quarta-feira, 18 de maio de 2022

Cristãos contra a homofobia



Palavras de Frederico Lourenço, num encontro de cristãos contra a homofobia, via zoom, em 17-05-2022

 

"(...) Os meus pais eram católicos praticantes quando eu nasci e por isso fui baptizado e educado como católico.

Quando entrei na adolescência, dei-me conta de que não me sentia sexualmente atraído pelo sexo oposto: percebi e aceitei depressa que era homossexual, sem dramas interiores.

Nunca tive uma relação torturada com a minha sexualidade; nunca me forcei a ser heterossexual.

Como adolescente extremamente crente e cheio de devaneios místicos, aceitei de imediato que, se Deus não tivesse querido que eu fosse homossexual, ter-me-ia criado heterossexual.

Não houve para mim choque entre homossexualidade e catolicismo durante a minha adolescência. Isto é, eu sabia que a Igreja não aceitava a minha sexualidade, mas isso não me afastou da Igreja nessa altura. Até porque, como adolescente, eu não tinha ainda uma vivência da sexualidade que justificasse um embate com a prática do catolicismo.

Esse embate surgiu quando tive os meus primeiros relacionamentos com namorados, embora não me possa queixar de atitudes menos compreensivas da parte dos padres com quem conversei. Apesar, porém, da compreensão, a minha necessidade de uma certa coerência interior levou-me a optar por deixar de ser católico praticante, no sentido em que deixei de me confessar e deixei de comungar, mas continuei durante uns anos a ir à missa.

Neste momento, estou afastado da Igreja há cerca de 20 anos.

Vejo-me, no entanto, como seguidor independente de Jesus, com simpatia em relação à Igreja Católica, mas com simpatia, também, pelas igrejas protestantes mais progressivas. Porém, o caminho para Deus, a meu ver, não passa obrigatoriamente por uma igreja cristã (seja ela qual for), nem por uma religião específica (seja ela qual for). No entanto, a ideia de comunidade cristã faz-me sentido e, por isso, não nego que me seria agradável sentir que haveria lugar para mim na igreja católica, não obstante a minha homossexualidade e não obstante o facto de eu ser casado civilmente com um homem. O meu pendor místico também me leva a desejar a maior proximidade com Jesus que está implícita na eucaristia, da qual optei por me excluir (ou da qual estou automaticamente excluído, justamente por ser casado com um homem).

A pergunta que coloco hoje a mim mesmo é: quão incompatível é a homossexualidade com o cristianismo?

Sabemos que, embora nenhum evangelho canónico ou apócrifo atribua a Jesus palavras condenatórias da homossexualidade, essas palavras estão presentes nas epístolas de São Paulo. Para lá das controvérsias sobre como interpretar essas passagens de Paulo, elas podem infelizmente ser lidas como fundamento bíblico para que a homossexualidade seja punida com pena de morte, como foi, de resto, na Europa cristã, até à vinda do código napoleónico e à posterior ideia laica de que os direitos humanos pesam mais do que crenças bíblicas na feitura de legislação. Portanto, mesmo o cristão que desvaloriza a pena de morte preconizada para a homossexualidade no livro de Levítico como fazendo parte de uma realidade judaica muito antiga que já não é a nossa, esse mesmo cristão tem de se confrontar com o mesmo problema no Novo Testamento.

Como estudioso que sou da história do cristianismo, tenho procurado perceber se houve homossexuais cristãos no passado que tentaram a difícil quadratura do círculo que é ser homossexual e cristão.

Sabemos da existência de uma comunidade de cristãos (a que chamaríamos hoje homossexuais) através de um autor ortodoxo do século IV (Epifânio de Salamina, na obra Panárion 26.13), que naturalmente os rotula de heréticos. Mas o facto de eles terem existido (partindo do princípio de que não são uma fantasia na cabeça do autor patrístico) sugere que eles encontraram uma maneira de compatibilizar cristianismo com homossexualidade.

Também sabemos de cristãos que se interrogaram sobre a sexualidade de Jesus: em 1550, o frade franciscano Francesco Calcagno foi condenado à morte e executado em praça pública, na cidade de Veneza, por ter afirmado que o relacionamento entre Jesus e o discípulo amado ia além dos limites da amizade platónica.

A interrogação, portanto, sobre se homossexualidade e cristianismo são ou não realidades compatíveis não é uma modernice do nosso século XXI, mas é algo que tem preocupado cristãos diferentes em épocas muito diversas.

A propósito da homofobia cristã, o teólogo católico James Alison escreveu que há três palavras com as quais se pode sintetizar o modo como muitos homossexuais viveram, ao longo dos séculos, o facto de estarem inseridos numa sociedade cristã:

1- matança (porque tantos foram mortos);

2- suicídio (porque tantos recorreram a essa saída dilacerante);

e

3- mentira (porque a mentira foi, praticamente até aos nossos dias, a única forma de se lidar com a homossexualidade – quer a mentira de que ela não existe; quer a mentira da parte de alguns representantes da igreja, de que ela é a mesma coisa que o crime de abuso de menores; quer a mentira de todos os homossexuais que optam por fingir que o não são).

Como seguidores de Jesus, é bom estarmos empenhados em evitar tudo o que seja matança e auto-matança de seres humanos; e compete-nos rejeitar em absoluto a mentira. Só assim honraremos em pleno quem disse de si mesmo: «Eu sou o caminho e a verdade e a vida» (João 14:6).

Termino agora com a ideia de que o caminho em frente, a meu ver, no que toca à aproximação entre homossexualidade e igreja, é ver nesse processo uma atitude que favorece a vida (e não a matança e o suicídio); e que favorece, acima de tudo, a verdade.”

 


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