o profeta Jonas por Michelangelo, Capela Sistina |
A
TRUSSE DO PROFETA
Por:
Frederico Lourenço
A
terminologia da roupa interior masculina em língua portuguesa é muito ingrata.
Como devemos chamar ao artigo de vestuário que nós, homens, vestimos debaixo
das calças? "Cuecas" é péssimo; "trusse" ainda é pior.
Hoje, em desespero de causa, todos dizemos "boxers", mas já se está a
ver que a palavra não é portuguesa (e "trusse" também não é).
Quem
traduz textos antigos que se situam no nível do Sublime - como Homero e a
Bíblia, textos que tenho o privilégio de conhecer bem - fica sempre desarmado
quando depara com este problema de terminologia. É que os heróis de Homero
vestiam "boxers", tal como nós. E as figuras que se nos deparam na
Bíblia também. Ouvimos falar, de forma famosa, da trusse do profeta Jeremias; e
também é feita alusão aos "boxers" (digamos assim) de São Pedro em
duas passagens do Novo Testamento.
Quando
traduzi a Ilíada, dei-me conta deste problema num verso em que se referem as
cuecas de Menelau no Canto 4 (v. 187). A palavra em causa é "zôma" (ζῶμα) e,
sem saber como falar de cuecas em registo épico, optei por traduzir a palavra
por "cinturão", achando que dava um som bastante imponente, másculo e
digno. Esta palavra "zôma" é o substantivo correspondente ao verbo
"zônnumi" (ζώννυμι), que significa "vestir uma trusse", que
é utilizado no Canto 24 da Odisseia (v. 89), quando se fala de atletas a
equiparem-se para proteger a zona genital (do mesmo modo na Ilíada, no v. 683
do Canto 23).
Este
mesmo verbo ζώννυμι, com o sentido presumível de "vestir os boxers",
aparece no final do Evangelho de João, quando Jesus diz a Pedro (João 21:18)
que «vestias-te» e «outro te vestirá», usando justamente o verbo ζώννυμι em
duas das suas três ocorrências no Novo Testamento. O mesmo verbo é usado pelo
anjo que fala com Pedro nos Actos dos Apóstolos (12:8).
O
assunto complica-se bastante quando temos de o enfrentar no livro de Jeremias,
no Antigo Testamento. Aí surge-nos também a palavra para trusse
("perízôma"), que optei por traduzir por "tanga"
(equivalente à palavra alemã "Schurz", que é o sentido próprio, nos
grandes comentários e dicionários alemães, da palavra grega que ocorre no
Antigo Testamento). No início do capítulo 13 de Jeremias, Deus diz ao profeta:
"Vai e adquire para ti uma tanga de linho e coloca-a à volta da tua
cintura; e por água ela não passará".
Bom,
eu sei o que vocês estão a pensar. Não lavar a tanga? Mas não vamos por aí, já
que todos sabemos como estes temas na Bíblia são alegóricos. Deus não está a
falar em cuecas verdadeiras, certo? É tudo uma metáfora. O que se entende,
então, pela palavra hebraica "ezor" e pela sua versão grega
"perízôma"?
A
alegoria é explicada pelo próprio Deus de Israel no texto de Jeremias, quando
Ele diz: "tal como se cola a tanga à volta da cintura do homem, assim
colei a Mim a casa de Israel e toda a casa de Judá" (Jeremias 13:11).
Portanto, seguindo até às últimas consequências o sentido da metáfora, os fiéis
são para Deus o que a trusse é para o homem.
Deixo
a explicação destas alegorias com roupa interior masculina aos teólogos. De
forma mais pragmática: como seria o aspecto, o desenho, dessa coisa bíblica e
homérica que os homens vestem debaixo da roupa?
Michelangelo,
homem ultra-sensibilizado em relação a tudo o que se relaciona com o corpo
masculino, resolveu-nos esse enigma no retrato que fez do profeta Jonas na
Capela Sistina. É certo que a Bíblia nunca nos fala da roupa interior de Jonas;
e também é certo que, no retrato que fez de Jeremias na mesma Capela Sistina,
Michelangelo se absteve por completo de mostrar a roupa interior do venerando
profeta, que ele representou vestido com roupa quase até aos pés (calçando, ao
que se diz, as próprias botas do Michelangelo). No entanto, é a Jeremias que
Deus manda vestir a tanga que nunca passará por água. Depois ordena-lhe que a
dispa e que a esconda no buraco de uma pedra (Jeremias 13:4).
Deixem-me
só acrescentar mais isto: o profeta conta como foi, depois de muitos dias, à
procura da tanga que tinha escondido no buraco da pedra. "E eis que estava
destruída. O que não será vantajoso para nada". Pois.
Coimbra, 2017-11-29, https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1948729488710297&set=a.1467959723453945.1073741829.100007197946343&type=3&theater
Jeremias de Michelangelo, totalmente vestido |