terça-feira, 27 de junho de 2017

Mr. Wrong


 
No meio do caminho da nossa vida | Frederico Lourenço
Ontem pus-me a pensar numa coisa curiosa. Imaginando que futuros governos me obrigarão a ser professor da Universidade de Coimbra até aos 70 anos, faltam ainda 16 anos para eu me reformar. Tendo iniciado a minha carreira como professor universitário no ano lectivo de 1989-1990, o último ano lectivo em que darei aulas será o de 2032-2033. Assim sendo, atingi o meio da minha carreira universitária no ano lectivo de 2010-2011, o único da minha vida – por inacreditável que pareça – em que eu, especialista de grego, dei aulas sobre a «Divina Comédia» de Dante.
Na altura eu estava longe de consciencializar que Dante entrara na minha carreira universitária precisamente a meio dela. A bem dizer, só me dei conta disso ontem.
E achei uma coincidência espantosa. Esse meio-caminho correspondeu a uma altura muito confusa da minha vida, em que eu estava a lutar contra a depressão causada pela morte do meu pai, ao mesmo tempo que tentava sair de uma relação tóxica com um homem que era em tudo a encarnação de Mr. Wrong (foi a única relação tóxica da minha vida, mas também foi uma aprendizagem de que não me arrependo em nada; nem uma das infinitas lágrimas então choradas foi chorada em vão).
Nessa altura, eu fazia tudo (mas TUDO) a contragosto e foi nesse estado de espírito que preparei e dei as aulas sobre a «Divina Comédia». Se, na altura, me tivessem perguntado do que é que eu gostava, a resposta teria sido «nada», pois na verdade eu não gostava de nada. Tinha-me desapaixonado totalmente pelos gregos e pela literatura grega; também não dava dez tostões pela minha escrita não-académica; escrevi dois livros de poesia, o segundo dos quais (»Clara Suspeita de Luz») a tentar fazer sentido da dita relação tóxica, mas são livros que não tenho hoje vontade de reler. A única coisa «positiva» que fiz foi dedicar-me à leitura de Schopenhauer, o filósofo que reduziu o mundo a «nada» (nichts), e pensei na hipótese de traduzir para português «O Mundo como Vontade e Representação». O que é facto é que acabei por desistir dessa ideia. Mil páginas em alemão a explicar porque tudo é nada pareceram-me um nadinha de mais.
Esse meio-caminho da minha vida universitária foi um momento de total perda de orientação e de sentido. Se me tivessem dito, nessa altura, que eu um dia voltaria a interessar-me a sério pela literatura em língua grega eu não teria acreditado. No entanto, passado esse Bojador do meio-caminho da minha vida, começou a aparecer no horizonte uma nova razão de ser. Comecei a fascinar-me cada vez mais por algo que já me fascinava havia muitos anos: o Novo Testamento. Comecei a perceber quão urgente era abrir, em Portugal, a discussão sobre essa colectânea extraordinária de textos a âmbitos fora do contexto eclesiástico; percebi a urgência de desfazer o equívoco na cabeça de tantas pessoas no nosso país de que o estudo do Novo Testamento e a sua interpretação teológica são inseparáveis ou, pior ainda, são simplesmente a mesma coisa. Não. Não são a mesma coisa. O estudo histórico do Novo Testamento e o estudo das realidades que lhe deram origem (assim como o estudo dos seus primeiros destinatários) não pode nem deve ser confundido com aquilo que é a sua posterior interpretação teológica, católica ou protestante.
E ontem pensei noutra coisa. Lembrei-me disto: quando, bem antes de eu ter chegado ao meio-caminho, eu estava a escrever a minha tese de doutoramento sobre métrica grega, uma antiga colega minha, a Cristina Pimentel, disse-me em 1994 uma frase que nunca esqueci: «espero que o Frederico não fique pelo glicónico».
O termo «glicónico» refere-se a um verso grego, que estudei pormenorizadamente na minha tese. Na altura, acho que respondi à Cristina que contava mesmo ficar pelo glicónico e, durante a crise do meio-caminho em que eu dava aulas em Coimbra sobre a «Divina Comédia», passava-me às vezes pela cabeça voltar a a estudar essas coisas rarefeitas: coisas como a permissibilidade da resolução das posições longas nos priapeus de Píndaro – ou outras coisas do género, de profundo interesse, como se vê, para a vida da Humanidade. 
Felizmente, não me fiquei por esse tipo de estudo e encontrei a razão da minha vida no estudo do Novo Testamento, que não largo nem por um dia e a que voltarei, de forma bem mais aprofundada, quando tiver acabado a tradução de uma obra básica e fundamental para a compreensão de toda a literatura cristã: o Antigo Testamento grego (Septuaginta). Se tudo correr bem, portanto, os melhores anos da minha vida ainda estão para vir: serão, pelas minhas contas, os anos lectivos de 2020-2021 a 2032-2033. Tentarei não morrer entretanto. Descrição: https://www.facebook.com/images/emoji.php/v9/f4c/1/16/1f642.png
Coimbra, 27-06-2017
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🙂




segunda-feira, 26 de junho de 2017

Até hoje





Eu e o Paulo temos uma relação. Pronto, já o disse. Eu e o Paulo sempre tivemos uma relação logo desde o primeiro momento em que nos vimos na Secundária. Ainda retenho a imagem na mente: ele na esquina do Pavilhão A, de calças à anos 90, justas e magras, como as pernas, compridas do chão ao tronco, um tronco elegante, despreocupado, à vontade por debaixo de um rosto calmo, curioso, de olhos negros como o cabelo forte, daquele cabelo que dá vontade de agarrar e encher as mãos, quase animalesco de tão farto. Bastou-nos meio segundo, e depois ele desviou o olhar. 


Nessa tarde encontrámo-nos por detrás do ginásio, ele calado e eu também, ele a querer saber, a saber, e eu com as mãos suadas atrás das costas, a tremer, com um pé atrás e outro à frente, ele mais alto que eu, assim ao pé de mim, e eu a percebê-lo mais velho, talvez no 10º ou 11º, e eu ainda no 9º e tantos nervos, nunca tinha beijado ninguém e não queria deixar de beijar, os lábios dele vermelhos de sangue, de dor, vontade, paixão?, amor?, um passo em frente e fechei os olhos.


Até hoje. 


Não sei quem teve mais dificuldade em aceitar a nossa relação, se os pais dele se os meus. Quando finalmente arranjei coragem para contar a toda a gente à mesa de jantar, a minha irmã desatou a rir-se, a minha mãe desatou a chorar e o meu pai perdeu a fala.


Até hoje. 


E eu a pensar, a ansiar, a desejar tirar este peso de cima dos ombros, eu a querer contar, partilhar este amor, este ardor no peito de coração aos saltos sempre que estivemos juntos e sós, desde o escuro do anfiteatro da Universidade à sala de cinema, passando pela casa quando mais ninguém lá estava até à sala de enfermagem ao fim do turno. Eu a querer dar-lhes tudo e em trinta segundos perder um pai e uma mãe, porque a minha irmã não conta e a minha irmã já sabia (sempre soube) entre amigos e amigas, conversas de rua e conversas de escola. A minha irmã também é enfermeira. Até hoje. 


Mas ao menos os meus pais não me puseram na rua. Pura e simplesmente deixaram de o ser, pais, demitindo-se com justa causa e por escrito. Já com os pais do Paulo foi bem pior, e como, mal ou bem, já estávamos os dois a trabalhar, alugámos um T1 no bairro e, aos 21, começámos uma vida juntos.


Até hoje. 


Entretanto casámos, pelo Civil, pois claro, o Paulo pediu-me em casamento no nosso 3º aniversário depois de um jantar de mãos dadas e uma vida de mãos dadas e eu disse que sim, para sempre, e para sempre fechei os olhos. Na cerimónia apenas os padrinhos do Paulo e os meus, os que não fugiram, os que não nos deixaram.


Até hoje. 


Hoje caminhamos na marcha. De mãos dadas com as alianças bem à vista, para todos, para que todos saibam e todos vejam, o meu pai, a minha mãe (porque a minha irmã não conta, já o disse). E não, pai, eu não trago o rabo à mostra nem penas ou asas de todas as cores, sou apenas eu, eu e Paulo e uma bandeira em cada mão, essa sim com todas as cores, como sempre fomos, de todas as cores desde que o vi na esquina do Pavilhão A. Podia ter sido uma rapariga, foi o Paulo, e eu nunca deixei de ser quem sou, nunca deixei de lutar, estudar e trabalhar, e o que se passa na cama e lá em casa é só connosco e mais ninguém. Não é pai? Porque mais ninguém tem nada com isso e eu também nunca te perguntei o que fizeste com a mãe antes de me fazeres ou enquanto me fizeste.


Estou a caminho de casa e o Paulo vem comigo. Batemos à porta e a minha mãe, com dois poços fundos de lágrimas no lugar dos olhos, abraça-me. Já não vou poder dizer nada ao meu pai.


Crónica de João André Costa, 25-06-2017


http://p3.publico.pt/actualidade/sociedade/23928/ate-hoje