FREDERICO LOURENÇO, 1984 |
Grécia
Já não é a primeira vez que alguém me diz “como traduziste Homero, deves conhecer bem a Grécia”. Na verdade... não. Fui apenas três vezes à Grécia e, em rigor, não conto a terceira, já que consistiu numa semana que passei fechado numa escola de línguas em Atenas, a ter aulas de Grego Moderno 8 horas por dia. Entre a primeira vez que fui à Grécia em 1984 e a segunda vez em 2004 houve um intervalo de 20 anos. Nesses 20 anos tornei-me helenista: isto é, aprendiz de especialista do Grego Antigo. A minha Grécia sempre foi a língua grega.
As duas viagens separadas por 20 anos foram muito diferentes uma da outra. Eu não seria eu se não vos dissesse que a diferença consistiu antes de mais no facto de cada uma das viagens ter sido feita com um namorado diferente.
Mas há outras diferenças que me ocorrem: em 1984 não havia cartões multibanco nem telemóveis nem euros. O meu namorado e eu chegámos a Atenas com um maço de libras na carteira, que fomos gerindo sabiamente até gastarmos a última nota de 20 libras no último dia da nossa estadia, o que deu para o táxi que nos levou ao aeroporto, mas não deu já para o pequeno-almoço. Nunca me soube tão bem uma comida no avião como o pão deslavado no voo que, naquele dia 2 de Outubro de 1984, nos levou de Atenas para Roma, onde apanhámos depois uma ligação para Milão, que nos trouxe para Lisboa.
Nesse mesmo dia, que amanhecera para nós em Atenas, fomos ao fim da tarde até à Torre de Belém. Depois do mar da Grécia, o azul do Tejo (“quão diferente me vês e viste”, como no poema de Rodrigues Lobo) já não era o meu azul. É facto que 15 dias na Grécia tinham feito de mim outra pessoa.
Quando me vejo nas fotografias que o meu namorado da altura tirou na Grécia em 1984, vejo no meu rosto uma expressão rara de apaziguamento sereno. Normalmente não sou homem dado a apaziguamentos e a serenidade é uma emoção que me escapou quase sempre ao longo da minha vida. Nessa viagem, porém, houve uma espécie de plenitude que se apoderou de mim.
Estava pela primeira vez na minha vida feliz no amor; estava em êxtase absoluto por estar finalmente na Grécia; e tinha trazido de Portugal suficientes maços de SG Gigante (o tabaco que eu fumava na altura) para não me faltar esse prazer indispensável. Toda a viagem decorreu sob o signo daquele bem-estar único dos amantes que, fartando-se à fartazana do corpo um do outro, mesmo assim nunca se sentem fartos. Isso vê-se na minha cara.
Em 1984, ninguém em Portugal sabia o que era iogurte grego. Chegados a Delfos numa tarde abrasadora em que estariam quase 40 graus à sombra, entrámos numa mercearia onde o dono nos ofereceu um lanche de iogurte com nozes e mel das abelhas de Parnasso. Daí a meia-hora, estávamos a refrescar a sede com água bebida directamente da fonte de Castália. Nessa noite, sentámo-nos a seguir ao jantar num terraço com vista para as montanhas, soando ao longe os trovões secos de uma tempestade sem pingo de chuva. Na madrugada seguinte, levantámo-nos antes do nascer do sol para vermos a aurora a surgir com os seus róseos dedos atrás das montanhas.
O meu namorado captou o momento numa aguarela que sobreviveu ao facto de o cavalete ter sido atirado ao chão por uma rajada súbita do Zéfiro, vento que já na mitologia grega tinha uns ciúmes loucos de felizes amores homossexuais.
Se me tivessem dito na altura que eu um dia traduziria a Ilíada, a Odisseia, o Novo Testamento e os profetas dos Septuaginta, claro que me teria rido às gargalhadas. No entanto, ainda tenho o caderno que levei comigo à Grécia em 1984, no qual escrevi alguns passos de poesia grega na língua original (que eu ainda não dominava minimamente). Vejo que escolhi umas citações de Sófocles e os primeiros 100 versos da Ilíada, que me dei ao trabalho de copiar para o caderno, ainda sem entender praticamente uma única palavra. Acho interessante, hoje, que já nessa altura tenha sido a Ilíada a atrair-me mais do que a Odisseia, predilecção que, com intermitências, se tem mantido.
O meu namorado pintou várias aguarelas dos templos gregos que visitámos, a maior parte das quais, 30 anos depois, estão nas paredes da casa onde o André e eu vivemos em Coimbra. Estiveram antes nas casas que partilhei com o seu autor e suscitaram sempre comentários elogiosos das pessoas que nos visitavam.
No entanto, houve uma vez um amigo alemão (heterossexual) que olhou em volta para as aguarelas de templos gregos pintados e comentou: “vê-se mesmo que vocês são gays”. Olhámos para ele com cara de parvos – olhámos depois para as aguarelas do Pártenon, de Súnion, de Atena Afaia em Egina... e encolhemos os ombros, sem perceber. Depois ele explicou: “nunca vos ocorreu que todas estas colunas gregas na vossa casa não representam outra coisa que não o pénis erecto?” Ao que nós respondemos, sinceramente: não.
(na foto: Frederico em Súnion, Setembro de 1984, com um maço de SG Gigante no bolso da camisa)
Já não é a primeira vez que alguém me diz “como traduziste Homero, deves conhecer bem a Grécia”. Na verdade... não. Fui apenas três vezes à Grécia e, em rigor, não conto a terceira, já que consistiu numa semana que passei fechado numa escola de línguas em Atenas, a ter aulas de Grego Moderno 8 horas por dia. Entre a primeira vez que fui à Grécia em 1984 e a segunda vez em 2004 houve um intervalo de 20 anos. Nesses 20 anos tornei-me helenista: isto é, aprendiz de especialista do Grego Antigo. A minha Grécia sempre foi a língua grega.
As duas viagens separadas por 20 anos foram muito diferentes uma da outra. Eu não seria eu se não vos dissesse que a diferença consistiu antes de mais no facto de cada uma das viagens ter sido feita com um namorado diferente.
Mas há outras diferenças que me ocorrem: em 1984 não havia cartões multibanco nem telemóveis nem euros. O meu namorado e eu chegámos a Atenas com um maço de libras na carteira, que fomos gerindo sabiamente até gastarmos a última nota de 20 libras no último dia da nossa estadia, o que deu para o táxi que nos levou ao aeroporto, mas não deu já para o pequeno-almoço. Nunca me soube tão bem uma comida no avião como o pão deslavado no voo que, naquele dia 2 de Outubro de 1984, nos levou de Atenas para Roma, onde apanhámos depois uma ligação para Milão, que nos trouxe para Lisboa.
Nesse mesmo dia, que amanhecera para nós em Atenas, fomos ao fim da tarde até à Torre de Belém. Depois do mar da Grécia, o azul do Tejo (“quão diferente me vês e viste”, como no poema de Rodrigues Lobo) já não era o meu azul. É facto que 15 dias na Grécia tinham feito de mim outra pessoa.
Quando me vejo nas fotografias que o meu namorado da altura tirou na Grécia em 1984, vejo no meu rosto uma expressão rara de apaziguamento sereno. Normalmente não sou homem dado a apaziguamentos e a serenidade é uma emoção que me escapou quase sempre ao longo da minha vida. Nessa viagem, porém, houve uma espécie de plenitude que se apoderou de mim.
Estava pela primeira vez na minha vida feliz no amor; estava em êxtase absoluto por estar finalmente na Grécia; e tinha trazido de Portugal suficientes maços de SG Gigante (o tabaco que eu fumava na altura) para não me faltar esse prazer indispensável. Toda a viagem decorreu sob o signo daquele bem-estar único dos amantes que, fartando-se à fartazana do corpo um do outro, mesmo assim nunca se sentem fartos. Isso vê-se na minha cara.
Em 1984, ninguém em Portugal sabia o que era iogurte grego. Chegados a Delfos numa tarde abrasadora em que estariam quase 40 graus à sombra, entrámos numa mercearia onde o dono nos ofereceu um lanche de iogurte com nozes e mel das abelhas de Parnasso. Daí a meia-hora, estávamos a refrescar a sede com água bebida directamente da fonte de Castália. Nessa noite, sentámo-nos a seguir ao jantar num terraço com vista para as montanhas, soando ao longe os trovões secos de uma tempestade sem pingo de chuva. Na madrugada seguinte, levantámo-nos antes do nascer do sol para vermos a aurora a surgir com os seus róseos dedos atrás das montanhas.
O meu namorado captou o momento numa aguarela que sobreviveu ao facto de o cavalete ter sido atirado ao chão por uma rajada súbita do Zéfiro, vento que já na mitologia grega tinha uns ciúmes loucos de felizes amores homossexuais.
Se me tivessem dito na altura que eu um dia traduziria a Ilíada, a Odisseia, o Novo Testamento e os profetas dos Septuaginta, claro que me teria rido às gargalhadas. No entanto, ainda tenho o caderno que levei comigo à Grécia em 1984, no qual escrevi alguns passos de poesia grega na língua original (que eu ainda não dominava minimamente). Vejo que escolhi umas citações de Sófocles e os primeiros 100 versos da Ilíada, que me dei ao trabalho de copiar para o caderno, ainda sem entender praticamente uma única palavra. Acho interessante, hoje, que já nessa altura tenha sido a Ilíada a atrair-me mais do que a Odisseia, predilecção que, com intermitências, se tem mantido.
O meu namorado pintou várias aguarelas dos templos gregos que visitámos, a maior parte das quais, 30 anos depois, estão nas paredes da casa onde o André e eu vivemos em Coimbra. Estiveram antes nas casas que partilhei com o seu autor e suscitaram sempre comentários elogiosos das pessoas que nos visitavam.
No entanto, houve uma vez um amigo alemão (heterossexual) que olhou em volta para as aguarelas de templos gregos pintados e comentou: “vê-se mesmo que vocês são gays”. Olhámos para ele com cara de parvos – olhámos depois para as aguarelas do Pártenon, de Súnion, de Atena Afaia em Egina... e encolhemos os ombros, sem perceber. Depois ele explicou: “nunca vos ocorreu que todas estas colunas gregas na vossa casa não representam outra coisa que não o pénis erecto?” Ao que nós respondemos, sinceramente: não.
(na foto: Frederico em Súnion, Setembro de 1984, com um maço de SG Gigante no bolso da camisa)
Frederico Lourenço, Coimbra, 2017-10-06
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