No meio do caminho da nossa vida
| Frederico Lourenço
Ontem pus-me a pensar numa coisa
curiosa. Imaginando que futuros governos me obrigarão a ser professor da
Universidade de Coimbra até aos 70 anos, faltam ainda 16 anos para eu me
reformar. Tendo iniciado a minha carreira como professor universitário no ano
lectivo de 1989-1990, o último ano lectivo em que darei aulas será o de
2032-2033. Assim sendo, atingi o meio da minha carreira universitária no ano
lectivo de 2010-2011, o único da minha vida – por inacreditável que pareça – em
que eu, especialista de grego, dei aulas sobre a «Divina Comédia» de Dante.
Na altura eu
estava longe de consciencializar que Dante entrara na minha carreira
universitária precisamente a meio dela. A bem dizer, só me dei conta disso
ontem.
E achei uma
coincidência espantosa. Esse meio-caminho correspondeu a uma altura muito
confusa da minha vida, em que eu estava a lutar contra a depressão causada pela
morte do meu pai, ao mesmo tempo que tentava sair de uma relação tóxica com um
homem que era em tudo a encarnação de Mr. Wrong (foi a única relação tóxica da
minha vida, mas também foi uma aprendizagem de que não me arrependo em nada;
nem uma das infinitas lágrimas então choradas foi chorada em vão).
Nessa altura,
eu fazia tudo (mas TUDO) a contragosto e foi nesse estado de espírito que
preparei e dei as aulas sobre a «Divina Comédia». Se, na altura, me tivessem
perguntado do que é que eu gostava, a resposta teria sido «nada», pois na
verdade eu não gostava de nada. Tinha-me desapaixonado totalmente pelos gregos
e pela literatura grega; também não dava dez tostões pela minha escrita
não-académica; escrevi dois livros de poesia, o segundo dos quais (»Clara
Suspeita de Luz») a tentar fazer sentido da dita relação tóxica, mas são livros
que não tenho hoje vontade de reler. A única coisa «positiva» que fiz foi
dedicar-me à leitura de Schopenhauer, o filósofo que reduziu o mundo a «nada»
(nichts), e pensei na hipótese de traduzir para português «O Mundo como Vontade
e Representação». O que é facto é que acabei por desistir dessa ideia. Mil páginas
em alemão a explicar porque tudo é nada pareceram-me um nadinha de mais.
Esse
meio-caminho da minha vida universitária foi um momento de total perda de
orientação e de sentido. Se me tivessem dito, nessa altura, que eu um dia
voltaria a interessar-me a sério pela literatura em língua grega eu não teria
acreditado. No entanto, passado esse Bojador do meio-caminho da minha vida,
começou a aparecer no horizonte uma nova razão de ser. Comecei a fascinar-me
cada vez mais por algo que já me fascinava havia muitos anos: o Novo
Testamento. Comecei a perceber quão urgente era abrir, em Portugal, a discussão
sobre essa colectânea extraordinária de textos a âmbitos fora do contexto
eclesiástico; percebi a urgência de desfazer o equívoco na cabeça de tantas
pessoas no nosso país de que o estudo do Novo Testamento e a sua interpretação
teológica são inseparáveis ou, pior ainda, são simplesmente a mesma coisa. Não.
Não são a mesma coisa. O estudo histórico do Novo Testamento e o estudo das
realidades que lhe deram origem (assim como o estudo dos seus primeiros
destinatários) não pode nem deve ser confundido com aquilo que é a sua
posterior interpretação teológica, católica ou protestante.
E ontem pensei
noutra coisa. Lembrei-me disto: quando, bem antes de eu ter chegado ao
meio-caminho, eu estava a escrever a minha tese de doutoramento sobre métrica
grega, uma antiga colega minha, a Cristina Pimentel, disse-me em 1994 uma frase
que nunca esqueci: «espero que o Frederico não fique pelo glicónico».
O termo
«glicónico» refere-se a um verso grego, que estudei pormenorizadamente na minha
tese. Na altura, acho que respondi à Cristina que contava mesmo ficar pelo
glicónico e, durante a crise do meio-caminho em que eu dava aulas em Coimbra
sobre a «Divina Comédia», passava-me às vezes pela cabeça voltar a a estudar
essas coisas rarefeitas: coisas como a permissibilidade da resolução das
posições longas nos priapeus de Píndaro – ou outras coisas do género, de
profundo interesse, como se vê, para a vida da Humanidade.
Felizmente, não me fiquei por esse tipo de estudo e
encontrei a razão da minha vida no estudo do Novo Testamento, que não largo nem
por um dia e a que voltarei, de forma bem mais aprofundada, quando tiver
acabado a tradução de uma obra básica e fundamental para a compreensão de toda
a literatura cristã: o Antigo Testamento grego (Septuaginta). Se tudo correr
bem, portanto, os melhores anos da minha vida ainda estão para vir: serão,
pelas minhas contas, os anos lectivos de 2020-2021 a 2032-2033. Tentarei não
morrer entretanto.
Coimbra, 27-06-2017
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🙂