Em que
estarias a pensar quando me pegaste ao colo? Sei que torceste um pé, tais os
pulos de contentamento por eu ter nascido, naquele dia de Natal. Olha que bela
prenda a Vida te deu! Que planos terias para mim? Os pais projectam-se nos
filhos, bem o sabes, naquele tempo queriam-nos formados em
“económico-financeiras” ou, se o dinheiro não desse para os botar na faculdade,
que fossem parar a um banco, que assim estaria garantida uma vida com algum
desafogo. Deve ter sido um choque para ti quando anos mais tarde, tinha nove
não o esqueci, apareceste lá em casa para nos ver e te disseram que do que eu
gostava era de teatro, de ópera, de música e bailado clássicos… A mãe
esqueceu-se de te dizer que também já era apaixonado por livros, tal como ela;
neles esquecia as horas e entrava em mundos diferentes e desafiadores. Andava a
ler o “Malhadinhas” e às voltas com o dicionário e as palavras de Aquilino.
Lembras-te de como reagiste? Recordo-o, como se o tivesses acabado de dizer:
“então temos um maricas na família!”. Apesar dos tempos serem de calar a
diferença, já havia percebido que eram alguns homens que faziam pulsar o meu,
ainda pouco decifrável, desejo.
Tinhas
razão! Bendita mariquice essa de procurar o Belo, nas palavras dos escritores,
nas tintas dos pintores, na música dos compositores, em todos aqueles que nunca
acabam, independentemente do género. Nessa procura sempre fui feliz, por me
desafiar, inquietar e acrescentar. Pela Arte sou melhor e quero sempre mais,
numa avidez que não se esgota, antes se renova ou complementa. O maricas fez-se
homem, balizando-se em valores que considera justos e universais, pouco ligando
ao juízo dos de fora, quando o único que me interessava, o da mãe, escutei-o
aos dezoito, já eu era por minha conta e risco: “só quero que sejas feliz!”.
No
trabalho me cumpro, diariamente, sabendo que se a Vida me der limões, limonada
farei e se puder ainda lhe acrescento açúcar. Quero ser dos que com
conhecimento, inteligência, coração e paciência procuram melhorar a grosseria
dominante, para não me arrepender do que fiz do meu tempo, quando este se tiver
finado.
Quando
pego na nossa foto, a única que tenho de ti, vejo-me de sobrolho carregado como
que a questionar-te: quem és? como és? Passaram sessenta e dois anos e não
tenho respostas. Há vínculos que não se podem adiar. Não foste pai, o meu pai,
porque não quiseste, não soubeste ou não te deixaram ser! E eu, não fui filho,
o teu filho. Estamos quites! Pena que tal facto não me sossegue, já que tudo
ficou por dizer!
Manuel Luís Goucha, "Carta a meu pai", http://cabaredogoucha.pt/carta-a-meu-pai/, 2017-03-24
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