domingo, 25 de agosto de 2019

Henrique Levy, o rapaz do lilás





 
CNÉMIDES RESPLANDECENTES

as resplandecentes cnémides cravadas nos degraus do
grandioso delubro de Deméter são a passagem para o paraíso
subterrâneo, aí nos afagamos percorrendo distraídos a suave
virtude dos corpos, presságio dos que voltam a renascer.
enquanto abandonas as tuas vestes, dissipam-se nuvens no
firmamento entontecido.
agora que estás nu a minha cabeça é um barco de loucos
numa noite de naufrágio.
exaltados, iniciamos o mistério do ritual de Elêusis que jurámos nunca divulgar
e o meu corpo é uma planície

varrida pelo tremor da terra, gemido fremente alcançado
pelo rubor de um encantado suspiro…
chegas primeiro ao templo ungido pela voz que enlaça
desejos e entrega dons a deuses distantes.
os meus joelhos desolados abandonam as cnémides
resplandecentes, rastejam errantes no suspiro do húmus,
profundo de terra vulcânica.
de rastos, aceitei no pavilhão das rosas os aromas de beijos
brilhantes que abandonaste na custódia do templo, com a
beleza oceânica das suas cores adornei os cabelos,
percorri a vasta colina de ti por entre ribeiros de águas
mansas guardadas em mim…
depuseste as tuas armas e à noite entraste no dossel da minha
cama, túmulo que me ouviu cantar no fulgor do clarão de
cetim que me cedes.
na colunata, o ardor do sabor encantado dos teus lábios
pronuncia em júbilo carícias na boca e nos olhos sossegados
a bordar desertos lilás no refúgio ímpar de segredos nunca
antes desvendados…
 
Henrique Levy, O Rapaz do Lilás,
Ribeira Grande, Confraria do Silêncio, 2018

 
Cnémide - espécie de greva (joelheira) metálica usada pelos hoplitas, antigos soldados da infantaria grega. (https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/cn%C3%A9mides)
 


 
para o henrique e o luis
O poeta faz versos porque o amor é uma varanda aberta ao mar. E mergulha, ainda dentro de casa, no tempo que é livre, acabado de chegar do futuro que se confirmou. Mergulha como quem abre o corpo e pede a deus que leve o que é seu e deixe o que é do amor. Fica, assim, inteiro o poeta, que se renova na água imensa, jorrando do poema por escrever. O poema que desafia o espaço da cabeça e do coração, para caber aninhado e sair em fanfarra, pelos dedos eléctricos.
Este livro é esse mistério convertido em candeia acesa. Todos podemos ver como o amor é uma acendalha, como os dias distantes são núpcias, à espera, apenas, quem sabe, de um pastor de olhos verdes, capaz de ser árvore e luzeiro alto, em vez de todas as coisas que as pedras já conhecem de cor, cada vez que nos cobrem os sonhos. Este livro é uma glória que se conquista todas as manhãs, se a vida nos dá e nós agradecemos, rezando aos nossos poetas, aos anjos e aos santos que encarnam nos animais, criaturas do deus que existe, com a maravilha de eles serem, tantas vezes, a voz que fala através dos olhos, e garante que somos todos iguais. Todas as manhãs, quando o Luis sai, o Henrique fica, e encontram-se os dois no poema, amam-se numa vasta lucidez, antecipando a luz das flores do linho, que nunca mancha nem ensombra, essa vida que se faz de pequenos rituais. E a casa cresce, depois, com o espaço que as palavras trouxeram, para a hora do chá, e para o comprimento das mãos, elas que saciam a espera, de que o amor se livra, cada vez que um poema decide falar, a glória que o amor dispensa, se tudo é tão simples, como abrir um livro, rezar às paredes, acordar o silêncio, e pô-lo à escuta, da ilha que nos rodeia. Quando vamos à Mediana vemos este livro na sombra perfumada das coisas, que é luz do avesso, dizendo-nos para testemunharmos o paraíso encontrado do amor, ele que nunca é o que estávamos à espera, e talvez por isso nos comova, e faça sentido abrir-se o oratório, como quem abre uma janela, e comprova que vamos sempre além dos sonhos, se para tanto basta um abraço, e o mar, ao fundo, como uma colher que nos embala no líquido do amor.
Prefácio a O Rapaz do Lilás
Daniel Gonçalves, Santa Maria, setembro de 2018