quarta-feira, 28 de março de 2012

HOMOSSEXUALIDADE NO ROMANCE PORTUGUÊS

Ensaio sobre a Angústia, Ed. Gradiva, 2012.
 
Joaquim Almeida Lima
  
João tem cinquenta anos e não se lembra de viver sem angústia. Logo em criança, nos mais simples episódios da vida, ela está presente, desgastando-o emocionalmente. Tudo se adensa quando percebe, já adolescente, que é homossexual. Na vida de João, a angústia é o sentimento que domina e o domina, e o que ele mais deseja é ter momentos de paz e serenidade, com a ajuda de quem com ele caminha de mão dada. A vida é mais das vezes uma dura prova, que merece ser contada.




A PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO VIU CAIR DOIS TABUS LIGADOS AO ROMANCE DE COSTUMES

Evidenciando o hedonismo presente na nova narrativa portuguesa, expressão de um Portugal cosmopolita, plural e multicultural, a primeira década do século viu cair dois tabus ligados ao romance de costumes. O primeiro relacionado com a narrativa sobre a homossexualidade: Eduardo Pitta (Persona, 2000; 2ª ed. 2007, e Cidade Proibida, 2007), Frederico Lourenço (Pode um Desejo Imenso, 2002, O Curso das Estrelas, 2002, e À Beira do Mundo, 2003) e Henrique Levy (Praia Lisboa, 2010) fizeram cair o tabu relativo à descrição e narração de cenas homossexuais. O segundo, a narrativa sobre a heterossexualidade: Manuel da Silva Ramos, evidenciando a primeira "D. Juan" feminina no romance português, uma norueguesa, em O Sol da Meia Noite (2007), José Couto Nogueira (Táxi, 2001, Vista da Praia, 2003, e sobretudo Pesquisa Sentimental, 2008), Manuel Dias Duarte (D. Giovanni em Lisboa, 2009, romance sobre o ciúme) e Fernando Esteves Pinto (Conversas Terminais, 2000, Sexo entre Notícias, 2003 e Privado, 2008), desocultaram de um modo absoluto o tema da descrição dos atos heterossexuais. Em ambos os casos, estamos longe do império da pornografia, luxúria de textos e imagens destinadas a exclusivo consumo comercial e, portanto, ao enriquecimento dos seus autores.


A estes autores, que ousaram abrir um novo horizonte temático no romance português contemporâneo, junta-se Joaquim Almeida Lima e o seu livro Ensaio sobre a Angústia, narrativa sobre a experiência vivencial de um arquiteto homossexual, João. No caso deste romance, acrescem aos sentimentos de culpa e de vergonha pela emergência da homossexualidade na adolescência a uma permanente sensação de angústia, opressora física do peito, suavizada, primeiro, pelos ansiolíticos que João furtava à mãe, depois por medicamentação mais forte.
Expressão estética de um corpo com necessidades sentimentais e sexuais diferentes e reflexo de uma sociedade que, ainda que aberta, possui nítidas dificuldades morais em lidar com este tipo de diferença, Ensaio sobre a Angústia retrata com perfeição a dificílima libertação do homossexual do jugo de uma sociedade moralmente complexada e preconceituosa. Com efeito, no momento da libertação, quando João e Pedro compõem um casal perfeito, preparados para o gozo da lua-de-mel nos Açores, dá-se um acontecimento trágico (que não revelamos por constituir o nó central da intriga, narrado apenas a sete páginas do final, o que retiraria ao leitor grande parte do prazer da leitura), que enegrecerá para sempre a existência de João, avivando-lhe continuamente o sentimento de ansiedade.

Ensaio sobre a Angústia é narrado em dois tempos cruzados, diferenciados pelo corpo da letra, em redondo e negro: um que perfaz a formação de João (escola secundária; Faculdade de Belas Artes; duas iniciais experiências sexuais clandestinas, propiciadas por anúncios de jornais, uma graciosa, por prazer, outra paga a um estudante universitário que se prostitui para sobreviver; relação afetuosa com a mãe, sempre compreensiva face ao roubo dos seus medicamentos pelo filho; vergonha de confessar ao pai, à irmã e a Luís, seu melhor amigo, a sua inata condição de homossexual); outro, 20 anos depois, o tempo presente do romance, suavizando a contínua ansiedade através dos abraços de Pedro e da serenidade transmitida por uma gaivota que pousa perto da casa de João ao fim da tarde.
O romance evidencia, num primeiro momento, o sentimento de exclusão do homossexual na cidade, forçando-o a encontros clandestinos e a remeter-se a bares marginalizados; num segundo momento, a luta épica de João contra essa exclusão, antes de mais o seu combate para a integração na normalidade familiar; e num terceiro momento, como motor da totalidade da ação narrativa, o direito ao reconhecimento familiar e social de João.

Nestes três momentos, João conta sempre com o apoio incondicional e afetuoso da mãe (que apenas reage hesitantemente quando o filho lhe confessa ter tido duas experiências sexuais com homens) e com o apoio especializado de António, o psiquiatra da tia, por quem João se apaixona, cumprindo o clássico transfert assinalado por Freud. Para além do final trágico, motor retrospetivo da totalidade do romance, o momento culminante do romance, muito bem narrado, sem falsos pudores nem ostentações voyeuristas, assenta no encontro entre João e Pedro numa sauna frequentada pela comunidade homossexual.

Romance psicológico, o universo social restringe-se ao campo familiar e às relações de João com Luís e Pedro, ambos arquitetos. Da vida exterior ao homossexualismo de João, sabe-se apenas ser o pai simpatizante da vertente do catolicismo progressista anterior ao 25 de Abril de 1974. Neste sentido, o campo semântico possui sempre um timbre psicológico (leque de sentimentos vinculados à angústia e à exclusão social), dominado por um vocabulário eminentemente urbano e atual. Nem mesmo é abordado o léxico profissional ligado à arquitetura.

Miguel Real, 15-03-2012.

1 comentário:

João Roque disse...

Obrigado por esta dica.