Opinião
A fraude intelectual do pensamento pós-moderno
O pensamento pós-moderno, e o activismo que dele decorre, nunca demonstrou qualquer utilidade para os oprimidos que afirma defender. Pelo contrário.
David Marçal, 25 de Julho de 2022, 0:30
O pensamento pós-moderno opõe-se ao pensamento moderno, a forma de pensar surgida com a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, segundo a qual se podem estabelecer novos factos com base em provas, quer dizer, é possível produzir conhecimento novo. Esta perspectiva foi aprofundada com o Iluminismo, tendo-lhe sido adicionada uma dimensão humanista: devemos usar a ciência e, de um modo mais geral, a razão para melhorar as condições de vida de todos os seres humanos.
Os resultados são impressionantes: existem hoje, em número absoluto, menos pessoas no mundo que vivem em pobreza extrema do que no início do século XIX, apesar de a população ser cerca de sete vezes maior do que nessa altura. Vivemos mais, temos em média mais rendimentos, homens e mulheres frequentam a escola durante mais anos e temos acesso a melhores cuidados de saúde, que se traduzem, por exemplo, numa menor mortalidade infantil e no controlo de várias doenças infecciosas através da vacinação. Não obstante existirem inúmeras coisas a melhorar, o mundo está cada vez melhor.
O pensamento pós-moderno, que tem uma visão mais cínica das coisas, assenta em dois princípios. O primeiro é o de que não é possível obter conhecimento objectivo. Este princípio vai contra todos os avanços da ciência. O segundo princípio assume que a sociedade é formada por sistemas de poder e hierarquias que determinam o que pode ser conhecido e como. Dito de uma maneira mais crua: a ciência e a racionalidade são invenções dos homens ocidentais heterossexuais, com o objectivo de perpetuar o seu próprio poder e marginalizar formas não científicas e não racionais de produção de conhecimento. Deveria ser inútil rebater esta ideia, de tão absurda que ela é.
Apesar das suas falhas, a ciência e a racionalidade produziram um entendimento do mundo que é verificável empiricamente e que tem resultados óbvios: conseguimos prever a passagem de cometas, construir telemóveis e fazer vacinas para a covid-19.
É à luz destes dois princípios que podemos entender alegações como a de que não existem apenas dois sexos biológicos. Um dos temas do pensamento pós-moderno é o esbatimento de fronteiras definidoras, recusando à biologia qualquer papel na definição de conceitos como homem ou mulher, categorias que, no quadro desse pensamento, são socialmente construídas.
Outro aspecto do pensamento pós-moderno é a ideia que os grupos oprimidos (as mulheres, os negros, os homossexuais, as pessoas obesas ou qualquer pessoa com uma combinação das anteriores) possuem um conhecimento vivencial próprio, que se sobrepõe à ciência e à racionalidade. Esta ideia pode-se traduzir em assumir a deficiência como uma identidade (recusando tratamentos para a surdez, por exemplo) ou rejeitar a existência de problemas de saúde decorrentes da obesidade (medicalizar a obesidade seria uma agressão à identidade).
O sexismo, o racismo ou a homofobia são cada vez mais inaceitáveis nas sociedades modernas. É este caminho que importa prosseguir, porque foi ele que alcançou resultados inegáveis em muitos países
Mais: estas afiliações identitárias são usadas para empoderar esses grupos, estabelecendo uma hierarquia baseada na opressão e no privilégio, na qual, por exemplo, uma mulher negra “cis” deve reconhecer o seu privilégio face a uma mulher negra “trans”. Há casos complicados, como comparar uma mulher negra heterossexual com um homem negro homossexual – quem é o privilegiado aqui?
Os teóricos pós-modernos inventarão uma resposta, se é que não têm já uma. A questão é que essa hierarquia, assim como todos os aspectos do pensamento pós-moderno, são apenas efabulações teóricas muito desligadas da realidade. As crenças pós-modernas não são comprováveis, pois os seus arautos não aceitam testes que se lhes possam fazer para verificar se elas são verdadeiras ou falsas. Por exemplo, a afirmação de que todos os brancos são racistas, mesmo que não o saibam, pois tem “ângulos mortos”, é uma afirmação não comprovável: não há nenhuma observação ou experiência que se possa fazer que tenha a capacidade de demonstrar que ela é falsa. Claro que a ciência e a racionalidade são, para os teóricos pós-modernos, apenas formas de manter os homens brancos no poder, eles são insensíveis a quaisquer argumentos científicos ou sequer racionais.
Os grandes avanços nos direitos dos negros, das mulheres e dos homossexuais são anteriores a este tipo de pensamento, tendo raízes no Iluminismo e um forte impulso com os movimentos dos direitos civis nos Estados Unidos. Estes avanços, em grande parte ocorridos nas décadas de 1960 a 1990, assentam na ideia de que todos somos iguais em direitos e dignidade, independentemente de sexo, cor da pele (não há raças humanas) ou orientação sexual. São abordagens universalistas e não sectárias. O sexismo, o racismo ou a homofobia são cada vez mais inaceitáveis nas sociedades modernas. É este caminho que importa prosseguir, porque foi ele que alcançou resultados inegáveis em muitos países. São estes valores universalistas que estão plasmados no artigo 13.º da nossa Constituição.
O pensamento pós-moderno, e o activismo que dele decorre, nunca demonstrou qualquer utilidade para os oprimidos que afirma defender. Pelo contrário, tem o dom de tornar pessoas razoáveis e tolerantes em adversários, que se vêem catalogadas como racistas ou homofóbicas simplesmente por não professarem o credo pós-moderno.
Fonte: https://www.publico.pt/2022/07/25/opiniao/opiniao/fraude-intelectual-pensamento-posmoderno-2014803
REAÇÕES I:
Fernando Venâncio
«A fraude intelectual do pensamento pós-moderno»,
por David Marçal
Às vezes, encontramos exposto aquilo que já trazíamos informe cá dentro. É o caso deste artigo de David Marçal. O autor não o diz, mas digo eu: esta mania de infundir-nos culpabilidade por todos os males do Mundo é uma refinadíssima forma de sadismo.
Este artigo é ele um exemplo de completa fraude intelectual: cria um papão ao qual atribui todos os males do mundo, não identifica os praticantes da nefanda arte nem oferece aos leitores a mais mínima evidência textual: onde se encontram os exemplos das afirmações peremptórias que o autor produz e atribui a outros? Não é preciso fornecê-los, porque a indignação produz a fé necessária à creditação da fraude. Mais parece um auto de fé. E sim, tem tudo para ter sucesso e tornar-se viral.
O Pedro Schacht não parece deste mundo, o que é deveras invejável. Eu próprio convivi de muito perto com este tipo de activistas.
Fernando Venâncio reparou que não me referi a ativistas. O fulcro é um artigo que grita "vêm aí os bárbaros" enquanto coleciona todos os pecadilhos que atribui ao espantalho por si mesmo criado. Não contem comigo para validar esta pobreza intelectual, por sedutora que possa ser para o desejo de absolvição e a indignação de gatilho. Considero este artigo insultuoso da inteligência dos leitores.
Pedro Schacht, Há dias li uma curiosa reflexão, que dizia, em síntese, isto: a cultura woke condena como "apropriação cultural" uma mulher branca usar cabelo rastra (o caso é verídico e recente), mas põe em destaque a 'fluidez' das orientações sexuais.
Isto é: nuns terrenos é obsessivamente descontínua, noutros microscopicamente contínua. E mostra-se, nos dois casos, irredutível.
Fernando Venâncio pois, não sei o que é “cultura woke”, para além de um chavão sempre indolentemente analisado. Mas sei o que é fazer-se um processo de intenções contra alvos que não se tem a hombridade de identificar, alicerçado na falta de evidência: quem disse o quê, quando? E o pós-modernismo é o papão, a sério? Não sei a que academia o autor se refere, mas não é a dos últimos 20 anos, onde esses debates e batalhas há muito se extinguiram. O respeito pela inteligência do leitor é uma regra básica que este artigo não observa, mas, como disse, tem tudo para ter enorme sucesso, como somatório de indignações. Provas para quê? O “vi na Internet” hoje suplanta o trabalho de compulsar bibliografia.
Pedro Schacht Por vezes, a indignação é um derradeiro recurso, quando já se disse e se ouviu tanto e de tantos modos. Quanto às "provas" que exige, direi (repetindo-me) que o Pedro é um sortudo, ao desconhecê-las.
Pedro Schacht na Espanha hai-nos até no Governo…
JLuis Valinha Sim, na área do Podemos , suponho eu.
Fernando Venâncio, supões bem…
Pedro Schacht completamente de acordo. além de fraudulento é pobre e confuso na argumentação.
Pedro Schacht, o autor não fornece exemplos pela mesma razão por que não é preciso fornecer exemplos da existência de gatos: toda a gente já os viu e reconheceu quase sempre como tais.
José Luiz Sarmento Ferreira um argumento extremamente científico, estamos esclarecidos.
Pedro Schacht As suas objecções continuam a ser, fundamentalmente, de natureza formal. Exige provas, bibliografia... coisas assim. Tudo isto (dizem cautelosamente os psicólogos da área) parece revelar um incómodo com o tema.
Fernando Venâncio um incómodo apenas com a desonestidade e a fraude intelectual, e com a facilidade com que se propaga, nada mais.
Depreendo que o Pedro Schacht nunca se viu confrontado com o tipo humano que o artigo refere. Mas posso garantir-lhe que ele existe e anda fazendo estragos.
Pedro Schacht, lá científico não é, mas é perfeitamente válido. Há mais mundo - mundo real, pensável e verificável - para lá da academia.
Pedro Schacht, há uma diferença entre desonestidade ou fraude intelectual e não conformidade com os protocolos formais do trabalho académico. A não ser assim, só os académicos seriam intelectualmente honestos - mesmo quando tentam contradizer tudo o qu…
José Luiz Sarmento Ferreira não se trata de defender um protocolo de autoridade, mas de transparência. Quando se acusa pessoas de algo que se considera grave, deve prover-se argumentos sólidos e documentáveis em favor da acusação, de forma a dar ao adv…
Fernando Venâncio , e garantes bem…
Fernando Venâncio, a de cousas que eu levo escuitado som prova empírica davondo ao meu ver, e nom hei ser o único que tem escuitado, as provas aí as estám para quem as quiger ouvir…
Pedro Schacht Quanto a denúncias e ao atear de fogueiras, estamos falados com os fundamentalismos identitários, visados no artigo.
Pedro Schacht .." cria um papão ao qual atribui todos os males do mundo, não identifica os praticantes da nefanda arte nem oferece aos leitores a mais mínima evidência textual.."....Poderá sempre começar pela pela leitura de "White Fragility" de Robin …
Pedro Schacht ..eu li as referidas obras em inglês e não tenho obrigação de conhecer o seu currículo profissional, como certamente não conhecerá o meu.
Pedro Schacht, quando se denuncia uma tendência não é possível nomear um a um todos os seus representantes. Cometeríamos duas injustiças: a de excluir quem devia ser incluído e a de incluir quem porventura devia ser excluído. A menos que estejamos a escrever uma tese de trezentas páginas, seiscentas com os apêndices, e mesmo assim seria preciso ressalvar que os casos mencionados eram apenas exemplificativos... A questão é saber se a tendência é real ou não, e penso que quanto a isto não subsiste qualquer dúvida.
Ih-ih-ih...
(I-i-isto é um statement|)
Já há tempo que o disse o Zizek. Simplificando: sempre somos nós (ocidentais) os responsáveis daquilo que acontece. Sobre o artigo concordo com outros comentadores. Sendo eu racionalista, vejo um claro "homem de palha". Talvez é quase o exigido polo formato.
Creio que o autor se confunde um pouco quanto ao pós-modernismo.
Luis Miguel Rainha O problema é então terminológico... Que alívio!
Fernando Venâncio é uma questão de monta. Ele aqui comete a falácia do espantalho: agrupando tudo o que não gosta sob um chapéu comum e impreciso.
Luis Miguel Rainha A tua objecção é, ela também, de natureza formal.
Fernando Venâncio não. É mesmo de ordem conceptual.
Seguir
O artigo de Lúcia Guimarães, na Folha de domingo, mostra que a liberação do aborto foi decidida nos EUA por uma Corte Suprema toda de homens brancos, e sua proibição acaba de ser decretada pela Corte mais diversa da História.
O retrocesso foi comandado por um Justice negro.
Renato Janine Ribeiro E tem a certeza de que ele, o juiz Clarence Thomas, se 'sente' negro?
A sério: o fulano é, sabe-se, casado com uma branca trumpista da cabeça aos pés.
Renato Janine Ribeiro O governo genocida brasileiro colocou um negro na presidência da Fundação Palmares que não poderia ser mais anti-movimento das populações negras. A polícia do Rio de Janeiro acaba de cometer a terceira das cinco mais letais chacinas contra o povo negro e pobre daquela cidade. Ao entrevistar o chefe de Polícia Militar, o repórter se viu conversando com um policial negro a justificar a operação policial.
Renato Janine Ribeiro «Corte» em Português é outra coisa. «Tribunal» é como se diz, seja em Portugal ou no Brasil. Peço desculpa por intervir mas parece-me que a americanização da linguagem é uma despromoção que merece ser atalhada.
Fernando Venâncio , lembrei-me de Abdias Nascimento, líder de renome do movimento negro brasileiro, que era casado com Elisa Larkin, antropóloga americana branquíssima. Mas creio que tampouco o Abdias a fazia ver-se como negra. Complicadas essas identidades... Terá o mundo ficado muito mais complicado sob esse aspecto?
Mário De Carvalho no português do Brasil são sinônimos.
Uma crónica profundamente desonesta, nem vou argumentar.
Margarida Paredes Boa leitura aqui mesmo abaixo.
Para quem quiser aprofundar esta loucura neo-puritana e anti-científica que saltou de sectores radicais da academia norte-americana para os media e para a política, recomendaria este livro:
https://www.guerraepaz.pt/inicio/696-teorias-cinicas.html
Joaquim Alexandre Rodrigues Os meus contactos com grupos fortemente "identitários" fez-me ver como é impossível qualquer diálogo. Ou aceitas TUDO quanto defendem ou és um inimigo a abater, e pelo menos a denunciar.
São, à sua maneira, terraplanistas.
São uma ameaça séria à democracia porque acabam a ejectar, ou a querer ejectar, do espaço público quem não partilha o seu "pensamento" mágico.
Esse fanatismo é um aliado objectivo dos trumps deste mundo, porque aliena as pessoas que querem mesmo um mundo de cidadãos iguais, independentemente da etnia, religião, género, orientação sexual, que querem é criar um chão comum e não querem as pessoas arrumadas em caixinhas em guerras de alecrim e manjerona sobre semântica e gramática obscura.
Essas pessoas de boa-fé que, por não usarem os pronomes permitidos pelos wokes, correm o risco de serem acusados por eles de uma "fobia" qualquer, acabam por se chatear de vez.
Permita-me um recorte do livro que explicita isso de uma maneira clara:
" Se for socialmente aceitável falar depreciativamente sobre «branquitude» e pedir castigo para qualquer um que possa ser interpretado como expressando «antinegritude», isso será visto como injusto pelos brancos.
Se for aceitável patologizar a masculinidade e falar odiosamente dos homens, sendo hipersensível a qualquer coisa que possa ser chamada «misoginia», quase metade da população (assim como grande parte da outra metade que os ama) provavelmente levará isso a mal.
Se as pessoas cisgénero, que são 99,5% das população, são acusadas de transfobia por simplesmente existirem, por não usarem a terminologia correcta, por permitirem que os órgãos genitais influenciem as suas preferências de namoro, ou mesmo terem crenças que não sejam compatíveis com a Teoria 'queer' sobre género, isso muito provavelmente resultará em muito antagonismo injusto contra as pessoas trans (a maioria das quais também nem sequer acredita nisso)."
Helen Pluckrose e James Lindsay, in TEORIAS CÍNICAS, Guerra e Paz, Lisboa, 2021, pp. 275/6
Joaquim Alexandre Rodrigues Exactamente. Pobre gente que vive em contínuo estado de indignação, medindo e pesando toda a afirmação que possa (e muita pode) não respeitar os seus altos padrões de correcção.
Fernando Venâncio, de certa maneira até no reintegracionismo inça infelizmente esse mal… e eu, como bem sabes, som reintegracionista…, mas a verdade é a verdade…
JLuis Valinha Sim, o reintegracionismo galego é primariamente identitário e puritano.
Fernando Venâncio, escreves: “…Os meus contactos com grupos fortemente "identitários" fez-me ver como é impossível qualquer diálogo. Ou aceitas TUDO quanto defendem ou és um inimigo a abater, e pelo menos a denunciar.
São, à sua maneira, terraplanistas.”
E estás cheo de razom, faltou-che dizer, “e és atacado com fúria e prepoténcia…”
No reintegracionismo acontece com frequéncia, para vergonha e dano da causa que dim defender, escorrentando muitos potenciais “seguidores”. Infelizmente…
Fernando Venâncio, às vezes descobres que o falar desses puritanos é tristemente contaminado…
Prefiro os terraplanistas
O David Marçal é daquelas pessoas que são muito racionais até que não.
Uma série de generalidades sem qualquer base estética, filosófica ou política. Como se vai argumentar sobre um processo de intenções que nem um programa tem? Se o modernismo foi durante tanto tempo, continua a ser, a base para uma diversas análises, o pós modernismo trouxe consigo um levantar de questões, precisamente, do academicismo reinante. Não me parece que pessoas possam e devam ser misturadas com conceitos, a não ser quando os tragam para a discussão.
Consultado em 2022-07-26, 09:25
REAÇÕES II:
André Barata está com David Marçal.
2022-07-25
David, por que dizes que o pós-moderno é obscuro?
Não te ocorre que o pós-moderno ainda ilumina? Trata-se precisamente de iluminar o lado obscuro da modernidade. Por que presumes que o moderno não é obscuro? Os monstros que a razão engendrava no seu sonho/sono não eram pós-modernos, mas modernos.
É muito mais interessante pensar o pós-moderno como crítico do moderno num sentido que honra o legado de pensamento crítico que a modernidade cultivou. É pós- não é anti-. Sabes, a emancipação faz-se quase sempre contra uma narrativa vigente da emancipação. Na verdade, o pós-moderno teve muito de moderno no sentido em que foi precisamente o lado obscuro que se esconde sob a luz intensa aquilo que procurou iluminar. A ciência moderna firmou-se por desconfiar das evidências e apoiar-se com atenção e método nas inevidências. Não há ruptura do pós-moderno com o espírito da ciência moderna. Há sim quando esta se torna um empreendimento normativo, que deixa de se guiar pela experiência da curiosidade pelo mundo. E exactamente a mesma crítica vale para um pós-moderno que se abandonou à suspeita sem capacidade de se reencantar pelo mundo.
Se a tua comparação é entre o pós-moderno e o moderno por que razão comparas o mundo de hoje, com umas seis décadas de influência de cultura pós-moderna latu sensu, com o do início do século XIX? Não terá a cultura de uma racionalidade mais prudente, menos ingénua, atenta às suas consequências, não certa do lema “saber é poder”, avessa às grandes narrativas, desde logo a da direcção do curso da história, contribuído para o mundo melhor que é, no teu parecer, aquele em que vivemos hoje? Menos mergulhos cegos nas certezas, mais aprendizagem do convívio com o incerto, sem ansiedades.
E vivemos um mundo melhor? As desigualdades parece que crescem apesar de menos pobreza, os recursos estão exaustos, o receio sobre o futuro que nos espera cresce, a própria ideia de futuro parece um tanto em colapso. É muito difícil fazer este tipo de avaliações sobre se vivemos ou não num mundo melhor. Podemos é ter diferentes interpretações sobre como se chega a um mundo melhor e, mais profundamente, ter também diferentes interpretações do que é o mundo que desejamos. Repara, se nos enclausurarmos num ambiente asséptico inteiramente disciplinado provavelmente conseguimos melhorar todos os indicadores que apontas relacionados com a nossa vida biológica. Mas isso faz-nos viver num mundo melhor? Falas a dado passo da obesidade e de que, para alguns, medicalizá-la é uma agressão à identidade. Será que a identidade que conferiu um sentido de existência a alguém não pode, se apreciada, valer mais do que viver mais meia dúzia de anos? Um mundo livre não será aquele em que se conhecem objectivamente as indicações e as contra-indicações, mas permanece a mais ampla liberdade dentro dos limites que guardam a mesma igual liberdade para os demais?
Dizes que o pensamento pós-moderno tem uma visão cínica das coisas. Referes-te à ironia dos cínicos gregos ou é apenas o adjetivo pejorativo que no dicionário se define como impudico, sem escrúpulo, etc.? Se for a primeira, era preciso desenvolver os usos da ironia face às convenções. A segunda entristece-me. Deixares a dúvida deixa-me a mim pasmo. Não vejo no pós-moderno necessariamente a afirmação da impossibilidade do conhecimento objectivo. Agora que a maneira como representamos e imaginamos o que seja conhecimento objectivo pode ser debatida e muito modificada, disso não tenho dúvidas. O que tem este processo de discussão, crítica, guiada por argumentos, objectividade que aflora sempre, de cínica? Não sei o que queres dizer com isso. Fica a impressão de que trais o pressuposto do que tentas defender, que o fazes moralizando o que não é dessa ordem. Depois dizes que para o pós-moderno, a “sociedade é formada por sistemas de poder e hierarquias que determinam o que pode ser conhecido e como”. Eu diria outra coisa, algo assim – “a sociedade é também formada por sistemas de poder e hierarquias que procuram determinar o que pode ser conhecido e como”. Duas subtis diferenças que te dizem que a realidade é isso e mais e que isso procura determinar, mas pode não determinar. É nesse campo do que há mais e das possibilidades que se joga muito da atenção crítica do pós-moderno, seja lá isso o que for. Em seguida, de uma maneira mais crua, dizes tu, resumes a posição: “a ciência e a racionalidade são invenções dos homens ocidentais heterossexuais com o objectivo de perpetuar o seu próprio poder (....)”. Acontece que não raro a ciência serviu exatamente esse propósito. Mas ser crítico de uma ciência ao serviço do poder não é ser crítico da ciência, mas de um uso que dela se faz. Basta um pouco de leitura da história moderna para dar conta de exemplos importantes. E isso é suficiente para o tal olhar crítico sobre o próprio fazer da ciência, a maneira como se imagina um mundo desenhado pela ciência. Ou certa maneira de ver a ciência. Eu, aliás, vejo que o melhor antídoto contra visões redutoras da ciência é deixá-la mostrar ou falar. O seu poder de surpreender e nos confrontar com o inesperado é imenso.
É verdade que os grupos oprimidos possuem um conhecimento vivencial próprio, mas não se sobrepõe à ciência e à racionalidade. A ciência e a racionalidade percebem que os fenómenos humanos não são indiferentes à representações que deles fazemos, não é como estudar a queda dos graves. As maçãs caem na cabeça de Newton independentemente do que pensamos sobre a maneira como caem. Mas como a cabeça de cada um funciona é em boa parte (não totalmente!) plástico e as mãos que lhe dão forma são representações. O mesmo acontece com as consciências de grupos, em particular as dos oprimidos de uma forma sistemática. Nada nisto se sobrepõe à ciência. Pede é atenção, também da ciência, às representações, à maneira como nos representamos e como representamos outros. Todos os brancos serem racistas mesmo que não o saibam é uma afirmação não sobre ti ou eu, mas sobre a representação histórica que herdámos, não escolhemos, e que podemos/devemos estar atentos. É como se vestíssemos roupa emprestada, com usos antigos e que deixaram marcas. Não é uma acusação que te deva fazer sentir culpado.
Também é verdade que o esbatimento de fronteiras definidoras é um tema, polaridades que, parecendo naturais, conservam uma organização que poderia não ter sido assim e que convém a uma ordem estabelecida. Por exemplo, Freud achava natural que as mulheres fossem mais egoístas do que os homens e explicava-o com a hipótese do complexo de Édipo. Para ele, as meninas sublimavam menos porque experienciavam um Édipo menos intenso do que os meninos. O pai era para elas um rival menos impactante do que para os meninos. E a sociedade vitoriana podia corroborar muito bem, à saciedade mesmo, a hipótese de Freud. Há muita construção social onde imaginávamos que só havia natureza. Não há só construção social, que seria uma espécie de equívoco inverso, mas é importante guardar sempre um olhar crítico para aquilo que tomamos como natureza, sobretudo quando estamos a falar de natureza humana, de padrões de comportamento que não são indiferentes à maneira como se representam e são representados por outros. O poder de previsão é muito maior em algumas ciências naturais do que nas ciências sociais, mas o poder da representação é nestas muito maior do que nas ciências naturais. É um poder também político quando normaliza relações de superioridade ou de segregação. Por exemplo, a mulher segregada para dentro da esfera do privado. Dizer isto não é abraçar nenhuma obscuridade, mas, pelo contrário, iluminar o que esconde debaixo do tapete que passa por chão da natureza. Deve escandalizar-te, mas olha: até a palavra “matéria” atravessou toda a história da filosofia com uma certa aura de realidade feminina a que a “forma” (decerto masculina) havia de dar clareza. Pois, mas não há escândalo. Primeiro, porque estamos a conversar. Segundo, porque conversamos descomplexadamente, sem necessidade de identificar uma frente de batalha, uma polaridade em que estás de um lado do campo. Desfazer dualidades cristalizadas é um belíssimo exercício de espírito crítico. E é surpreendente como a ciência, com a sua racionalidade objectiva, double blind peer review, etc., contribui para isso. Mas sem moralismo e barricadas. Há dias lia sobre evidências para uma neurobiologia das plantas, também já li sobre o papel da cultura na estabilização da diferenciação sexual. Alguém um dia notou que, embora pareça, os corpos não caiem necessariamente mais depressa se forem mais pesados, nem é o caso que a Terra esteja parada no centro do universo e que todos os corpos celestes gravitem em seu torno. Não é ideologia, é conhecimento. Mas a ideologia tende a dar-se mal com as inevidências que rompem com a normalidade. E a ciência é uma enorme tentação para a ideologia. Era preciso não deixar o evidente tomar a forma de normalidade.
Há ainda isso do reconhecimento do privilégio. Pois bem, é quase uma questão de etiqueta diante do conhecimento informado da história das desigualdades. Se falamos sobre desigualdade de género, mais vale ouvir primeiro, sem renunciar a falar. Por vezes pode ser confuso. A realidade nem sempre é como a prevemos. Com calma, ninguém fica de fora. Reconhecer o privilégio é uma tarefa de conhecimento, com desafios próprios, específicos, embora não mais obscura do que o estudo das propriedades de um semi-condutor.
Parece que sugeres que o pós-moderno está para o que tu entendes ser bom como o sectarismo está para o universalismo. Repara. Há de facto uma crítica a fazer ao universalismo (e ao humanismo) aclamado por quem escuta pouco e não se ouve além de si próprio. A evangelização era eivada de universalismo e humanismo. O colonialismo também. Propósitos civilizadores, trazer para o lado do desenvolvimento, da saúde, das oportunidades, etc. Este era um universalismo/humanismo pouco aberto ao convívio das diferenças, dos modos de estar no mundo e de representar como se está no mundo. Mas há um universalismo que escuta mais, que arranca dos lugares do mundo e que nesse sentido está bem amarrado ao mundo. Na verdade, este universalismo que escuta mais do que diz é o menos propenso a cair no sectarismo. Não tem como.
As considerações sobre o universalismo podem levar-nos longe. Será justo pensar a igualdade entre todos a partir da perspectiva que nos abstrai de nós próprios e da história que trazemos. Para mim, branco, ocidental, heterossexual (até à data...), ver-me como igual a todos os outros independentemente da cor da minha pele, de que lado da cerca nasci e cresci, dos meus órgãos, da orientação sexual que os investe, etc., é fácil. Nenhuma delas me marcou, por nenhuma delas fui identificado. Mas a outro que nasceu e cresceu no contexto em que a sua cor de pele significava sujeição, o lado da cerca que nasceu significou inferioridade, os seus órgãos culpa, a sua orientação sexual mais culpa, pois bem, pedir-lhe que abstraia de tudo isso para ser igual a mim mesmo é o mesmo que dizer-lhe: sê nada. O pós-humanismo fala destas coisas sem grande obscuridade.
Finalmente, deixa-me dizer que do mesmo modo que há muito herança do moderno que aprecias e eu aprecio no pós-moderno – este é como aquele a virar-se sobre si para se observar –, também é muito mais moderno do que pós-moderno o que, por vezes, usurpa o lugar da linguagem inclusiva, das políticas de acção afirmativa, da discriminação positiva levada a grupos que de outro modo não se libertam da opressão. É quando da atenta consideração dos micropoderes, dos microrracismos, das microagressões que importa trazer à superfície, em vez de manter calados, mas a produzir efeitos segregadores e menorizadores, passamos a uma vigilância que não consegue ir além da superfície das palavras e dos actos e já não interpreta, não confia apesar da indeterminação da interpretação, e torna-se um dispositivo policial de comportamentos e do discurso, verbal ou outro. Mas quando isto acontece o que irrompe é o lado negro do moderno, não do pós-moderno.
Abraço amigo.
21 comentários
"Pós-moderno" deixou de ser descrição para passar a ser bengala verbal de quem quer fazer conotações negativas de forma críptica. No fundo é o deslumbramento da linguagem em detrimento da factualidade.
A reflexão de André Barata tem muito sentido, tem até sentido em excesso. Julgo que, no texto de David Marçal, "pós-moderno" serve de cabide mais ou menos adequado, mais ou menos justo, para uma crítica, essa justíssima, ao Fundamentalismo Identitário que se pôs a absorver toda a nossa realidade cultural, culpabilizando-nos por todas as injustiças da História e do Mundo.
É indispensável dizer-lhe Basta!, mesmo sabendo que nenhum fundamentalista tem qualquer noção de limite. Porque uma coisa tenho por certa: ai de nós quando um fundamentalismo identitário nos vier dominar.
Fernando Venâncio não é um cabide; é uma arca de Noé onde metem tudo o que deploram nos nossos tempos.
Enquanto continuar a escapar-te o cerne da questão (veja-se o meu comentário), ficarás em belas bizantinices. E é triste.
Fernando Venâncio pois eu creio que tu e o Marçal é que estão presos em jogos de palavras e investidas contra moinhos de vento.
Luis Miguel Rainha Eh pá, pazinho! Nem sequer o conceito de "apropriação cultural" te é conhecido? O de que (exemplo real) um tradutor branco deve tirar as suas colonialisras patas do poema dum negro? Em que mundo vives?
O pós moderno já é passado. O que se assiste atualmente é aquele espernear proprio de quem assimilou a coisa como se de uma religião se tratasse.
Nesta interpretação o pós-moderno não é então mais do que o confronto crítico com a modernidade, já que não postula nada, não se constitui ideologicamente, não corresponde a qualquer mundivisão, certo?
David Santos Há toda uma mundividência https://www.youtube.com/watch?v=G333Is7VPOg
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Madonna - Papa Don't Preach (Official Video) [HD]
Madonna - Papa Don't Preach (Official Video) [HD]
Há uma mundi-visão de mundi-visões sem a pretensão de uma mundi-visão.
Ideologicamente soa-me muito bem, apesar de me parecer dever o seu sentido exclusivamente ao confronto com a modernidade, mas materialmente o que comanda são ainda as "necessidades" - ainda que ideologicamente distorcidas - de toda a ordem - como as ec…
Por acaso, acho que a grande reivindicação política destes nossos tempos é pelo reconhecimento da contingência do mundo e do que nele acontece. Abraço.
Obrigada! Só tenho pena que esta réplica fique confinada ao FB…
Propaga-se uma certa confusão entre pós -modernidade e pós-modernismo.
Luis Miguel Rainha E há lá coisa mais pós-moderna do que propagar a confusão?
Mais a sério: não é fácil dizer com clareza o que é o pós-modernismo em grande medida porque poucos filósofos se declaram dessa corrente (o tonto do Boaventura e mais quem…
Acho este artigo muito elucidativo e, infelizmente, só ganhou actualidade.
https://www.sciendo.com/article/10.2478/disp-1999-0008
SCIENDO.COM
Racionalidade e Realismo: O que Está em Jogo?
Racionalidade e Realismo: O que Está em Jogo?
Para mim, o autor de referência é Lyotard e o seu pequeno livro sobre a condição pós-moderna. E é muito pouco obscuro.
A Donna Haraway já tinha desmontado essa retórica da "falta de verdade objectiva" nos anos 70...
Aliás, autora que de obscura não tem nada.
Independentemente dos autores (e, à partida, quero lá saber dessa Haraway e do que ela montou e desmontou), quais são, então, as teses distintivas do pós-modernismo? Convém formulá-las com clareza suficiente, em vez de despejar nomes, pois de outra for…
André, o teu texto, só com uns retoques, dá um belo seminário para o teu curso…
Consultado em 2022-07-26, 09:33