Nigel Owens.
O árbitro que tentou matar-se porque não queria ser gay
Quando Nigel fala os jogadores baixam as orelhas, é um
dos árbitros mais respeitadosChristoph Ena/APRUI PEDRO SILVA31/10/2015
20:00
Galês bateu no fundo do poço em 1996 mas recuperou,
ganhou confiança e agora atinge o ponto alto da carreira com a final do
Mundial.
Quando saiu de casa às três e meia da manhã de um dia
de 1996, Nigel Owens pensava que nunca mais ia ver os pais. Estava acordado há
uma hora e tinha-se levantado sem fazer barulho, de forma que ninguém o
impedisse. Para trás ficava um bilhete a justificar o suicídio como única
solução possível. Com ele seguiam duas caixas de paracetamol, uma garrafa de whiskey
e uma caçadeira carregada. O galês de Mynydd Cerrig deu uma última volta à
terra que o tinha visto crescer e seguiu para as montanhas. Pouco depois,
entrou em coma.
A pressão que Nigel Owens sentia era enorme. Sofria de
bulimia, estava obcecado com o peso e tinha encontrado no ginásio a solução
para substituir a gordura por músculo. Para acelerar o processo, começou a
tomar esteróides e ficou viciado. “Estava a entrar num caminho que não tinha
saída e fiz algo de que me arrependerei para sempre”, lamenta, anos depois, num
documentário exibido pela BBC.
Nigel não morreu por pormenores. Primeiro, por ter
entrado em coma antes de decidir disparar. Depois, porque foi encontrado por um
helicóptero a tempo de ser levado para o hospital, onde permaneceu vários dias.
“Tinha vergonha do que tinha feito, de ter tentado
matar-me quando há gente a morrer todos os dias de doenças terminais e que
dariam tudo para continuarem vivas. Mais do que tudo, senti-me envergonhado
pela carta que deixara aos meus pais. Não consigo sequer imaginar o que
pensaram, o que lhes passou pela cabeça quando leram que eu não conseguia
aguentar mais”, conta, revelando o desespero da mãe: “Disse-me que se o fizesse
outra vez, que a levasse e ao meu pai também, porque não queriam viver sem
mim.”
A reacção dos pais foi o ponto de viragem. Afinal, era
também por eles que tinha chegado àquele ponto. Sendo filho único, recusava
privá-los de serem avós no futuro. Por isso reprimiu o que começou a sentir com
18 anos. “Tudo aconteceu porque não queria ser gay. Andava a lutar há anos. Não
havia nada de mau em ser gay, mas sentia que não me enquadrava. Tive várias
namoradas, mas senti sempre que algo não estava certo. E pensava: ‘Vou
obrigar-me a apaixonar--me por esta rapariga.’ Mas isso nunca aconteceu. E
nunca aconteceria. A partir de dado momento, percebi que não conseguia viver
mais assim”, conta, recordando a primeira vez que teve algo com um homem. “No
segundo seguinte, senti-me doente, fisicamente doente, envergonhado pelo que
tinha feito. Não estava a aceitar o que era e fiquei deprimido.” Daí até à
tentativa de suicídio foi um pequeno passo.
Paixão assumida
Nigel Owens continuou sem contar que era gay e centrou
atenções numa paixão que podia assumir sem rodeios: a arbitragem. A carreira
começou depois de ter falhado uma penalidade decisiva no último jogo da equipa
da escola, que poderia ter sido o único triunfo da época. “Queria ser o herói,
mas a bola saiu junto à bandeirola. O professor veio falar comigo e disse--me
que, se calhar, teria mais sucesso como árbitro. Ele estava meio a brincar, mas
eu levei aquilo a sério.”
Os primeiros passos não foram fáceis. Nigel tinha 16
anos e o pai não era um ás na condução. Por isso, para o primeiro jogo, seguiu
com o autocarro da equipa do Nantgaredig. “O Tregaron perdeu 6-9 e no balneário
não ficaram muito contentes.” A partir daí, por mais longe que fosse o jogo,
nunca mais foi à boleia. Derek Bevan, até hoje o único árbitro galês a dirigir
uma final de um Mundial (Austrália-Inglaterra em 1991), lembrou à BBC os
sacrifícios que fazia: “Se fosse preciso, levantava-se às sete da manhã e
apanhava um, dois, três autocarros diferentes.”
O sucesso na arbitragem fê-lo galgar patamar atrás de
patamar e em 2005 teve o primeiro jogo internacional, um Japão-Irlanda em
Osaka. A vida corria bem, mas ainda ninguém sabia que era gay, ninguém sabia
que fora essa a razão a precipitar a tentativa de suicídio. “Escondi durante
nove anos, mas era demasiado. Não estava a conseguir ser árbitro porque não era
feliz com a pessoa que era”, recordou.
Os pais foram os primeiros a saber. “Disse à minha
mãe, depois ao meu pai. Dizer aquelas três palavrinhas ‘eu sou gay’ foi uma das
coisas mais difíceis que alguma vez tive de fazer”, lembra. Contar ao patrão na
Welsh Rugby Union foi o passo seguinte e um dos que mais preocupação geraram:
“Tinha medo do que aconteceria se as pessoas nesse mundo descobrissem que era
gay e as suas consequências.” Mas nada mudou. Finalmente, os amigos. “A maior
parte telefonou de volta ou mandou uma mensagem, tirando um. A maior parte
deles já desconfiava”, referiu o árbitro, realçando a importância do momento.
“É impossível tentar descrever o que senti. Foi fantástico perceber que não fez
diferença nenhuma para a família, amigos e para as pessoas no râguebi. Foi como
nascer novamente.”
O último passo
A família sabia, os amigos sabiam, os responsáveis pela arbitragem sabiam. Só faltava o público. A revelação foi feita numa entrevista a um jornal galês, mas foi na televisão que Nigel Owens saiu do armário. Literalmente. O árbitro participava regularmente no programa de humor de Jonathan Davies e juntos tiveram a ideia de abordar o tema de forma implicitamente explícita. Owens estava escondido dentro de um armário e abriu as portas ao som da música “I am what I am”. “Não têm noção do que senti quando praticamente toda a gente se levantou e aplaudiu”, exclama o árbitro, que faz questão de se fazer acompanhar do sentido de humor apurado no râguebi. “Se o perdermos, se não tivermos a capacidade de nos rirmos de nós e dos outros, perdemos uma grande parte do jogo.”
A postura é uma imagem de marca e é reconhecida por adeptos e jogadores, desde as farpas ao futebol (“Se vais continuar a mergulhar, volta daqui a duas semanas”, atirou para o escocês Stuart Hogg durante um jogo no estádio do Newcastle) às brincadeiras com a sua homossexualidade. “Num jogo dos Ospreys, o Ryan Jones estava no balneário e disse-me para esperar que pudesse vestir alguma coisa. ‘Não faz diferença. De qualquer maneira, és muito feio’, respondi. Ele riu-se, eu ri-me, todos os outros jogadores se riram.”
A nomeação para a final do Mundial desta tarde (Nova Zelândia-Austrália às 16h00 na Sport TV5) foi o derradeiro feito na carreira que faltava a alguém que está na terceira fase final e arbitrou duas finais da Heineken Cup. “Quero agradecer aos meus amigos e família pelo apoio constante que me ajudou a ultrapassar momentos muito difíceis na minha vida. O meu pai esteve sempre ao meu lado e está felicíssimo com a notícia. É uma pena que a minha mãe não esteja cá para ver, uma vez que foi sempre um grande pilar na minha vida”, relembrou Nigel Owens.
A filosofia com o apito vai continuar a fazer a diferença, dentro e fora de campo: “É impossível arbitrar um jogo de 80 minutos sem fazer pelo menos um erro, mas aprendemos com eles. Ao fazer isso, melhoramos e aceitamos o facto de que não há nada de errado em cometer erros na vida.”
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