segunda-feira, 17 de julho de 2017

O que é politicamente correcto?








O que é politicamente correcto?

Algumas frases lidas ao calhas no FB ao longo do fim-de-semana levaram-me a tentar perceber o que será, na minha própria definição, "politicamente correcto".

De todas as frases lidas, a que mais me ficou na cabeça foi a de uma senhora que, algures num comentário a um dos milhentos posts sobre as declarações de um médico sobre a homossexualidade, escreveu: "eu não 
me importo de ser politicamente incorrecta, pois sou católica e acho que as verdades são para se dizer".

Não foi a primeira vez que me apercebi de que, na cabeça de muitas pessoas, "politicamente correcto" significa algo que uma determinada esquerda (ou "lobby gay") impôs como estratégia atentatória da liberdade de expressão. Para essas pessoas, o "politicamente correcto" é um conjunto de atitudes "à la mode", que ferem a "verdade" dos valores cristãos e impõem, como novo dogma, um conjunto de "factos alternativos" (amplamente refutados pela Bíblia), entre os quais, em primeira linha, se colocam questões como as da igualdade de direitos para pessoas tanto hetero como homossexuais.

Na minha cabeça, não sinto assim o "politicamente correcto". Para mim, ser politicamente correcto é perceber que há muitas áreas da vida humana em que um país que se rege segundo o modelo da democracia ocidental vai colidir de frente com crenças religiosas (sejam elas judaicas, cristãs ou islâmicas). E nessas situações de embate, o que tem de prevalecer é o que está consignado na lei do meu país - e não o que está na Bíblia ou no Corão.

Se eu, como cristão convicto, regesse o meu discurso por aquilo que é a "verdade" da Bíblia, nada me impediria de ser "politicamente incorrecto" e dizer, com toda a "liberdade de expressão", que as mulheres não podem falar em público e que têm de se submeter aos homens (1 Timóteo 2:12); que não há mal nenhum na escravatura (passim) e que os escravos têm é se ser bons escravos e de obedecer aos seus donos, mesmo aos que lhes infligem maus tratos (1 Pedro 2:18); que os gays devem ser condenados à morte (Levítico 20:13); que o genocídio é legítimo aos olhos de Deus (1 Samuel 15:3), etc.

No entanto, afirmando todas estas coisas com a liberdade de expressão a que tenho direito neste Portugal ainda não "tiranizado pelo politicamente correcto" estou a contradizer os valores e princípios em que a Constituição do meu país se funda. País esse que não é só para católicos fundamentalistas - ou judeus, ou muçulmanos: é para todas e todos, crentes e ateus. 

Politicamente correcto, para mim, é o que é correcto politicamente: a igualdade de direitos para todas e todos (independentemente de cor, religião ou orientação sexual), a condenação da escravatura, a recusa absoluta da pena de morte. Se estes valores - correctíssimos, politicamente - colidem com a religião de alguns, o problema, no meu entender, está na religião.


Frederico Lourenço, 2017-07-17, https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1893949590854954&set=a.1467959723453945.1073741829.100007197946343&type=3&theater




 






Levar a fé para o emprego - ou como não ler a poesia de Safo

O sol não "nasce" nem se "põe"; é o girar da terra (que não é plana!) que ocasiona a transição da noite para o dia. No entanto, esta não é a mundividência da Bíblia. Como professor de Universidade de Coimbra, se eu disser aos meus alunos que a terra está fixa e que, tal como nos dá a ver a Bíblia, é o nascer e pôr do sol, que anda à volta dela, que ocasiona a transição do dia para a noite, sujeito-me a que seja feita uma participação contra mim às entidades competentes da minha faculdade. 

Desde ontem não sai da minha cabeça uma aula a que assisti como aluno de licenciatura, no remoto ano lectivo de 1986-1987. A pessoa a quem fora incumbida a regência dessa cadeira professava uma versão fundamentalista de cristianismo e nunca esquecerei como, numa aula dedicada a Safo, nos foi dito a nós, alunas e alunos, que o lesbianismo especificamente e a homossexualidade em geral eram fruto de uma educação deficiente por parte dos pais, mas que eram comportamentos "corrigíveis".

Eu tinha na altura vinte poucos anos e se, por um lado, fiquei incomodado com esta maneira de retratar a homossexualidade, por outro lado não deixei de sentir surpresa pelo facto de alguém mencionar tal tema em sala de aula. Nós, que estudávamos pelos manuais de Maria Helena da Rocha Pereira sobre cultura grega, já nos tínhamos apercebido do modo como, na bibliografia da distinta helenista, a homossexualidade grega tinha sido votada à não existência. Mesmo na famosa antologia "Hélade", não deixa de ser espantoso como toda a poesia homoerótica de Safo foi simplesmente arredada da selecção. Aqueles que são, para muitos helenistas, os mais extraordinários poemas líricos de toda a história da literatura grega estão ausentes da mais importante antologia de literatura grega existente em português.

No caso de uma aula de literatura grega, o facto de o professor levar a sua fé cristã para o emprego pode ocasionar situações como as que recordei acima, mas digamos que não estamos a lidar com um caso de vida e de morte. Fora da sala de aula, a fé levada para o emprego também pode criar situações constrangedoras, mas na maior parte dos casos não passa de momentos meramente propiciadores de vergonha alheia. Tenho assistido a situações em reuniões universitárias ao longo dos meus 27 anos de docência em que colegas meus, com base na sua crença religiosa, já defenderam publicamente coisas bastante extraordinárias (até já ouvi a defesa de um ensino SUPERIOR que segregasse rapazes e raparigas, "como se faz nalguns excelentes colégios" - não vale a pena especificar quais são os colégios...). 

No entanto, a situação pode ser diferente (e bem menos risível) quando um profissional de saúde leva a sua fé para o consultório ou para o hospital. Eu não tenho qualquer problema em ser tratado por um médico ateu, cristão, muçulmano, judeu, budista ou hindu: tenho o maior respeito por todas as religiões e pela fé sentida pelas pessoas (profissionais de saúde e outras) que as professam. Mas tenho um problema se eu sentir que, na actuação do profissional de saúde, a religião prevalece sobre a medicina; a crença sobre a ciência.

Ultimamente, temos assistido a casos de gritante obscurantismo científico que têm por foco a homossexualidade. Houve o caso da psicóloga católica; houve o caso do psicólogo televisivo; houve as afirmações causadoras de profundo mal-estar proferidas por um médico no semanário Expresso de ontem. Tem-se colocado a questão do "já não se pode dizer nada!" ou, mais ridículo ainda, de que o "politicamente correcto está a matar a liberdade de expressão".

Eu tenho plena liberdade (quem é que me vai calar?!) de afirmar em qualquer sala de aula da Universidade de Coimbra que o sol anda à volta da terra porque é isso que corresponde à mundividência da Bíblia. E posso dizer às minhas alunas e alunos que o lesbianismo de Safo foi fruto da má educação que ela recebeu dos pais, mas que teria sido corrigível se ela tivesse vivido na era cristã. 

Mas também tenho de aceitar as consequências destas minhas afirmações. E de me sujeitar a inevitáveis participações contra mim aos órgãos competentes da minha faculdade, acusando-me de, ao trazer a minha fé para dentro da universidade, eu desprestigiar não só a minha instituição, mas a própria profissão de professor universitário.

Frederico Lourenço, 2017-07-16, https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1893629737553606&set=a.1467959723453945.1073741829.100007197946343&type=3&theater






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