Paulo a ler a Bíblia, por Guercino |
Um aspecto que nunca deixa de surpreender quem conheça minimamente a Bíblia é como o cristianismo desde há séculos se baseia numa sobrevalorização de certas passagens da Bíblia – tidas, pelas igrejas, como a verdade absoluta de Deus – e numa desvalorização total de outras passagens tidas, pelas mesmas igrejas, como inconvenientes e, consequentemente, votadas ao “delete”.
Um desafio inicial que se colocou ao cristianismo foi decidir o que aproveitar das complexas e labirínticas normas e obrigações expressas na Lei judaica. Seria possível deitar aquilo tudo para o lixo e começar do zero?
Convenientemente, o apóstolo Paulo deixou escrito que a Lei judaica valeu até Cristo (Gálatas 3:24) e que Cristo representa o fim da Lei (Romanos 10:4). No entanto, a grande finalidade prática desta insistência por parte de Paulo era provar que, não obstante a sua exigência incontornável por parte de Deus (Génesis 17:10), os homens cristãos não estavam obrigados a submeter-se à circuncisão.
Porém: escritos posteriores a Paulo – desde logo o Evangelho de Mateus – vieram baralhar este quadro. No capítulo 5 do seu Evangelho, Mateus atribui a Jesus a declaração de que não veio para abolir a Lei judaica, mas sim para a cumprir: e que não há pormenor da Lei, por mais ínfimo que seja, susceptível de desvalorização (Mateus 5:18).
Assim, para um estudioso da história do cristianismo é concebível que, se perguntássemos ao Jesus de Mateus se ele exigia a circuncisão, ele teria respondido “sim”. Se fizéssemos, contudo, a mesma pergunta ao Jesus dos outros Evangelhos (não só de Marcos, Lucas e João, mas também do apócrifo Tomé), ele teria dito redondamente “não”. No que ficamos? É complicado.
O emaranhado de preceitos e de regras no livro de Levítico foi sempre um piso escorregadio para cristãos que querem viver e impor valores bíblicos – mas selectivamente. Arrumada a questão da circuncisão, o clero cristão dos primeiros séculos deu-se conta de que, apesar de tudo, alguma coisa se podia aproveitar deste livro do Antigo Testamento.
Antes de mais, a obrigatoriedade do pagamento do dízimo (Levítico 27:30-34), sustento milenar das igrejas. A condenação à morte dos homossexuais (Levítico 20:13) também foi aproveitada e incorporada no primeiro grande código legislativo cristão, instituído no tempo do imperador Justiniano (século VI). A pena de morte como castigo da homossexualidade só saiu das legislações europeias no século XIX graças a um demónio iconoclasta chamado Napoleão. É claro, pois, que a homossexualidade atenta contra os valores judaico-cristãos! Está na Bíblia!
Mas há outras coisas que andamos todos a fazer mal, além do casamento gay. Desaconselho vivamente todo o cristão a comer qualquer prato tradicional da cozinha portuguesa, desde cozido à portuguesa a tripas à moda do Porto. Porquê? Estes pratos contêm algo que a Bíblia nos proíbe de comer: gordura (Levítico 3:17). Já agora, no catolicíssimo Minho com as suas papas de sarrabulho, seria bom que lessem o mesmo versículo citado. Quem gosta de caracóis também fique sabendo que não os pode comer (Levítico 11:28-29). Quando ao porco, deve ser das proibições bíblicas que toda a gente conhece (Levítico 11:7-8), mas a que nenhum cristão liga qualquer importância. Também ninguém invoca valores judaico-cristãos para evitar entrar numa marisqueira, com base na proibição bíblica de comer mariscos (Levítico 11:10-12). Faisão também é proibido (Levítico 11:19), mas nenhum cristão que eu conheça se recusa a comê-lo.
Dir-me-ão que estou a dar exemplos da Lei judaica – o que interessa a um cristão se um judeu não pode comer chouriço? Problema dele.
Mas o problema não é tão simples: afinal a Lei judaica é ou não vinculativa para cristãos? Sim (Mateus)? Ou não (Paulo)? Porque é que, deste mesmo Levítico que tenho estado a citar, é vinculativa a obrigatoriedade do dízimo e a condenação da homossexualidade – mas não são vinculativas as outras coisas?
Nos primeiros séculos do cristianismo, houve denominações (rotuladas de heréticas pela ortodoxia católica) que consideravam obrigatória a circuncisão: por exemplo, ebionitas e maniqueístas. No caso dos maniqueístas o assunto é especialmente curioso, porque eles rejeitaram TUDO do Antigo Testamento, a não ser a obrigatoriedade da circuncisão: foi a única regra judaica que os maniqueístas não se atreveram a repudiar.
Outras seitas consideravam que as proibições alimentares da Lei judaica significavam no fundo a proibição de comer carne e peixe – e por isso preconizavam o vegetarianismo.
Era difícil – e ainda é – fazer uma leitura coerente desta questão.
Volto ao mesmo: a lei judaica é válida para cristãos? Se eu perguntar a um amigo católico se ele acha que quem apanhar lenha ao sábado deve ser apedrejado até à morte (Números 15:35), ele vai responder-me “estás parvo?” Mas se eu lhe perguntar se ele acha que há incompatibilidade entre valores judaico-cristãos e homossexualidade, ele tem sustento para dizer: “Frederico, tenho tanta pena.”
O livro do Antigo Testamento em que claramente a homossexualidade é apresentada como situação contrária à Lei judaica e consequentemente merecedora da condenação à morte é o livro de Levítico (20:13). Isto porque modernos estudiosos da Bíblia já não interpretam o episódio de Sodoma e Gomorra como condenação da homossexualidade, tal como o profeta Ezequiel (16:49) o não fizera.
O gigantesco Antigo Testamento, com as suas mais de 600 000 palavras no original hebraico, contém apenas dois versículos a condenar a homossexualidade.
Por suprema ironia do destino, quem no NOVO Testamento condena a homossexualidade não é nenhum dos evangelistas, nem Jesus pela pena dos evangelistas, mas sim Paulo – justamente o apóstolo que proclamou a obsolescência da Lei judaica! (Mas só para o que lhe convinha.)
Frederico Lourenço, “A Bíblia dos cristãos: uma ementa de escolhas difíceis” in https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco, 2022-11-01