Parecer Técnico da CIG relativo aos conteúdos dos Blocos de Atividades da Porto Editora
Lisboa, 23 de agosto de 2017
Assunto:
Parecer Técnico sobre os conteúdos dos Blocos de Atividades para Rapazes e para
Meninas dos 4 aos 6 anos - Porto Editora (2016)
1. Enquadramento
O
princípio da igualdade é um princípio fundamental da Constituição da República Portuguesa de 1976. Revisões posteriores
reforçaram alguns aspetos desse princípio, em particular a revisão de 1997 (Lei
Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro) e a revisão de 2005 (Lei
Constitucional n.º 1/2005, de 12 de agosto).
- Artigo 9.º: São tarefas fundamentais do Estado, entre outras, a promoção da igualdade entre homens e mulheres.
- Artigo 13.º: Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
A Comissão para a
Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) é o organismo nacional responsável
pela promoção e defesa da igualdade entre mulheres e homens, procurando
responder às profundas alterações sociais e políticas da sociedade em matéria
de cidadania e igualdade de género. Assim, é o organismo responsável por
garantir a execução das políticas públicas no domínio da cidadania, da promoção
e defesa da igualdade de género e do combate à violência
doméstica e de género e ao tráfico de seres humanos, cabendo-lhe a coordenação
dos respetivos instrumentos - os Planos Nacionais.
- Promover a educação para a cidadania e a realização de ações tendentes à tomada de consciência cívica relativamente à identificação das situações de discriminação e das formas de erradicação das mesmas;
- Elaborar recomendações gerais relativas a boas práticas de promoção de igualdade de género, designadamente ao nível da publicidade, do funcionamento de estruturas educativas, de formação e da organização da trabalho no sector público e privado, bem como atestar a conformidade com essas boas práticas;
- Receber queixas relativas a situações de discriminação ou de violência com base no género e apresentá-las, sendo caso disso, através da emissão de pareceres e recomendações, junto das autoridades competentes ou das entidades envolvidas.
Nota
‑ Seguem ainda, em anexo, algumas recomendações de organismos internacionais
que vinculam o Estado português.
2. Análise
técnica dos Blocos de Atividades para "Rapazes" e para "Meninas" (Porto Editora, 2016)
Alguns conceitos base
(In Guião de Educação Género e Cidadania- Pré-escolar, CIG, 2015. Ver também Madeline
Heilman (2001) e Conceição Nogueira e Luísa Saavedra (2007), citados na mesma
obra.)
Sexo: o termo sexo é usado para distinguir os
indivíduos com base na sua pertença a uma das categorias biológicas: sexo
feminino e sexo masculino (página 12).
Género: o termo género é usado para descrever
inferências e significações atribuídas aos indivíduos a partir do conhecimento
da sua categoria sexual de pertença. Trata-se, neste caso, da construção de
categorias sociais decorrentes das diferenças anatómicas e fisiológicas (página
12).
Assim, o termo sexo pertence ao domínio
da biologia e o conceito de género inscreve-se no domínio da cultura e remete
para a construção de significados sociais.
Estereótipos de género: os estereótipos constituem
conjuntos bem organizados de crenças acerca das características das pessoas que
pertencem a um grupo particular. Os estereótipos de género (mais do que
qualquer outro tipo de estereótipos), apresentam um forte poder normativo, na
medida em que (...) consubstanciam uma visão prescritiva, (...) dos
comportamentos (papéis de género) que ambos os sexos deverão exibir (página
26).
A nossa análise incidiu sobre as seguintes questões:
a) Reforço da
Segregação de Género:
A primeira reflexão sobre estes blocos
prende-se com a própria existência de dois blocos, um para o sexo masculino,
outro para o sexo feminino, ambos para o mesmo grupo etário (4 a 6 anos). Desde
logo, esta segregação não permite que as meninas tenham acesso às atividades
que são propostas para os rapazes, e vice-versa, reforçando assim as mensagens
que são transmitidas a cada um dos sexos.
Por outro lado, reforça-se ainda a segregação quando o bloco dos
meninos não prevê interação com meninas e vice-versa.
Parecer: Esta
segregação contraria o princípio de igualdade de oportunidades
independentemente do sexo a que se pertence.
Recomendação: As atividades
deverão estar contidas num único bloco de atividades para meninas e meninos dos
4-6 anos, tal como acontece no sistema de ensino em que os manuais são comuns
para meninas e meninos em cada grau de escolaridade, permitindo a umas e a
outros experimentar todas as possibilidades que a realidade oferece, para assim
poder fazer as suas escolhas de forma livre e informada.
b) Reforço
dos Estereótipos de Género:
Muito embora as atividades propostas
sejam, aparentemente, semelhantes, as ilustrações apresentadas diferem
consoante o sexo a que se dirigem, reforçando os estereótipos de género. A
escolha diferenciada do tipo de atividades a desenvolver por meninas e meninos,
constitui uma mensagem clara de reforço de papéis de género estereotipados,
contrariando os objetivos de eliminação gradual dos estereótipos sociais de
género que pré-definem o que é suposto ser e fazer um rapaz e uma rapariga,
condicionando, no futuro, as suas opções pessoais e profissionais.
A título de exemplo, refira-se:
- As capas, para além das cores diferentes (azul para "Rapazes" e cor-de-rosa para "Meninas") apresentam diferentes imagens que nos remetem para diferentes tipos de atividades, além de se referirem a eles por "rapazes" e a elas por "meninas". As dos meninos mais pragmáticas e de realização no exterior/espaço público (bolas, foguetões, carros, barcos, berlindes), as das meninas mais recatadas, viradas para o interior/espaço privado (bolos, adornos, bonecas, peluches).
- logo na primeira atividade, em que se pretende reconhecer e identificar a vogal A, a situação retratada na publicação dirigida aos meninos remete para atividades no exterior (campo, árvore, ancinho, águia, etc.), enquanto na publicação dirigida às meninas surgem cinco objetos todos eles ligados a atividades domésticas (leite, manteiga, iogurte, alface e maçã).
- uma atividade, em que se pretende reconhecer e identificar conceitos (triste e feliz), em que às meninas se propõe encontrar a sua boneca perdida no parque, e ao menino se propõe encontrar a escavadora com que brincava;
- uma outra atividade, destinada a desenvolver a motricidade fina e a coordenação oculomotora, às meninas propõe-se que pintem as unhas da mão apresentada no bloco (como faz a mãe), enquanto para os meninos é proposto que pintem um barco de piratas;
- uma outra atividade, destinada a promover a atenção e a concentração, (...) e identificar conceitos: de frente e de costas, as meninas são convidadas a pintar a imagem de um bailado a que terão ido assistir, e que é composto apenas por meninas bailarinas; no caso dos meninos devem pintar os jogadores de um jogo de futebol a que foram assistir com o pai;
- ou, ainda, outra atividade destinada a reconhecer e organizar uma sequência lógica-temporal, em que às meninas se propõe ajudar a mãe a preparar o lanche, e aos meninos que ordenem imagens de um cientista a construir um robô.
Parecer: A escolha deste tipo de imagens
diferenciadas para meninas e para meninos acentua estereótipos de género que
estão na base de desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos
homens na nossa sociedade, contrariando o princípio de igualdade de tratamento
e não discriminação entre mulheres e homens.
Recomendação: a revisão dos conteúdos deverá garantir que as imagens veiculadas nas
atividades, não reproduzem estereótipos de género discriminatórios. Por exemplo
uma só atividade poderá incluir meninas e meninos a pintarem um barco.
c) Diferenciação por sexo do grau de dificuldade das atividades:
As publicações apresentam ainda diferentes graus de dificuldade em
algumas das atividades propostas para meninas e meninos. Da nossa análise resulta que, do total das
atividades propostas, 6 têm resolução mais difícil no Bloco de Atividades para
meninos, enquanto apenas 3 têm resolução mais difícil no Bloco de Atividades
das meninas.
A título de exemplo:
- numa atividade em que se pretende que identifiquem quadrados de tamanhos diferentes, aos meninos é-lhes mostrado um conjunto de 16, enquanto que às meninas são apresentados apenas 6 quadrados;
- de referir, igualmente, uma atividade em que é pedida a distinção entre lápis e canetas, em que no caso dos meninos se encontram espalhados e misturados, e no caso das meninas estão já separados e arrumados em diferentes estojos;
- isto, além dos exemplos amplamente divulgados nas redes sociais e na comunicação social, do diferente grau de dificuldade dos labirintos apresentados nas atividades.
Parecer:
O facto de haver um maior número de
atividades com maior grau de dificuldade no Bloco de Atividades para meninos
poderá reforçar a ideia de que há desigualdade nas capacidades cognitivas de
meninos e meninas.
Recomendação:
Que se adote apenas 1 Bloco de
Atividades para crianças dos 4-6 anos para que todas possam praticar
todos os exercícios de igual forma.
A
Presidente
Teresa
Fragoso
Anexo
Algumas Orientações de Organismos
Internacionais que vinculam o Estado português:
Organização das Nações Unidas:
De acordo com a Plataforma de Ação de Pequim, os Governos devem incentivar e apoiar devidamente as organizações nos
seus esforços para promover mudanças nas
atitudes e práticas negativas para com as raparigas; desenvolver e
adotar curricula, materiais didáticos e livros escolares que ajudem a
melhorar a autoimagem das raparigas, a sua vida e as suas oportunidades de
emprego particularmente nas áreas onde as mulheres têm estado tradicionalmente
sub-representadas; e encorajar as instituições educativas e os media para
que adotem e projetem uma imagem equilibrada e não estereotipada das raparigas
e dos rapazes.
A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra
as mulheres {CEDAW) estabelece, no seu
artigo 10.º que os
Estados partes devem tomar todas as medidas apropriadas para a eliminação de
qualquer conceção estereotipada dos papéis dos homens e das mulheres.
Parlamento Europeu:
A Resolução sobre a eliminação dos estereótipos de género na União Europeia refere que os papéis tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres e os
estereótipos de género continuam a influenciar fortemente a divisão dos papéis
entre mulheres e homens no espaço doméstico, no local de trabalho e na
sociedade em geral, sendo as
mulheres frequentemente representadas como as pessoas que cuidam da casa e dos
filhos/as, enquanto os homens são representados como as pessoas que trazem
dinheiro e que protegem; refere ainda que os estereótipos de género tendem a perpetuar
o status quo dos obstáculos herdados à consecução da igualdade entre homens e mulheres e a limitar o leque de
opções de desenvolvimento pessoal e profissional das mulheres, impedindo-as de
concretizar plenamente todas as suas potencialidades, enquanto indivíduos e
agentes económicos, e constituindo, por conseguinte, fortes obstáculos à consecução da igualdade entre mulheres e homens; insiste na importância de promover a igualdade
entre as mulheres e os homens desde a infância
para lutar eficazmente contra os estereótipos; e Realça a necessidade de
elaborar políticas que coloquem a tónica na desconstrução dos estereótipos de
género desde a mais tenra idade.
Exemplo de materiais pedagógicos promotores de igualdade de género no pré-escolar:
Para cumprimento da sua missão, a CIG
editou os Guiões de Educação, Género e Cidadania, para todos os níveis de ensino
que são instrumentos de apoio à integração das questões de género nas práticas educativas, com vista à eliminação dos estereótipos de
género que predefinem o que é suposto um rapaz e uma rapariga fazerem.
Face ao impacto deste Guiões no sistema
educativo, a Comissão Europeia - Instituto Europeu para a Igualdade de Género - considerou-os, em 2012, como
uma Boa prática:
Ricardo Araújo Pereira comprou os livros “para miúdos espertos e miúdas estúpidas”
TVI, 27-08-2017
Humorista arrasa a polémica da última semana com os blocos de atividades da Porto Editora e a opção do Governo em recomendar a retirada destes do mercado.
Truques pró menino e prá menina
Francisco Louçã, 29-08-2017
O [...] truque é o “deita-me poeira para os olhos”. É o caso dos “meninos e meninas”, que se tornou tema favorito da brigada neoconservadora e dos trumpificadores.
Reconheço que o governo permitiu desastradamente a politização desse conflito com uma editora e não tenho nenhuma simpatia pela ideia de uma norma que defina livros aconselháveis. Mas a questão de saber se livros que apresentam os meninos como garbosos candidatos à aventura de piratas e as meninas como nenúfares caminhando para rainhas convêm aos nossos filhos, essa sim, diz mais sobre os pais do que sobre os filhos.
O PÚBLICO resumia assim os livros: “No conjunto das 62 actividades propostas, existem seis cuja resolução é mais difícil no livro dos rapazes e três que apresentam um grau de dificuldade superior no das meninas. Mas a maior parte das actividades reproduzem uma série de velhos estereótipos. Apenas alguns exemplos: eles brincam com dinossauros, com carrinhos e vão ao futebol, enquanto elas brincam com novelos de lã, ajudam as mães e vão ao ballet; eles pintam piratas, elas desenham princesas”.
O que é que se lê nos trumpificadores? Escândalo, as meninas até aparecem melhor tratadas do que os rapazes. Não percebo bem como é que essa distinção entusiasma esses pais (querem os filhos mal tratados?) e justifica que diferença de tratamento (acham que as meninas sonham e os meninos fazem?). Mas tenho um conselho para lhes dar: se pensam que as vossas filhas vão ser felizes com vestidos de princesas preparem-se para um choque. Elas vão querer mesmo ter uma profissão e uma vida.
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