiscais, etc.)»
E que fazem essas leis de protecção ao casamento? Na perspectiva de Sérgio Vitorino, «para além de nos discriminarem a nós, que não temos acesso ao casamento, também discriminam as pessoas solteiras, em última análise, que, por não terem recorrido àquela instituição sacramental do casamento, não vêm reconhecido este tipo de direitos».
MODIFICAÇÃO DOS DIREITOS PARENTAIS
Por sua vez, João Mouta, pegando nas palavras de Sérgio Vitorino, começa por esclarecer que as mudanças na família que ocorreram ao longo do século XX, provocaram também uma modificação nos direitos parentais, nomeadamente a partir da perca do poder absoluto do homem e modificação dos direitos da mulher na sociedade.
Segundo o Código Civil aplicado no início do século XX, era o homem quem decidia tudo sobre as crianças. A mulher era uma nulidade em termos familiares; limitava-se a ser a geradora das crianças, aquela que permitia ao homem perpetuar o seu nome para o futuro».
Entretanto, avança João Mouta, quer o movimento feminista quer a sociedade caíram no seu extremo oposto: os direitos sobre as crianças passam a ser essencialmente da mãe.
«Quando, em situações de separação ou divórcio, tem de se decidir com quem ficam as crianças, geralmente ficam sempre com a mãe. A menos que se prove que ela não é capaz de ter as suas crianças», continua João Mouta analisando este facto em duas perspectivas: se por um lado as mulheres adquiriram mais poder na sociedade, por outro lado o peso cultural do juiz continua a perpetuar um modelo tradicional da família. Ou seja: a mulher tem que ficar em casa com os filhos; portanto, é ela que deve ficar com as crianças! «Existe uma evolução, de facto, dos direitos parentais ao longo deste último século; as coisas modificaram-se. No meu entender, passamos de um extremo ao outro, mas o modelo perpetuado é o mesmo. Porque a nossa Constituição diz que o pai e a mãe estão em igualdade para com os seus filhos e que têm a mesma capacidade jurídica, física e cultural para terem as crianças; o que não acontecia na antiga aplicação da lei.» Embora isto não se aplique de forma directa aos pais e mães homossexuais, tem de alguma forma a sua correlação porque este perpetuar do modelo faz com que não se pense na capacidade que uma mãe ou um pai homossexual têm para poder ter as suas crianças. João Mouta refere o seu caso dramático, que levou ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por os tribunais portugueses terem-no privado da sua filha, unicamente pelo facto de ser homossexual. [Ver entrevista] Quando se divorciou da mulher, foi levantado no Tribunal de Família o facto de ser homossexual e de viver com outro homem. Apesar disso, o Tribunal concedeu-lhe, em 1994, o poder paternal da filha por considerá-lo o progenitor mais adequado para dela se ocupar. Entretanto, a ex-mulher recorreu ao Tribunal da Relação, conseguindo anular a sentença anterior, «graças ao peso cultural preponderante na decisão dos juízes da Relação, que começaram por dizer que as crianças de tenra idade deveriam ser confiadas à mãe — de acordo com a Magna Carta dos Direitos da Criança, uma convenção internacional já substituída há mais de 30 anos». Isto porque, segundo os juízes, as mães são os melhores progenitores para delas cuidarem. «As mães têm que ficar em casa a tomar conta das crianças. Lá está o peso cultural que eu tinha referido», assinala João Mouta.
Os juízes da Relação sentenciaram ainda que o facto de o pai viver com outro homem, como se de marido e mulher se tratasse, era uma situação anormal e que uma criança não deveria viver num ambiente anormal, mas sim no seio de uma família tradicional portuguesa. No final do acórdão, devolveram o poder paternal à mãe e estabeleceram um regime de visitas ao pai, durante as quais deveria abster-se de demonstrar à filha que tinha uma relação homossexual.
«O Prof. Júlio Machado Vaz dizia que isso talvez fosse a maior violação dos meus direitos de pai. Mas como ficou escrito, deu-me a possibilidade de ter uma prova concreta da violação, de todos os fundamentos que tinham levado àquela decisão, e pus um processo contra o Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por violação de Direitos Humanos. Porque, quando se nega a um pai o direito de parentalidade que está consagrado na lei, é uma violação de Direitos Humanos», remata João Mouta, afirmando que, em termos legais, um pai ou uma mãe homossexual tem os mesmos direitos que qualquer um. «Não há diferenciação, embora depois, na aplicação das leis, o peso cultural domine».
Ainda neste contexto, Sérgio Vitorino frisa a existência de outras leis dirigidas às mulheres, particularmente às que têm mais de um filho, que lhes conferem benefícios. «São basicamente mais uma tentativa de motivar essas mulheres a ficarem em casa com as crianças ao invés de entrarem no mercado de trabalho.» E finaliza: «Houve uma mudança brutal nas estruturas familiares nos últimos anos mas as práticas dos Estado não mudaram, ou essa mudança não foi tão rápida como a que existe de facto na sociedade, e não houve sobretudo uma mudança ao nível ideológico, que tarda muito mais. Creio que uma das maiores resistências que o movimento gay e lésbico vai ter em Portugal — como aconteceu noutros países — vai ser precisamente quando começarmos a dar alguns pontapés no conceito de família. É aqui que se vão concentraras maiores resistências porque, ao abordarmos a questão da família, vamos acrescentar diversidade onde, até agora, havia um modelo único. E isso mexe com muita gente, com muita coisa e com muitos poderes existentes na sociedade.»
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