terça-feira, 29 de agosto de 2017

Um bloco de atividades para rapazes e outro para meninas

- polémica -
 

 
 

Parecer Técnico da CIG relativo aos conteúdos dos Blocos de Atividades da Porto Editora

 
 
Lisboa, 23 de agosto de 2017 
 
 
Assunto: Parecer Técnico sobre os conteúdos dos Blocos de Atividades para Rapazes e para Meninas dos 4 aos 6 anos - Porto Editora (2016) 
 
1. Enquadramento 
 
O princípio da igualdade é um princípio fundamental da Constituição da República Portuguesa de 1976. Revisões posteriores reforçaram alguns aspetos desse princípio, em particular a revisão de 1997 (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro) e a revisão de 2005 (Lei Constitucional n.º 1/2005, de 12 de agosto). 
  • Artigo 9.º: São tarefas fundamentais do Estado, entre outras, a promoção da igualdade entre homens e mulheres.
  • Artigo 13.º: Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. 
 
A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) é o organismo nacional responsável pela promoção e defesa da igualdade entre mulheres e homens, procurando responder às profundas alterações sociais e políticas da sociedade em matéria de cidadania e igualdade de género. Assim, é o organismo responsável por garantir a execução das políticas públicas no domínio da cidadania, da promoção e defesa da igualdade de género e do combate à violência doméstica e de género e ao tráfico de seres humanos, cabendo-lhe a coordenação dos respetivos instrumentos - os Planos Nacionais. 
 
 De entre as atribuições da CIG, sublinham-se: 
  • Promover a educação para a cidadania e a realização de ações tendentes à tomada de consciência cívica relativamente à identificação das situações de discriminação e das formas de erradicação das mesmas; 

  • Elaborar recomendações gerais relativas a boas práticas de promoção de igualdade de género, designadamente ao nível da publicidade, do funcionamento de estruturas educativas, de formação e da organização da trabalho no sector público e privado, bem como atestar a conformidade com essas boas práticas; 

  • Receber queixas relativas a situações de discriminação ou de violência com base no género e apresentá-las, sendo caso disso, através da emissão de pareceres e recomendações, junto das autoridades competentes ou das entidades envolvidas. 
 
Nota ‑ Seguem ainda, em anexo, algumas recomendações de organismos internacionais que vinculam o Estado português.
 
 
2. Análise técnica dos Blocos de Atividades para "Rapazes" e para "Meninas" (Porto Editora, 2016) 
 
 
Alguns conceitos base  
(In Guião de Educação Género e Cidadania- Pré-escolar, CIG, 2015. Ver também Madeline Heilman (2001) e Conceição Nogueira e Luísa Saavedra (2007), citados na mesma obra.)
 
Sexo: o termo sexo é usado para distinguir os indivíduos com base na sua pertença a uma das categorias biológicas: sexo feminino e sexo masculino (página 12). 
 
Género: o termo género é usado para descrever inferências e significações atribuídas aos indivíduos a partir do conhecimento da sua categoria sexual de pertença. Trata-se, neste caso, da construção de categorias sociais decorrentes das diferenças anatómicas e fisiológicas (página 12).
 
Assim, o termo sexo pertence ao domínio da biologia e o conceito de género inscreve-se no domínio da cultura e remete para a construção de significados sociais. 
 
Estereótipos de género: os estereótipos constituem conjuntos bem organizados de crenças acerca das características das pessoas que pertencem a um grupo particular. Os estereótipos de género (mais do que qualquer outro tipo de estereótipos), apresentam um forte poder normativo, na medida em que (...) consubstanciam uma visão prescritiva, (...) dos comportamentos (papéis de género) que ambos os sexos deverão exibir (página 26). 
 
A nossa análise incidiu sobre as seguintes questões: 
 
a) Reforço da Segregação de Género:
 
A primeira reflexão sobre estes blocos prende-se com a própria existência de dois blocos, um para o sexo masculino, outro para o sexo feminino, ambos para o mesmo grupo etário (4 a 6 anos). Desde logo, esta segregação não permite que as meninas tenham acesso às atividades que são propostas para os rapazes, e vice-versa, reforçando assim as mensagens que são transmitidas a cada um dos sexos.
 
Por outro lado, reforça-se ainda a segregação quando o bloco dos meninos não prevê interação com meninas e vice-versa. 
 
Parecer: Esta segregação contraria o princípio de igualdade de oportunidades independentemente do sexo a que se pertence.
 
Recomendação: As atividades deverão estar contidas num único bloco de atividades para meninas e meninos dos 4-6 anos, tal como acontece no sistema de ensino em que os manuais são comuns para meninas e meninos em cada grau de escolaridade, permitindo a umas e a outros experimentar todas as possibilidades que a realidade oferece, para assim poder fazer as suas escolhas de forma livre e informada. 
 
 
b) Reforço dos Estereótipos de Género: 
 
Muito embora as atividades propostas sejam, aparentemente, semelhantes, as ilustrações apresentadas diferem consoante o sexo a que se dirigem, reforçando os estereótipos de género. A escolha diferenciada do tipo de atividades a desenvolver por meninas e meninos, constitui uma mensagem clara de reforço de papéis de género estereotipados, contrariando os objetivos de eliminação gradual dos estereótipos sociais de género que pré-definem o que é suposto ser e fazer um rapaz e uma rapariga, condicionando, no futuro, as suas opções pessoais e profissionais.
 
A título de exemplo, refira-se: 
  • As capas, para além das cores diferentes (azul para "Rapazes" e cor-de-rosa para "Meninas") apresentam diferentes imagens que nos remetem para diferentes tipos de atividades, além de se referirem a eles por "rapazes" e a elas por "meninas". As dos meninos mais pragmáticas e de realização no exterior/espaço público (bolas, foguetões, carros, barcos, berlindes), as das meninas mais recatadas, viradas para o interior/espaço privado (bolos, adornos, bonecas, peluches). 

  • logo na primeira atividade, em que se pretende reconhecer e identificar a vogal A, a situação retratada na publicação dirigida aos meninos remete para atividades no exterior (campo, árvore, ancinho, águia, etc.), enquanto na publicação dirigida às meninas surgem cinco objetos todos eles ligados a atividades domésticas (leite, manteiga, iogurte, alface e maçã). 

  • uma atividade, em que se pretende reconhecer e identificar conceitos (triste e feliz), em que às meninas se propõe encontrar a sua boneca perdida no parque, e ao menino se propõe encontrar a escavadora com que brincava; 

  • uma outra atividade, destinada a desenvolver a motricidade fina e a coordenação oculomotora, às meninas propõe-se que pintem as unhas da mão apresentada no bloco (como faz a mãe), enquanto para os meninos é proposto que pintem um barco de piratas; 

  • uma outra atividade, destinada a promover a atenção e a concentração, (...) e identificar conceitos: de frente e de costas, as meninas são convidadas a pintar a imagem de um bailado a que terão ido assistir, e que é composto apenas por meninas bailarinas; no caso dos meninos devem pintar os jogadores de um jogo de futebol a que foram assistir com o pai; 

  • ou, ainda, outra atividade destinada a reconhecer e organizar uma sequência lógica-temporal, em que às meninas se propõe ajudar a mãe a preparar o lanche, e aos meninos que ordenem imagens de um cientista a construir um robô.
De sublinhar que ao longo de todas as propostas contidas nos Blocos de Atividades, a própria imagem dos meninos e das meninas que acompanham as legendas das atividades reforça os estereótipos de "passividade/recato" das meninas por oposição a "ação e movimento físico" dos meninos; 
 
Parecer: A escolha deste tipo de imagens diferenciadas para meninas e para meninos acentua estereótipos de género que estão na base de desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos homens na nossa sociedade, contrariando o princípio de igualdade de tratamento e não discriminação entre mulheres e homens. 
 
Recomendação: a revisão dos conteúdos deverá garantir que as imagens veiculadas nas atividades, não reproduzem estereótipos de género discriminatórios. Por exemplo uma só atividade poderá incluir meninas e meninos a pintarem um barco. 
 
 
c) Diferenciação por sexo do grau de dificuldade das atividades: 
 
As publicações apresentam ainda diferentes graus de dificuldade em algumas das atividades propostas para meninas e meninos. Da nossa análise resulta que, do total das atividades propostas, 6 têm resolução mais difícil no Bloco de Atividades para meninos, enquanto apenas 3 têm resolução mais difícil no Bloco de Atividades das meninas. 
 
A título de exemplo: 
  • numa atividade em que se pretende que identifiquem quadrados de tamanhos diferentes, aos meninos é-lhes mostrado um conjunto de 16, enquanto que às meninas são apresentados apenas 6 quadrados; 

  • de referir, igualmente, uma atividade em que é pedida a distinção entre lápis e canetas, em que no caso dos meninos se encontram espalhados e misturados, e no caso das meninas estão já separados e arrumados em diferentes estojos; 

  • isto, além dos exemplos amplamente divulgados nas redes sociais e na comunicação social, do diferente grau de dificuldade dos labirintos apresentados nas atividades. 
 
Parecer: O facto de haver um maior número de atividades com maior grau de dificuldade no Bloco de Atividades para meninos poderá reforçar a ideia de que há desigualdade nas capacidades cognitivas de meninos e meninas. 
 
Recomendação: Que se adote apenas 1 Bloco de Atividades para crianças dos 4-6 anos para que todas possam praticar todos os exercícios de igual forma. 
 
A Presidente
 
Teresa Fragoso 
 

 
Anexo
 
Algumas Orientações de Organismos Internacionais que vinculam o Estado português: 
 
 
Organização das Nações Unidas: 
 
De acordo com a Plataforma de Ação de Pequim, os Governos devem incentivar e apoiar devidamente as organizações nos seus esforços para promover mudanças nas atitudes e práticas negativas para com as raparigas; desenvolver e adotar curricula, materiais didáticos e livros escolares que ajudem a melhorar a autoimagem das raparigas, a sua vida e as suas oportunidades de emprego particularmente nas áreas onde as mulheres têm estado tradicionalmente sub-representadas; e encorajar as instituições educativas e os media para que adotem e projetem uma imagem equilibrada e não estereotipada das raparigas e dos rapazes.
 
 
A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres {CEDAW) estabelece, no seu artigo 10.º que os Estados partes devem tomar todas as medidas apropriadas para a eliminação de qualquer conceção estereotipada dos papéis dos homens e das mulheres. 
 
 
Parlamento Europeu:
 
A Resolução sobre a eliminação dos estereótipos de género na União Europeia refere que os papéis tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres e os estereótipos de género continuam a influenciar fortemente a divisão dos papéis entre mulheres e homens no espaço doméstico, no local de trabalho e na sociedade em geral, sendo as mulheres frequentemente representadas como as pessoas que cuidam da casa e dos filhos/as, enquanto os homens são representados como as pessoas que trazem dinheiro e que protegem; refere ainda que os estereótipos de género tendem a perpetuar o status quo dos obstáculos herdados à consecução da igualdade entre homens e mulheres e a limitar o leque de opções de desenvolvimento pessoal e profissional das mulheres, impedindo-as de concretizar plenamente todas as suas potencialidades, enquanto indivíduos e agentes económicos, e constituindo, por conseguinte, fortes obstáculos à consecução da igualdade entre mulheres e homens; insiste na importância de promover a igualdade entre as mulheres e os homens desde a infância para lutar eficazmente contra os estereótipos; e Realça a necessidade de elaborar políticas que coloquem a tónica na desconstrução dos estereótipos de género desde a mais tenra idade.
 
 
Exemplo de materiais pedagógicos promotores de igualdade de género no pré-escolar: 
 
Para cumprimento da sua missão, a CIG editou os Guiões de Educação, Género e Cidadania, para todos os níveis de ensino que são instrumentos de apoio à integração das questões de género nas práticas educativas, com vista à eliminação dos estereótipos de género que predefinem o que é suposto um rapaz e uma rapariga fazerem. 
 
Face ao impacto deste Guiões no sistema educativo, a Comissão Europeia Instituto Europeu para a Igualdade de Género - considerou-os, em 2012, como uma Boa prática: 
 
 

 
 
Ricardo Araújo Pereira comprou os livros “para miúdos espertos e miúdas estúpidas”
TVI, 27-08-2017




Humorista arrasa a polémica da última semana com os blocos de atividades da Porto Editora e a opção do Governo em recomendar a retirada destes do mercado.



menino*menina




Truques pró menino e prá menina
Francisco Louçã, 29-08-2017

O [...] truque é o “deita-me poeira para os olhos”. É o caso dos “meninos e meninas”, que se tornou tema favorito da brigada neoconservadora e dos trumpificadores.




 Reconheço que o governo permitiu desastradamente a politização desse conflito com uma editora e não tenho nenhuma simpatia pela ideia de uma norma que defina livros aconselháveis. Mas a questão de saber se livros que apresentam os meninos como garbosos candidatos à aventura de piratas e as meninas como nenúfares caminhando para rainhas convêm aos nossos filhos, essa sim, diz mais sobre os pais do que sobre os filhos.




O PÚBLICO resumia assim os livros: “No conjunto das 62 actividades propostas, existem seis cuja resolução é mais difícil no livro dos rapazes e três que apresentam um grau de dificuldade superior no das meninas. Mas a maior parte das actividades reproduzem uma série de velhos estereótipos. Apenas alguns exemplos: eles brincam com dinossauros, com carrinhos e vão ao futebol, enquanto elas brincam com novelos de lã, ajudam as mães e vão ao ballet; eles pintam piratas, elas desenham princesas”.




O que é que se lê nos trumpificadores? Escândalo, as meninas até aparecem melhor tratadas do que os rapazes. Não percebo bem como é que essa distinção entusiasma esses pais (querem os filhos mal tratados?) e justifica que diferença de tratamento (acham que as meninas sonham e os meninos fazem?). Mas tenho um conselho para lhes dar: se pensam que as vossas filhas vão ser felizes com vestidos de princesas preparem-se para um choque. Elas vão querer mesmo ter uma profissão e uma vida.






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