Ana Zanatti:“Nunca andei escondida, nunca fiz questão de andar com bandeiras”
O Sexo Inútil marca a estreia de Ana Zanatti no ensaio. Homossexualidade na primeira pessoa, sem capa de ficção.
“Muito se irá dizer e escrever sobre este livro”, vaticina Lídia Jorge no posfácio. Escrito na primeira pessoa, em tom de ensaio, O Sexo Inútil, de Ana Zanatti (n. 1949), é inédito a vários títulos. Desde logo, na forma. Quanto se saiba, é a primeira vez que uma autora portuguesa reúne em livro um conjunto de testemunhos, seus e de outros, sobre experiências de discriminação homo e transexual.
Inéditas, também, são as circunstâncias: uma mulher com exposição pública que não recorre à ficção para falar de homossexualidade – ainda que o livro, por lapso da editora (assim foi explicado ao Ípsilon), contenha a referência “ficção” na terceira página.
Ainda assim, o livro contém os lugares-comuns da abordagem portuguesa à sexualidade, mas isso não recai sobre autora, que, aliás, deixa o sublinhado: “De entre as personalidade ‘públicas’ a quem pedi um curto testemunho assinado, diversas, por justificações pessoais e profissionais, hesitaram. Não insisti. Respeito os motivos de cada um” (p. 436).
Antes de o livro chegar às lojas e ser apresentado no festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa do Varzim, Ana Zanatti conversou com o Ípsilon e explicou a obra. Relativiza a questão das figuras públicas que não participaram e que, ao contrário dos muitos anónimos incluídos, teriam de dar o nome – era precisamente a dupla condição de notáveis e assumidos que Ana Zanatti procurava.
“As pessoas não se recusaram, não queriam era que eu colocasse o nome delas”, começa por dizer. “Algumas pessoas interessavam-me por terem profissões que as tornaram públicas, para não ser eu a única pessoa a falar de si, a dar o nome e a cara. Compreendo e respeito inteiramente essa posição. Elas é que sabem qual o tempo de falarem de si aos outros e de falarem publicamente das suas histórias mais íntimas. Não tenho que julgar.”
Por fim, de entre personagens públicas, constam apenas, sob a forma de depoimento breve, o escritor Eduardo Pitta e os professores universitários Fernando Cascais e Miguel Vale de Almeida – todos homens, vale a pena sublinhar o óbvio.
Com uma declaração de louvor na contracapa, surgem a deputada Isabel Moreira e a jornalista São José Almeida, sendo o prefácio do professor Viriato Soromenho-Marques e o posfácio, como já ficou dito, da escritora Lídia Jorge.
“As pessoas sentem que existe preconceito e discriminação, temem de alguma forma ser prejudicadas, pessoal e profissionalmente”, prossegue a autora, em conversa nos escritórios da editora Sextante, na zona de Benfica, em Lisboa.
Mas serão esses temores reais ou fantasmáticos? “Na maior parte dos casos, são reais”, responde. “As estatísticas mostram-no: há ainda nas escolas, nos empregos e nas famílias muitas pessoas que não encaram esta questão com a naturalidade com deve ser encarada. Um estudo de 2012 [da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia] mostra que entre 93 mil inquiridos 67% presenciaram no local de trabalho comentários ou atitudes negativas em relação aos colegas que sabiam ser homossexuais.”
Volume de 519 páginas, cuja profusão de narrativas torna a leitura rápida, O Sexo Inútil arranca com Virginia Woolf em epígrafe: “Os olhos dos outros, as nossas prisões; os pensamentos deles, as nossas jaulas.” É o resumo do que a autora pretende: “Reflectir sobre a dignidade e o preconceito. É isso que me leva a escrever este livro, porque acho que o preconceito conduz a actos discriminatórios que atentam constantemente contra a dignidade das pessoas.”
Misto de reportagem e autobiografia, a estrutura de O Sexo Inútil assenta na troca de correspondência que Ana Zanatti manteve durante pouco mais de um ano com Joana, pseudónimo de uma estudante de medicina de 21 anos, que culpa a família conservadora e autoritária por não ser capaz de fazer as suas escolhas, incluindo no campo sexual.
Conheceram-se em Dezembro de 2012, quando Ana Zanatti participava numa sessão de autógrafos. Joana contactou-a depois, através do Facebook e, inesperadamente, iniciaram uma troca de correio electrónico, que o livro colige, com a devida edição. Tornaram-se amigas e confidentes, com a autora a assumir-se orientadora da jovem desesperada, ou talvez a reviver-se através desse papel, pois Joana é quase um alter-ego.
“Antes de esta miúda aparecer no horizonte, já tinha ideia de fazer um livro sobre a dignidade e o preconceito”, explica. “Acontece que em 2012 esta jovem me pediu auxílio e tentei responder ao pedido dela. A nossa correspondência acabou por servir como fio condutor do livro, é a pequena história que se vai desenrolando. Vamos vendo à lupa o trajecto deste miúda, que poderia ser o de outra pessoa nas mesmas dificuldades.”
Joana vive um quadro familiar de solidão e incompreensão. Mesmo sendo uma jovem adulta, urbana e informada, vê o núcleo familiar como impedimento à sua auto-determinação e fica paralisada com medo, incapaz de desistir do curso de medicina, de que não gosta, ou de viver a sua orientação homossexual. Torna-se,a espaços, uma personagem desconcertante, em busca de condescendência ou hiperprotecção.
A autora perscruta a delicadeza da fragilidade e deslinda esse desconcerto: “Ela tem uma família que permanentemente faz comentários homofóbicos à frente dela. É uma jovem que gosta dos pais e não os quer decepcionar. A família é o primeiro contacto que a pessoa tem com o mundo, se esse primeiro contacto é logo negativo em relação a uma questão destas, é natural que a pessoa interiorize o próprio preconceito. É horrível.”
Ainda a propósito da hiperprotecção, e perante o argumento de que o mesmo sistema que nega a auto-determinação aos homossexuais (através do preconceito instalado, independentemente das garantias legais), pode também ser o sistema que obriga as pessoas a verem-se como vítimas e não protagonistas da sua vida, Ana Zanatti argumenta.
“Também falo disso no livro. Batalho muito com a Joana sobre isso: o papel que cabe a cada um para não deixar que a sua dignidade, a sua essência, o seu ser mais profundo e inteiro, seja danificado pelo olhar dos outros. Mas isso não é fácil. Não quero ter, nem tenho, um olhar crítico em relação às pessoas que têm dificuldade em fazer isso. Todos nós gostamos de agradar, todos gostaríamos de agradar às pessoas, não gostamos de ser apontados, criticados, olhados de lado, gozados... Ou as pessoas têm uma auto-estima à prova de bala ou então sucumbem, ficam com medo.”
O meu diário
Em paralelo com a história de Joana, o livro apresenta relatos e depoimentos de outros homens e outras mulheres que vivem, ou viveram, experiências sentidas como problemáticas em torno da homossexualidade e da transexualidade (ainda que orientação sexual e identidade de género sejam temas diversos). A autora recebeu algumas dessas pessoas em casa, indicadas por associações como a Amplos - Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual. Gravou as conversas, transcreveu-as e apresenta-as com pseudónimos e autorização dos visados.
Surgem, ainda, excertos do diário adolescente de Ana Zanatti, de entre 1960 a 1968. “No decorrer da minha correspondência com ela, ao ver este caso tão de perto, comecei a pensar como é que decorridos tantos anos, os que me separam desta nova geração, mais de 40, ainda existe todo este sofrimento”, justifica. “Foi a partir daí que tive curiosidade de ver como é que eu desabafava há 40 anos no meu diário.”
Neste particular, o livro é revelador. Alguém que em quase 50 anos como actriz e apresentadora de televisão sempre resguardou a privacidade, mostra agora uma dimensão íntima e antiga, os sentimentos amorosos, a relação com os pais, o abandono dos estudos e a saída de casa. Ao mesmo tempo, conclui-se que as dificuldades sentidas por Ana Zanatti na adolescência – ser mulher numa época de profundo machismo, procurar a emancipação, não querer casar, descobrir o encanto do feminino – não são muito diferentes das de Joana, no século XXI. Conclusão terrível?
“Não é uma conclusão terrível, é realista”, entende a autora. “O livro aponta para a esperança, dou exemplos bem sucedidos de pais com cartas extraordinárias para os filhos. A lei vai muito à frente da evolução das mentalidades, que não mudam por decreto. Se há hoje um entendimento muito maior sobre esta questão, há também muita discriminação, muito preconceito e muita ignorância.”
No sentido em que destaca a realidade homossexual em classes altas e reproduz a ideologia que incita as minorias sexuais a mimetizarem comportamentos “respeitáveis”, a obra pode ser considerada conservadora. A autora escreve mesmo, a propósito do Maio de 68, da Primavera de Praga e das filosofias do amor livre dos anos 60, que tinha, e tem, “fraco apelo por experiências radicais” (p. 464).
Veicula a ideia de que a uma pessoa homossexual deve comunicar esse facto à família, assim integrando melhor a característica identitária, e deve fazê-lo quando mantém uma relação amorosa monogâmica, para que a aceitação se dê. Talvez não pudesse ser outro o ponto de vista, atendendo ao grande público que o livro quer alcançar.
“O meu desejo é que seja lido pelo maior número de pessoas e não seja encarado como um livro sobre um grupinho minoritário de pessoas, os homossexuais, e apenas dirigido a esse grupo”, explica a autora. “Não é isso, de todo, antes pelo contrário. No meu entender, é para ser lido por todas as pessoas e quanto menos estiverem ligadas a esta questão, melhor. Porque de um dia para outro, qualquer um se depara com isso: porque um colega, um filho, um irmão se revelam. Toda a sociedade deveria estar preparada para lidar com as diferenças dos outros.”
O Sexo Inútil é o primeiro ensaio de Ana Zanatti, que se estreou na literatura em 2003, com Os Sinais do Medo, e desde então assinou seis livros, quase todos em torno das minorias sexuais e de género, incluindo a história infantilTeodorico e as Mães Cegonhas (2011).
Em 2009, ao integrar o Movimento pela Igualdade, que reivindicava a aprovação pelo parlamento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que aconteceria em Janeiro de 2010, a actriz e escritora assumiu publicamente a sua orientação sexual. Foi durante uma sessão pública no cinema São Jorge, em Lisboa.
“Sempre estive inteira na minha vida e o estar inteira é uma forma de estar activa em relação a tudo o que penso e sou e sinto”, reflecte agora, quando lhe perguntamos se este livro a aproxima ainda mais do activismo. “Nunca andei escondida, nunca tive nada a esconder, nem nunca fiz questão de andar com bandeiras daqui para ali. Acho que a forma mais natural é sermos e estarmos como somos.”
Sem comentários:
Enviar um comentário