domingo, 18 de outubro de 2020

Catulo: «gay for pay» e outras máscaras

  Crónica de Frederico Lourenço


No interessante canal do YouTube chamado «Põe na Roda», cuja missão é educar as consciências sobre a realidade LGBT, assisti há tempos à entrevista com um actor famoso da pornografia gay, no decorrer da qual ele declarou, supreendentemente, que muitos dos actores que ganham a vida na pornografia gay são, na realidade, heterossexuais. Desempenham o papel de homossexual – dir-se-ia até às últimas consequências – nos filmes pornográficos, mas, na vida real, têm namoradas (e alguns são mesmo casados com mulheres). O termo que, pelos vistos, descreve estes héteros que ganham a vida graças à prática de sexo «hard core» com outros homens é «gay for pay». Fingem ser, por motivos profissionais, o que não são; o que fazem na tela em cenas de sexo escaldante é somente representação.

Claro que a tela cinematográfica é, por excelência, um espaço de fingimento. Nisso, o cinema gay «hard core» não é diferente do cinema não-pornográfico. Qualquer personagem de qualquer actor é uma máscara: Harrison Ford não precisou de tirar um doutoramento em arqueologia para fazer de arqueólogo em Indiana Jones; e seria ingénuo pedir conselhos médicos a Hugh Laurie porque o vimos na série «House»: estaríamos a confundir o actor com a personagem.

A mesma coisa acontece na literatura, sobretudo em textos escritos em prosa ou em verso na primeira pessoa do singular. Se um autor escreve «eu», a nossa tendência inconsciente é de ver logo no texto uma declaração autobiográfica. Pensemos no famoso romance de Marcel Proust, escrito na primeira pessoa. Quantas e quantas pessoas não projectam o autor real no narrador que escreve usando por máscara o pronome «eu» e cujo nome é (ainda para mais) «Marcel»? Mas se virmos bem: o Marcel do romance é praticamente a única personagem masculina que não é (ou não se torna) homossexual; e assume-se (numa obra cheia de anti-semitismo) como não-judeu no meio de judeus. Ora, o Marcel Proust real era gay e era judeu.

Voltando à entrevista no canal «Põe na Roda»: dei por mim a pensar que um hétero que põe a máscara de gay é um fenómeno muito próprio da poesia de Catulo, esse génio absoluto do século I a.C. Mas por trás da máscara de gay estará um hétero? Ou é por trás da máscara de hétero que está um gay? Muitos latinistas dirão que o «verdadeiro» amor de Catulo foi a mulher a quem ele chama Lésbia; e o facto de ele escrever poemas em que se apresenta como homossexual não será para levar a sério, pois isso (alegadamente) não passa de uma máscara. Catulo seria, como os actores porno de hoje, simplesmente «gay for pay».

Mas a realidade (penso eu) é mais complexa. Quanto mais leio Catulo, mais me parece que ele teve a intenção de escrever todos os seus poemas «de máscara». A heterossexualidade é tão máscara quanto a homossexualidade. O poeta que afirma a sua paixão por Lésbia e afirma, noutro poema, ter tido comportamentos sexuais de gay passivo (ou activo, depende do poema) está simplesmente a trocar de máscara. Pois a questão é esta: a massa na qual o poeta tem de pôr as mãos é a poesia. Mas não se pode escrever poesia sobre nada: é preciso escrever sobre algo. Quando o autor romano Catulo escreve poemas sobre a vida sexual e sentimental da personagem que na sua poesia se chama «Catulo», está a fazê-lo porque é dessa massa de ingredientes que ele escolheu amassar a sua poesia.

Os latinistas têm preferido ver nos poemas que Catulo escreve sobre os seus namorados (ou pretensos namorados) jogos literários helenísticos, ao contrário dos poemas sobre Lésbia, que, para muitos estudiosos (ainda hoje), são «autênticos». A ilusão de sinceridade é, de facto, uma das grandes marcas do génio catuliano. Como digo muitas vezes, os poemas que nos chegaram de Catulo excedem, num cômputo completo, mais de 2000 versos. O nome «Lésbia» ocorre apenas 16 vezes (sendo que num poema [92] o lemos duas vezes; e, noutro [58], três). Em muitos dos poemas que, tradicionalmente, se diz serem sobre Lésbia (como os famosos poemas sobre o pássaro; ou o não menos famoso «Odeio e amo»), o nome de Lésbia está ausente.

No maravilhoso poema 68 (em relação ao qual os latinistas falam de Lésbia a torto e a direito), nunca tal nome é mencionado. Antes, Catulo apresenta-se aí apaixonado por uma mulher «discreta» ou até «modesta» (em latim, «uerecunda»), cujas infidelidades «raras» ele aceita. O que tem isto a ver com a «puella» anónima que toma homens nos braços «aos trezentos de cada vez» (poema 11)? Ou com o poema 58, em que Lésbia (cujo nome aqui figura TRÊS vezes num poema de cinco versos) é apresentada como prostituta reles nos «cruzamentos e vielas», a puxar para trás os prepúcios dos homens de Roma (o verbo «glubit» é tão ordinário quanto impossível de traduzir; veja-se J.N. Adams, «The Latin Sexual Vocabulary», p. 74).

No entanto, a mulher discreta do poema 68, descrita duas vezes como «minha luz» e uma vez como «cândida deusa», é uma mulher cuja opção de vida não-monogâmica Catulo (esse sim, mencionado no poema) não tem outra opção senão aceitar. A «cândida deusa» é claramente casada no poema 68; e claramente tem outros amantes, além de Catulo. Ele, homem, tem de aceitar a sexualidade que ela, mulher, escolheu viver. Fazendo um paralelo com a ópera «Don Giovanni» de Mozart, na ficção poética de Catulo ele é Donna Elvira, ao passo que a mulher amada (seja Lésbia ou outra) é Don Giovanni. A sexualidade «masculina» é a dela. Ele, homem, está no papel tradicionalmente feminino de ter que aceitar a promiscuidade masculina, num padrão de relacionamento que faz dele, afinal, um «hétero passivo».

Ou faria – se não fosse somente outra máscara. Um pouco como «gay for pay». 

 

Frederico Lourenço, 2020-10-14

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