Vive só
à mercê da sensação!
Definirmos,
—
É reduzirmos
A alma
E é fechar o entendimento
É reduzirmos
A alma
E é fechar o entendimento
António
Botto, Canções
António Botto é considerado um
poeta menor no espectro literário em Portugal. Não é estudado na escola, nem na
generalidade da Academia. Não figura, com certeza, nas listas dos maiores
poetas do país e, quando é lembrado, é reconhecido principalmente pela sua
amizade com Fernando Pessoa. Mas durante a sua vida, na primeira metade do
século XX, Botto era tema de conversa ao passar nas ruas de Lisboa, era
caricaturado em jornais e revistas, ou encarnado em romances como “A Velha Casa”,
de José Régio.
Era uma personagem destes tempos
por estar à frente deles. Em 1921, lançou a segunda edição de Canções, um
conjunto de poemas editados pela Olisipo,
editora de Pessoa, com uma capa que mostrava um retrato de Botto, de aspeto
andrógino, olhar sensual e ombros destapados. Esta era a primeira vez que
alguém escrevia, de forma clara, assumida e publicada, sobre experiências
homossexuais na primeira pessoa, em Portugal. Para Anna Klobucka, autora de “O mundo gay de António Botto”, significou
“o primeiro coming out
público” no país. E, por isso, atrás de “Canções” vieram as perseguições.
Embora
não tenha direito à minha vida, tenho direito às minhas ideias
(Epígrafe de “Cartas que me foram devolvidas”)
(Epígrafe de “Cartas que me foram devolvidas”)
Armando Ferreira, jornalista no
jornal A Capital, publicou uma crónica na primeira página com o cabeçalho “O
livro da D. Antónia” que denunciava a obra de Botto como vinda do “desejo de
exibicionismo”: “Nem mais uma palavra de nojo, nem mais um ‘pst, pst’ ao
polícia da esquina para levar a registar com uma caderneta este mancebo que
tira o retrato a mostrar as ‘clavículas’ (…) Mas não haverá entre nós polícia
de costumes, ou três bons honestos espíritos capazes de lançar para o monturo
estes dejetos?”.
No início de 1923, os tais
“polícias de costumes” por que Armando Ferreira bradava constituíram a Liga de
Acção dos Estudantes de Lisboa, liderada por Pedro Theotónio Pereira, na altura
com 20 anos e que, mais tarde, durante o Estado Novo, foi Subsecretário de
Estado das Corporações e Previdência Social, Ministro do Comércio e Indústria,
representante português junto do regime de Franco, e ainda embaixador em
Espanha, Brasil, Estados Unidos e Reino Unido. Numa entrevista concedida por
esta altura, o número um do gang dizia: “Principiaremos, em boa ocasião, por
meter na ordem esses equívocos senhores que andam por aí, nas ruas e nos cafés,
irritando o indígena – como eles dizem – com maneiras femininas e elegâncias
ridiculamente exageradas”, prometendo “fiscalizar as livrarias e meter também
na ordem os artistas decadentes, os poetas de Sodoma, os editores, autores e
vendedores de livros imorais”.
Quem é
que abraça o meu corpo
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito
Quem é que fala da morte
Docemente ao meu ouvido?
– És tu, senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido.
—Vibrar!
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito
Quem é que fala da morte
Docemente ao meu ouvido?
– És tu, senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido.
—Vibrar!
António
Botto, Canções
O movimento homofóbico iniciado
por estudantes da capital teve o apoio do Governo Civil de Lisboa, que se
prontificou a confiscar “Canções” e “O meu manifesto a toda a gente”, de Botto,
e ainda outros livros e panfletos escritos por Raul Leal, Judith Teixeira,
Álvaro de Campos e Fernando Pessoa.
“O meu manifesto a toda a gente”,
apreendido, era a resposta que Botto deixava a quem o criticava: “Eu vivo tanto
nas garras da minha Arte – a quem me entrego mais e mais – que nada ouço, nem
poderia, dos uivos da vilanagem”. As garras nunca o travaram: continuou a escrever
e a escandalizar durante toda a sua vida. Nas duas décadas seguintes, publicou
várias edições de “Canções”, escreveu prosa, contos para crianças, ensaios e
peças de teatro. Em 1947, mudou-se para o Brasil, onde escreveu os seus mais
pornográficos poemas, nunca editados, talvez devido à sua inesperada morte, em
1959, atropelado numa avenida do Rio de Janeiro.
Começam
as línguas a brincar
Nas glandes maciças e lindas
Dos dois formosíssimos caralhos,
Esbeltos, esculturais,
Macios, veludo, mas rijo
Como granitos imortais
Que se modelavam ao lamber
Daquelas línguas vermelhas
Como rosas sem abelhas
Nas glandes maciças e lindas
Dos dois formosíssimos caralhos,
Esbeltos, esculturais,
Macios, veludo, mas rijo
Como granitos imortais
Que se modelavam ao lamber
Daquelas línguas vermelhas
Como rosas sem abelhas
António
Botto, Caderno Proibido
Passados 60 anos da sua morte,
relembramos o legado deste “poeta de Sodoma” que escreveu o que não podia ser
dito. Entrevistamos Anna Klobucka, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas
pela Universidade de Harvard e autora de vários livros, incluindo “O mundo gay
de António Botto”, publicado em 2018. Falamos sobre a sua obra poética, a
perseguição homofóbica de que sofreu, a sua relação com Fernando Pessoa, e a
razão porque parece ter sido esquecido pelo país.
(Obrigado também a Diogo
Agostinho, Luís Sousa, Nádia Simões e Artur Freitas, que ajudaram nesta
entrevista com sugestões de perguntas e temas. Um agradecimento especial a Adam
Mahler, por ter ajudado na preparação e estrutura da entrevista e por ter
sugerido que abordássemos este tema tantas vezes quantas as necessárias até que
o fizéssemos.)
Anna
Klobucka sobre António Botto, o primeiro poeta gay português (É Apenas Fumaça)
Captação de
som e vídeo: Bernardo AfonsoEdição de texto: Pedro Miguel Santos
Edição de vídeo: Joana Batista
Edição som: Bernardo Afonso
Entrevista: Ricardo Esteves Ribeiro
Preparação: Ricardo Esteves Ribeiro, Pedro Miguel Santos, Bernardo Afonso
Texto: Ricardo Esteves
Ligações externas:
Antônio Botto – Canções. São Paulo, Poeteiro Editor Digital, 2014. Publicado
originalmente em 1921.
“António
Botto e o Ideal Estético em Portugal”, Fernando Pessoa. Revista Contemporânea, vol. I, n.º 3, ano I, 1922.
Através
da obra do Sr. António Botto (Análise Crítica), Amorim de Carvalho. Porto, Edição do
Autor, 1938.
“El
semiheterónimo Antonio Botto”, José Luís Garcia Martín. Archivum: Revista de la Facultad de Filología, ISSN 0570-7218, Tomo 36, 1986 (Ejemplar dedicado a: Miscelanea
Filológica dedicada al profesor Jesús Neira) , págs. 381-408
“A invenção do eu: apontamentos sobre a vida de António Botto”,
Anna
M. Klobucka.Forma Breve: Homografias: Literatura e
Homossexualidade, vol 7.
Aveiro, Universidade de Aveiro, 2010, p.63-80.
Canções / Songs: Fernando Pessoa traduz António Botto, Maria Cardoso Pereira Vizcaíno. Instituto
Politécnico do Porto - ISCAP, outubro de 2012.
“Corpo, Expressão e Identidade em Adolescente de António
Botto”, Rodrigo Corrêa Martins Machado e Gerson Luiz Roani. Gláuks v. 12
n. 2 (2012) 12 – 26.
Artimanhas de Eros: Aspectos do erotismo e do esteticismo na
poética de António Botto,
Ricardo Marques Martins. Araraquara,
Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, 2013.
“António Botto”. In: Wikipédia,
a enciclopédia livre
“António
Botto não foi só amigo de Fernando Pessoa. Foi o primeiro (do mundo) a escrever
poesia homoerótica sem véus”, . Observador, 2018-08-11
“Obras
de António Botto vão voltar às livrarias ainda este ano”, Rita Cipriano. Observador, 2018-08-01
“O
Mundo Gay de António Botto”, Anna M. Klobucka. Sistema Solar, 2018-06-11
“A maior felicidade é ser-se compreendido.
Sete poemas para recordar António Botto”, . Observador, 2019-03-16
“Como
a existência dramática de António
Botto acabou numa avenida de Copacabana”, .
Observador, 2019-03-16
“Um
colóquio para ficar a conhecer melhor António Botto”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-15
“Dois
dias para celebrar António Botto e Fernando Pessoa, amigos e poetas”, Rita
Cipriano. Observador, 2019-03-05
“Anna
Klobucka: António Botto e Fernando Pessoa beneficiaram de forma igual e recíproca da sua relação de amizade”, Rita
Cipriano, Observador, 2019-03-16
“Documentário
sobre António Botto estreia a 19 de março na RTP 2”, Rita Cipriano, Observador, 2019-03-16