sexta-feira, 31 de março de 2017

O Marido do Homem







O Marido do Homem


Por André Nassife, Coimbra, 2017-03-31.


 


Num dia qualquer dum mês de que já me esqueci, em 2003, sentei-me no sofá à frente da poltrona onde ele estava e comecei a falar. Contei-lhe do meu fim-de-semana e que o VBR tinha, finalmente, ido lá a casa: conheceu Mãe, Avó e Irmã. Houve almoço e ida ao cinema – todos juntos. No relato, eu falava no VBR por alto, como se me esquivasse de mencionar o seu nome e o que ele era meu. Em dado momento, fui tão superficial que o meu interlocutor interveio: “de quem você está falando?”


Respondi: “do V.”


“ah… o seu namorado?” – provocou.


“Não. Não é meu namorado. Homem não namora homem!” – odiei que me tivesse atirado aquela realidade à cara.


Entre tantas coisas que ouvi naquela tarde da boca do meu analista, que permanecem aqui omissas pois não fariam sentido a mais ninguém se não a mim, ficou-me na memória, além da percepção clara do meu próprio preconceito, a cena do meu analista ali, um homem heterossexual, à minha frente, a dizer com o indicador da mão direita em riste que “homem namora homem, SIM!”


O processo continuou e continua ao longo de todos estes anos, num desfazer e refazer que me tem permitido ser quem sou, como se fosse eu a personagem de “Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu.
Reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo.
Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo” que Fernando Pessoa assinou com a mão do heterónimo que me fascina tanto quanto me amedronta.

Eu não poderia jamais imaginar que, 14 anos após aquele diálogo, eu entraria no auditório da Culturgest para que o homem com quem casei recebesse o Prémio Pessoa 2016, o prémio exclusivamente nacional mais importante, no âmbito das artes ou das ciências, que um português pode receber. Entrámos lado ao lado, entre aplausos, e sentámo-nos na primeira fila para que se desse inicio à cerimónia.



Antes disso, tínhamos passado por alguns protocolos onde houve apresentações: “Frederico Lourenço e o marido, André Nassife.” – ouvimos isto diversas vezes. Ouvimos até diante do próprio Presidente da República, que nos cumprimentou de maneira natural, sem distinções e sem exageros na simpatia, que denunciariam uma possível hipocrisia e a vontade de disfarçar o preconceito. Não. Não houve nada.


Fosse eu uma mulher, fosse o Frederico uma mulher - fôssemos, os dois, mulheres - sinto que teríamos recebido o mesmo tratamento.


Já no auditório, seguiram-se os discursos. O do Frederico e o do Presidente já se encontram on-line e podem ser vistos na íntegra. Porém, ressalvando a importância de todos os discursos daquela noite, devo ser sincero em dizer que aquele que mais significou para mim, em termos de conquista social, foi o do Francisco Pinto Balsemão, que para além de reconhecer o valor do trabalho do Frederico e, mais do que isso, reconhecer a sua real intenção, fez questão de dizer ali, diante de uma expressiva parcela de personalidades e anónimos da sociedade deste país, com toda a naturalidade, que reconhecia e apreciava a dedicação com que o Frederico falava frequentemente do seu casamento com o seu marido – e usou mesmo esta palavra, “marido” – André Nassife.


Se as palavras do Francisco Pinto Balsemão surpreenderam, não menos surpresa me causou o facto da audiência não demonstrar qualquer reação. Não houve sussurros entre os espectadores ou movimentações nas poltronas que demonstrassem desconforto por parte dos ouvintes, contrariamente a uma sessão onde o Frederico foi convidado no Teatro da Cerca de São Bernardo, em 2015, e que pôs toda a gente na plateia aos burburinhos e quase aos saltos nos assentos quando o entrevistador fez uma pergunta que começava com “Acha que por ser homossexual… ?”


Em meio aos contra-ataques que vamos fazendo por aqui e por ali em resposta à homofobia nossa de cada dia, acho válido que a parte da sociedade que evoluiu para o lado bom mereça reconhecimento. Estão, inegavelmente, a ajudar a escrever no inconsciente coletivo de uma gente as primeiras linhas daquilo que é um tempo bom na nossa História.


Ao mesmo tempo, todas as paradas de orgulho, todas as manifestações contra a homofobia terão eternamente o nosso apoio, e acreditamos que o movimento deve sempre existir. Não juntamos as nossas vozes à daqueles que se posicionam contra os movimentos de afirmação sexual, racial e de género, e que usam o argumento “quem quer ser igual não celebra diferença”. Simplesmente porque sabemos que a sociedade ainda considera uns mais iguais do que outros. Porque não pomos em pé de igualdade grupos cuja história desconhece na pele o que é preconceito com grupos que, ainda hoje, não se reergueram das injustiças que um dia lhe foram cometidas. Celebraremos sempre as chamadas diferenças, porque sabemos que ainda há quem as sinta como diferenças. E porque temos presente que todas as conquistas que esses grupos conseguiram, depois de séculos, conseguiram-nas através de muita luta, suor, sangue, vida e morte.


Contudo, acho bom que ambos os lados existam. Que existam tanto aqueles para quem as lutas aparentem já não mais fazer sentido algum, e que agem tão naturalmente diante das mudanças, como aqueles que ainda mantém viva a memória de um passado, e denunciam o horror que ainda persiste.


Trocando brevemente de assunto, não posso deixar de referir a casualidade dos últimos acontecimentos. 
Explico: um dia, uma sexagenária analfabeta entregou ao seu neto uns livros velhos, comprados por ela num “sebo” (alfarrabista no Brasil), pois a velhinha não queria que o neto seguisse os mesmo passos dela.


O miúdo achou tudo muito desinteressante e chato, com exceção a um livro de poesias onde, ali, ainda miúdo, leu Alberto Caeiro pela primeira vez e aquele que se tornaria no seu poema preferido: um que falava do vento e da solidão.


Eu não me digo apaixonado por Literatura. Não mesmo. Amo Pessoa. Amo Clarice. Amo Sophia. E gosto muito de algumas coisas que outros escreveram. Não me considero amante de Literatura. Sou amante daquelas mentes e das obras que essa mentes produziram - Isso, sim. Foi na escrita de Pessoa (e só porque era do Pessoa) e na Música Popular Brasileira (Elis, como sabem, acima de tudo) onde eu encontrei saúde mental e fugi da loucura, enquanto me formatavam para ser como o mundo ao redor de mim, programado para repelir e odiar o que, em mim, era natural. O que era eu.


E foi nesses cruzamentos de factos e sei mais lá o quê que está por trás disto tudo, após uns copos de vinho branco, e sentindo já os seus efeitos, à mesa do Jantar após a cerimónia na Culturgest, que pensei comigo mesmo: “que-se-dane-a-etiqueta”, e saquei o telemóvel do bolso e tirei esta foto.




Pessoa estava ali, à mesa comigo, à minha frente, entre o Homem com quem casei e o Presidente da República. Lembrei-me do meu preconceito aprendido de anos atrás, percebi (in vino veritas), mesmo já me julgando não preconceituoso e moderninho, mesmo já casado, que ainda havia resquícios em mim do preconceito tão claro com que deparei há quatorze anos; ou eu não teria, desde o casamento, optado por usar “companheiro” em vez de “marido”, através da boba ilusão na cabeça de que “companheiro” soava mais bonito.


Poeta, como é que eu ainda não tinha aprendido? 
Logo eu que, conhecendo razoavelmente bem a sua obra e a sua vida, consegui sempre perceber qual é a sua posição acerca destas questões!


Você, tão sempre à frente.


Gosto de pensar, Poeta, caso tivesse estado connosco naquele jantar, que teria dado muitos parabéns ao Frederico. Tê-lo-ia encorajado mais e mais a continuar o seu trabalho, e agradeceria o esforço em fomentar o ensino das línguas e culturas clássicas; mas – e talvez aqui seja o egocentrismo a falar mais alto – acredito que teria dado especial atenção à mudança da sociedade portuguesa desde que você se foi. 
Acredito que estaria com muitos pensamentos sobre um certo alguém: o marido do homem, ali, tão naturalmente marido.


Creio que estaria feliz com essa mudança. Sem sorrir, mas feliz.


E é maravilhoso, Poeta, que o prémio carregue o seu nome. É emblemático! E ouso dizer que há qualquer coisa de divino nisso.


Naquela noite, quando ajudava a levar o prémio com o seu nome para o carro, uma aresta fina, pouco limada, cortou o meu dedo indicador que começou imediatamente a sangrar. Eu tinha bebido um pouco além do meu habitual, bem me lembro, mas foi de um prazer enorme imaginar que fazíamos ali um pacto de sangue. Como faziam os miúdos que eram muito amigos antigamente, ou mesmo namoradinhos. Furavam, cada um, o próprio polegar, e uniam-nos pelas gotas de sangue que brotavam dos furos.


O corte não foi fundo, mas deixou-me o dedo a latejar durante horas.
Não consegui dormir durante toda a madrugada. Havia muitas pessoas e Pessoa em quem pensar e agradecer.


Se com o meu analista, há quase década e meia atrás, aprendi que “homem namora homem”, foi VOCÊ, Poeta, sem que ninguém visse, que me sacudiu naquela mesa de jantar e me fez perceber, numa profundidade até então desconhecida de consciência, algo tão maravilhoso na minha vida:


Eu sou Marido daquele Homem.


https://www.facebook.com/andrenassife/posts/10212885534838899





domingo, 26 de março de 2017

CARTA A MEU PAI, por Manuel Luís Goucha



Em que estarias a pensar quando me pegaste ao colo? Sei que torceste um pé, tais os pulos de contentamento por eu ter nascido, naquele dia de Natal. Olha que bela prenda a Vida te deu! Que planos terias para mim? Os pais projectam-se nos filhos, bem o sabes, naquele tempo queriam-nos formados em “económico-financeiras” ou, se o dinheiro não desse para os botar na faculdade, que fossem parar a um banco, que assim estaria garantida uma vida com algum desafogo. Deve ter sido um choque para ti quando anos mais tarde, tinha nove não o esqueci, apareceste lá em casa para nos ver e te disseram que do que eu gostava era de teatro, de ópera, de música e bailado clássicos… A mãe esqueceu-se de te dizer que também já era apaixonado por livros, tal como ela; neles esquecia as horas e entrava em mundos diferentes e desafiadores. Andava a ler o “Malhadinhas” e às voltas com o dicionário e as palavras de Aquilino. Lembras-te de como reagiste? Recordo-o, como se o tivesses acabado de dizer: “então temos um maricas na família!”. Apesar dos tempos serem de calar a diferença, já havia percebido que eram alguns homens que faziam pulsar o meu, ainda pouco decifrável, desejo.

Tinhas razão! Bendita mariquice essa de procurar o Belo, nas palavras dos escritores, nas tintas dos pintores, na música dos compositores, em todos aqueles que nunca acabam, independentemente do género. Nessa procura sempre fui feliz, por me desafiar, inquietar e acrescentar. Pela Arte sou melhor e quero sempre mais, numa avidez que não se esgota, antes se renova ou complementa. O maricas fez-se homem, balizando-se em valores que considera justos e universais, pouco ligando ao juízo dos de fora, quando o único que me interessava, o da mãe, escutei-o aos dezoito, já eu era por minha conta e risco: “só quero que sejas feliz!”.

No trabalho me cumpro, diariamente, sabendo que se a Vida me der limões, limonada farei e se puder ainda lhe acrescento açúcar. Quero ser dos que com conhecimento, inteligência, coração e paciência procuram melhorar a grosseria dominante, para não me arrepender do que fiz do meu tempo, quando este se tiver finado.

Quando pego na nossa foto, a única que tenho de ti, vejo-me de sobrolho carregado como que a questionar-te: quem és? como és? Passaram sessenta e dois anos e não tenho respostas. Há vínculos que não se podem adiar. Não foste pai, o meu pai, porque não quiseste, não soubeste ou não te deixaram ser! E eu, não fui filho, o teu filho. Estamos quites! Pena que tal facto não me sossegue, já que tudo ficou por dizer!

Manuel Luís Goucha, "Carta a meu pai", http://cabaredogoucha.pt/carta-a-meu-pai/, 2017-03-24
 
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