domingo, 1 de outubro de 2017

EU FUI UMA CRIANCA VIADA (Jean-Wyllys)

Jean-Wyllys, EU FUI UMA CRIANCA VIADA, 2017-09-30







Jean Wyllys


EU FUI UMA CRIANÇA VIADA
(ou: Delmasso, há crimes reais aos quais você deveria dar alguma resposta)



Lésbicas, gays, bissexuais e trans não nasceram de chocadeiras. Nós também tivemos infância e sofremos por não nos encaixarmos no padrão do menino esportista e viril ou da menina prendada e submissa. Colecionamos histórias de violências, mas também de afirmação, de construção daquilo que somos hoje, com orgulho.


“Crianças viadas" sim, porque eu também fui uma delas!


Me entendi criança viada aos 6 anos de idade, ao sofrer a primeira agressão homofóbica, mesmo sem saber ainda o porquê. Criança viada porque, desde a infância, eu borrava as fronteiras de gênero, gostava de desenhar, de conviver com as meninas, das coisas que a sociedade diz que não são “de menino” e que ensina aos meninos a desprezar: o amor, o sentimento, a empatia, o respeito pelo outro, a intimidade... Ter sido uma criança viada é algo que vai muito além da minha orientação sexual, entendida e assumida com a maturidade.


Foi por sensibilidade com histórias que se parecem também à minha que Bia Leite - artista que agora vê seu nome difamado pela boca de canalhas oportunistas - começou a transformar em pinturas as fotos de infância de pessoas LGBT, enviadas por elas mesmas, a um Tumblr que emprestou seu nome à série de pinturas que representa crianças viadas reais, em momentos reais. Os quadros ganharam projeção nacional por estarem presentes na exposição QueerMuseu, fechada após protestos de grupos conservadores, sob a falsa acusação de apologia à pedofilia. Acusação que foi desmentida após visita do Ministério Público, que afirmou não existir qualquer crime ali.


Um desses quadros me foi dado de presente por Bia, e eu fiquei muito lisonjeado, por tudo o que aquela obra representa. É para isto que serve a arte: para nos encantar, para nos mostrar o belo, mas também para provocar, para denunciar e para expor as violências sofridas por todas as crianças viadas no país que mais mata LGBTs no mundo. E as reações à obra provam que Bia foi certeira: imediatamente, os mais dedicados à promoção dessas violências correram para associar as obras à prática criminosa. Sequer conseguem esconder suas reais motivações. Estão expostos aos olhares mais atentos!


Rodrigo Delmasso é deputado distrital, função análoga à de deputado estadual no Distrito Federal. Apadrinhado político do bispo Rodovalho, é membro da bancada de pastores evangélicos na Câmara Legislativa, uma das bancadas mais denunciadas por envolvimento com corrupção. Ele próprio acumula investigações por malversação de recursos públicos quando à frente da Secretaria do Trabalho do DF. Leva ainda na bagagem a presença de investigados pela Polícia Federal como comissionados em seu gabinete. Delmasso também alcançou projeção nacional, mas como opositor à lei local que pune quem comete violência homofóbica. Alega, claro, que o faz para proteger as famílias, já que aparentemente essas "famílias" só poderão prosperar com o sofrimento de cerca de 10% da população brasileira. Delmasso se coloca como cúmplice dessas violências, ao preferir impedir seu combate!


Agora, Delmasso decidiu dar um passo a mais: à frente da CPI da pedofilia, quer convocar Bia Leite. Se fosse uma pessoa minimamente honesta, teria ao menos lido o que dizem o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, antes de afirmar tamanha asneira. Os artigos 240 e 241 do ECA são claros em definir o que é o objeto do crime: "qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais". Ou seja, Delmasso sequer pode dizer que se apoia sobre a legislação vigente. Ele não busca justiça, não busca a proteção de direitos difusos de vítimas nem de qualquer cidadão. Apenas atende interesses pessoais em detrimento de um conjunto de cidadãos e cidadãs. Viola qualquer princípio ético, inscrito ou não nos códigos das instituições do Estado de direitos. Age apenas para perseguir aqueles que seus colegas também insistem em atacar diariamente, sejam nos espaços legislativos, sejam nos púlpitos das igrejas. E essa canalhice não ficará impune!


Jean Wyllys, 2017-09-30










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