O escritor brasileiro, homenageado da Festa Literária de Paraty, tem pela primeira vez uma biografia. Sabemos agora como era a sua voz, a sua imagem em movimento e uma sua famosa carta interdita “saiu do armário”.
No ano em que Mário de Andrade (1893-1945) é o autor homenageado da Festa
Literária Internacional de Paraty (FLIP), quando passam 70 anos depois da sua
morte e a alguns meses da entrada da sua obra em domínio público, em Janeiro de
2016, aquele que é considerado o “papa do modernismo brasileiro” tem finalmente
uma biografia.
Chama-se Eu sou Trezentos , título retirado
de um dos poemas do livro Remate de males (1930) - “Eu sou
trezentos, sou trezentos-e-cinquenta/ Mas um dia afinal eu toparei comigo...” -
e quer mostrar a diversidade da sua personalidade e da sua obra.
“Geralmente esta diversidade era seguida de um
esforço de unificação. Mas Mário de Andrade também experimentou a atracção da
dispersão e até anulação de si mesmo”, explica ao PÚBLICO Eduardo Jardim, autor
da biografia que acaba de ser publicada no Brasil, pelas Edições de Janeiro.
Mário de Andrade pertenceu ao grupo de modernistas que
participaram da Semana de Arte Moderna de 1922 que pretendia copiar, em São
Paulo, os festivais de arte que os franceses faziam no Verão. Depois deste
acontecimento, um grupo de artistas entre os quais os escritores Mário de
Andrade e Oswald de Andrade, as artistas plásticas Tarsila do Amaral e Anita
Malfatti e o poeta Menotti del Picchia formaram o que ficou conhecido como
“Grupo dos Cinco”.
O crítico literário brasileiro Alceu Amoroso Lima,
amigo de Mário de Andrade, dizia que ele “estava talhado fisicamente para agitador”.
No entanto para Eduardo Jardim, “o agitador nasceu em 1917, ano inaugural do
modernismo no Brasil, e perdeu todo o vigor no final de 1937, com a instauração
do Estado Novo”. Mas durante esses 20 anos, que vão de uma data a outra, Mário
de Andrade foi a figura central da vida intelectual do país.
Na biografia que acaba de publicar, Eduardo Jardim
defende que “nenhum escritor, nunca mais, teve como ele tanta importância como
artista, como formulador de uma interpretação do Brasil e como animador cultural”.
Ao PÚBLICO, explicou porquê. Primeiro, porque Mário de
Andrade elaborou o programa de renovação estética no “primeiro tempo” do
modernismo brasileiro em que se tratava de incluir o Brasil no cenário
artístico moderno. “Foi um período de intenso contacto com as vanguardas
europeias”, diz.
Por outro lado, também foi responsável pela
“reorientação do modernismo na direcção de uma afirmação dos traços
propriamente nacionais nas artes e na cultura”. Mário de Andrade acompanhou o
movimento de radicalização política nos anos 1930 e 1940 e a sua actividade
como gestor cultural, na direcção do Departamento de Cultura de São Paulo, foi
também importante: “Seu desafio foi fazer uma arte brasileira com uma linguagem
muito moderna. Lembra, de algum modo, Joyce, na Irlanda, com preocupações
semelhantes. Foi até hoje o escritor brasileiro com a visão mais ampla e
diversificada. Explorou todos os géneros. Teve uma compreensão muito aguda da
vida brasileira e do projecto moderno”, acrescenta o biógrafo, que está entre os
convidados da 13ª edição da Festa Literária em Paraty.
Esta quarta-feira à noite, o investigador para quem há
duas fases da vida adulta de Mário de Andrade - o período de agitador do
modernismo (1917-1937) e o das revisões da sua própria história e do movimento
modernista (1938 a 1945) – participa na sessão de abertura do festival
literário intitulada “As Margens de Mário”, ao lado da crítica literária
argentina Beatriz Sarlo e de Eliane Robert Moraes, professora de literatura da
Universidade de São Paulo que organizou a primeira Antologia da Poesia
Erótica Brasileira (ed. Ateliê), que vai ser lançada durante a FLIP.
Autor múltiplo e contraditório
Quando perguntámos a este investigador e bolseiro da Fundação Biblioteca
Nacional, depois de ter sido 40 anos professor da Pontifícia Universidade
Católica (PUC-Rio), como é possível que aquele que é considerado um dos mais
importantes intelectuais brasileiros só agora tenha uma biografia, e se é
verdade que Mário de Andrade era considerado um autor impossível de biografar
por se ter medo de processos judiciais pela divulgação de factos relativos à
sua opção sexual, Eduardo Jardim afirma que não.
Acredita, sim, que é difícil tratar de Mário de
Andrade pelo facto de este ser um autor múltiplo e até muitas vezes contraditório.
“É preciso acompanhar com muita simpatia uma personalidade tão rica e ao mesmo
tempo ser crítico”, diz o autor de Eu Sou Trezentos – Vida e Obra de
Mário de Andrade . E lembra que há muitos estudos sobre o autor de Pauliceia
Desvairada , alguns com preocupação biográfica, mas sempre abordando
períodos ou aspectos da biografia.
“Não acho que a homossexualidade tenha sido um
impedimento. Nunca tive problemas para abordar este assunto ou qualquer outro.
No caso da família de Mário, fui generosamente acolhido. Mas nunca sequer
pensei em pedir autorização para escrever sobre qualquer coisa. Nem entendo
como um escritor pode ter esta preocupação. Mário de Andrade denunciou muitas
vezes a hipocrisia no tratamento destes temas e as frustrações da repressão sexual.
Temos que nos inspirar nele”, diz o biógrafo que, no seu livro, comenta
passagens da obra de Mário de Andrade relativas à homossexualidade que aborda
no contexto da personalidade do escritor. “A obra mais destacada no tratamento
do amor entre homens é o contoFrederico Paciência , escrito ao longo de
quase vinte anos, publicado emContos Novos ”, lê-se na pág. 135 da
biografia.
A carta que saiu do armário
Mas todo o sururu à volta da sexualidade de Mário de Andrade acalmou na
quinta-feira, dia 18 de Junho, quando um excerto de uma carta enviada por Mário
de Andrade ao seu amigo, o escritor Manuel Bandeira, datada de 7 de Abril de
1928, foi finalmente revelada. Como disse, na altura, o escritor e jornalista
Humberto Werneck ao jornal Folha de São Paulo : “A famosa carta
proibida de Mário de Andrade saiu do armário – e isso não muda nada na sua
imagem e na sua obra. Mas finalmente põe fim às murmurações em torno de uma
questão que a pudicícia e a repressão só fizeram hipertrofiar”.
A carta que está depositada na Fundação Casa de Rui
Barbosa desde 1978, e que em parte já tinha sido publicada pelo poeta Manuel
Bandeira sem alguns parágrafos, estava interdita à consulta aos investigadores
por ser considerada do foro íntimo. Foi agora tornada pública depois de um
pedido de um jornalista da revista Época apoiado na Lei de
Acesso à Informação e por deliberação da Controladoria Geral da União (órgão do
Governo Federal responsável pela defesa do património público, transparência e
combate à corrupção), depois de uma disputa na justiça e de a consulta ter sido
anteriormente interditada pelo Ministério da Cultura.
Nela Mário de Andrade escreve ao amigo Manuel
Bandeira: "Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria pra nós ambos,
pra você, ou pra mim, comentarmos e eu elucidar você sobre a minha tão falada
(pelos outros) homossexualidade? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar o
muito de exagero que há nessas contínuas conversas sociais? Não adiantava nada
pra você que não é indivíduo de intrigas sociais. Pra você me defender dos
outros? (...) Mas si agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e
elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um
companheiro daqui, a sair sozinho comigo na rua (veja como eu tenho a minha
vida mais regulada que máquina de previsão) e si saio com alguém é porquê se
poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades platónicas, só
minhas. Ah, Manú, disso só eu mesmo posso falar, e me deixe que ao menos pra
você, com quem apesar das delicadezas da nossa amizade, sou duma sinceridade
absoluta, me deixe afirmar que não tenho nenhum sequestro não. Os sequestros
num caso como este onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha
de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis. Eis aí uns
pensamentos jogados no papel sem conclusão nem sequência. Faça deles o que
quiser".
Eduardo Jardim não ficou surpreendido com o conteúdo
da carta agora revelado. “A novidade da carta é que ela menciona a
impossibilidade para qualquer um de negar sua preferência sexual. A carta é de
grande beleza e traduz a nobreza de carácter de Mário de Andrade. A imprensa, é
claro, explorou muito esta história, mas quem conhece Mário de Andrade e é seu
leitor não se impressionou muito”, diz ao PÚBLICO.
No entanto, o biógrafo diz que foi bom este episódio
ter ocorrido para se chamar atenção para o facto de que os arquivos de uma
instituição pública devem ser acessíveis a todos. “Passado o episódio podemos
nos ocupar de todos os temas importantes levantados por Mário”, conclui.
A voz, o corpo e a casa
Ao longo dos últimos meses, que antecederam a Festa Literária Internacional de
Paraty o curador Paulo Werneck tem visto muita movimentação em torno de Mário
de Andrade. Recorda, por exemplo, que recentemente foi revelada a primeira
gravação da sua voz, cantando cantigas folclóricas do Nordeste. O áudio, uma
gravação que foi realizada no Rio de Janeiro em 1940, foi localizado pelo
musicólogo Xavier Vatin, na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.
O “agitador cultural” canta acompanhado pela voz da escritora Rachel de
Queiroz e da pintora Mary Pedrosa canções populares (Zunzum , Deus
lhe pague a santa esmola e Toca zumba ) para o linguista
norte-americano Lorenzo Turner. Os áudios, lado A e lado B, podem
descarregar-se gratuitamente no Instituto de Estudos Brasileiros.
VIDEO
Também foi agora recuperado Architectura
Modernista em S. Paulo , um documentário de arquitectura brasileira que
mostra a inauguração da casa modernista da rua Itapolis, projecto do arquitecto
Gregori Warchavchik, em 1930. Na abertura da Exposição de uma Casa
Modernista , dedicada à casa de Warchavchik, entre outras personalidades da
época, compareceu Mário de Andrade, sendo este o único registo de imagem em
movimento do escritor. O filme foi encontrado no acervo da Biblioteca da
Faculdade de Arquitectura e Urbanismo de São Paulo e pode ser visto na
Intermeios. É a preto e branco, sem som, uma produção Rossi Film. Ea casa onde Mário de Andrade viveu no final da sua vida, na rua Lopes Chaves,em São Paulo, foi restaurada e transformada em um pequeno museu .
Livros inéditos, como o romance Café , em
que trabalhou durante anos, foram lançados pela editora Nova Fronteira e além
da biografia de Jardim está a ser preparada outra por Jason Tércio, que se
chamará As Vidas de Mário de Andrade .
O investigador Eduardo Jardim acha que nunca houve uma
Festa Literária Internacional de Paraty em que a figura do homenageado fosse
tão discutida. É uma excelente oportunidade para rever a importância de Mário
de Andrade. “Temos que nos aproximar dele, mas, é claro, sabendo que não somos
seus contemporâneos. Suas preocupações são ainda nossas - a invenção permanente
em arte, a singularidade da cultura brasileira, o conteúdo social da arte - mas
temos que formular tudo isso com critérios nossos”, conclui o biógrafo.
ISABEL COUTINHO (em Paraty), Público , 01/07/2015 - 13:34
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