Com a elegância de quem domina o próprio corpo,
vestindo um terninho de linho bem talhado, feito sob medida, me olhando e aos
móveis como alguém num leilão avaliando objetos à venda, a visitante entrou na
sala e me estendeu um envelope. «A portadora», li, «é filha de um velho amigo,
Vasco Japiassú. Gente boa, de tradição (descendem do barão de Aroeira, que fez
História durante a Regência) e de caráter. Peço que você dê a Lilibeth toda a sua
atenção e paciência. Seu colega e admirador, Medeiros.»
«O Dr. Medeiros disse que o senhor é um homem de ação,
para eu não perder tempo com rodeios.» Parou. Esperei. «Tudo é natural para um
advoga do, não é?»
«Advogado, polícia, padre, médico. Pecado, doença,
crime. »
Lilibeth me fitou parecendo meditar sobre o que eu
dissera.
«É melhor ir direto ao ponto», disse Lilibeth.
«É melhor.»
«O que é preciso para eu fazer um flagrante de
adultério contra o meu marido?»
«Adultério é crime de ação privada. O ofendido tem o
prazo decadencial de trinta dias, a partir do conhecimento do crime, para
propor a ação. O flagrante terá que ser feito pela polícia.» (Seja paciente,
etc.)
«Flagrante?»
«A lei considera flagrante quando há indícios de que a
pessoa cometeu o crime recentemente. A palavra vem do latim, flagrans, flagrantis, significando
ardente, que está ardendo. Em matéria de simbolismo o flagrante de adultério só
perde para o de incêndio doloso.»
«Então os dois têm que ser apanhados, quando
estiverem... hum... isso é impossível. »
«Basta estarem num quarto de dormir, trancados, é
suficiente. Mas a senhora deve pensar bem antes de promover a ação. »
«Já pensei bem.»
A existência do crime de adultério na lei brasileira
era uma excrescência anacrônica que há muito já devia ter sido extirpada.
Alguém me dissera que seria suprimida do novo Código Penal, em elaboração.
Gostaria de dizer isso à mulher à minha frente, mas a recomendação de Medeiros
me inibia. (Paciente, etc.)
«Posso
saber quais são as suas razões? Estatisticamente o objetivo desse tipo de ação
é garantir a guarda dos filhos ou fugir à pensão de ali mentos.»
«Não
tenho filhos.»
«O
querelante, para evitar que a ação se torne perempta, extinta, além de promover
o andamento do processo terá que estar presente a todos os atos do mesmo. Um
verdadeiro sofrimento, uma coisa chatíssima. Faça um acordo.»
A
pior coisa do mundo era explicar a lei para um cliente.
«Não
quero fazer acordo. Os dois são culpados, ou apenas o meu marido?»
«O
seu marido e a mulher, ambos são agentes do crime. »
«Não
é outra mulher.»
Esperei.
«Não
acha estranho, doutor?» Lilibeth sorriu. «Para
falar a verdade, se não fosse tão grotesco encontrar o marido na cama com outro
homem até que seria um caso interessante, não acha?»
«Muito»,
eu disse, gravemente. «Se formos adiante nisso será o primeiro caso na
jurisprudência brasileira, eu acho. Muito instigante do ponto de vista
hermenêutico. Flagrante de adultério promovido pela mulher já é raro, ainda mais
quando o correspondente é outro homem. Realmente insólito.»
«Mas
eu ponho o meu marido na cadeia?»
«Seu
marido certamente não seria preso. A lei prevê a pena de detenção de quinze
dias a seis meses. Ele obteria a suspensão condicional da pena caso viesse a
ser condenado à prisão.»
«O
mundo é dos homens. E estamos no século XX.».
«Uma
mulher também teria essas mesmas vantagens.»
Um
silêncio incômodo.
«Não
havendo guarda de filhos ou partilha de bens, tratando-se apenas de uma
retaliação de ofendido, compreensível, sugiro que esqueça seus propósitos
punitivos. A represália a certos ultrajes vilipendia mais do que desagrava a vítima.
Por que a senhora não se separa do seu marido, afinal já existe o divórcio,
ainda que cheio de entraves, e fica livre e esquece tudo?»
«O
senhor não está me ajudando muito. Eu esperava que encontrasse uma solução para
o meu problema.»
«E
o que estou fazendo.»
Eu
entendia que a mulher quisesse se vingar. Mas como advogado tinha que
aconselhar o que era melhor para o cliente. Pacientemente (ah, Dr. Medeiros)
procurei persuadir a mulher a desistir da ação.
«Você
é casado?», Lilibeth perguntou.
«Bem...
»
«Já
sei de tudo. Quando um homem responde a essa pergunta desse jeito é porque tem
algum tipo de compromisso não sacramentado. »
Eu
também já sabia de tudo. Depois diziam que eu era mulherengo. Ficava quieto e
as mulheres me provocavam. As caras que Lilibeth fazia. Que diabo, eu tinha uma
aparência tão disponível assim? Assumi um ar doutoral: « O processo penal é uma
peça teatral, de vários atos encadeados, o varfahren
dos processualistas alemães. E também um romance, descrevendo as relações existentes
entre o juiz e as partes. Rechtsbeziehungen.
Os romanos usavam o termo iudicium —
iudicium est actus trium personarum: iudicis, actoris et rei. O ato de três
pessoas, seria melhor dizer personagens, o juiz, o autor e o réu. O
protagonista, o antagonista e o tritagonista.
«Esse
palavreado não me impressiona, sabe?»
«Estou
sabendo.»
«Você
tem tempo para ouvir a história do meu casamento?»
«Claro.»
«É
uma história interessante. »
«Sou
todo ouvidos.»
«Vou
começar com o dia do casamento. Estava todo mundo lá, quer dizer, as pessoas
importantes, executivos, políticos, o society
inteiro. As mulheres todas lindíssimas — eu não estava em condições de notar,
mas minha mãe disse que nunca um casamento reuniu tantas mulheres elegantes. É
verdade que vendo hoje as fotos eu não tenho essa impressão — aquelas mulheres
com as cabeças cobertas de borsalinos,
canotiers, capelines, regarde moi,
brétons, pill boxes, berrés, turbants, coijfures de penas, aigrettes, me parecem ridículas, os
vestidos dão a impressão de serem feitos de tecidos de cortinas ou de forração
de estofados, acho que bonita mesmo estava eu, mas toda noiva é bonita, o noivo
é que costuma ter cara de idiota. Mas o Val — o nome é Valdomiro, mas ele é
conhecido como Val — detesta ser chamado de Valdomiro — até que não ficou feio
nas fotos, mas também ele não era um noivo como os outros. O que ganhamos de
presente foi uma loucura, tudo o que você pode imaginar, quase precisamos
alugar espaço num guarda-móveis para guardar o que sobrou. Afinal, uma parte
foi para a fazenda do papai, em Vassouras, enchemos um caminhão de transporte,
e a outra, menor e mais valiosa, foi para a nossa casa, na Gávea. Todos os
jornais noticiaram o casamento, e não foi só nas colunas sociais, saiu também
nas outras páginas e em todos os canais de televisão. Quando li os jornais não
pude reprimir um tolo sentimento de vaidade, não havia uma mulher no Brasil,
naquele instante, que não me invejasse. Pra você ver. Na festa do casamento Val
bebeu muito e não queria ir embora. As pessoas, os amigos, pediam para ele
parar de beber, contando aquelas piadinhas de mau gosto ligadas à noite de
núpcias. Tínhamos um apartamento reservado no Copacabana Palace para aquela
noite e no dia seguinte embarcaríamos para Nova Iorque. Afinal, já bem tarde,
fomos para o hotel, com as malas de viagem. Val chegou e caiu na cama e dormiu
até de manhã sem que eu conseguisse acordá-lo. De manhã fomos à praia, lemos as
notícias dos jornais e voltamos para o hotel. Eu queria comer no quarto, mas Val
insistiu em descer para almoçarmos no restaurante. Durante o almoço Val bebeu
muito e ele não era de beber muito, ao contrário, tinha sempre muita preocupação
com a saúde, com o físico, evitava cometer excessos, mas lá estava ele bebendo
como se fosse um empedernido alcoólatra e, quando reclamei, respondeu com um
palavrão, disse, estamos casados há poucas horas e você já começa a mandar em
mim, não foram bem essas palavras, foi uma coisa assim. Eu disse que não queria
mandar nele e ele respondeu é melhor mesmo pois não vou deixar nenhuma mulher
fedorenta mandar em mim, ou coisa assim, parecida. Pra você ver. Eu devia ter
percebido que as coisas não iam terminar bem e voltado para a casa do meu pai
naquele dia mesmo, mas quem teria coragem de fazer isso? Você teria coragem de
fazer isso, tendo tido um casamento badalado daqueles? E lá fui eu para Nova
Iorque. Ficamos hospedados no Regency, na Park Avenue, num apartamento com todo
o conforto. E sabem quem estava hospedada lá? A Elizabeth Taylor. Um dia descemos
juntas no elevador, ela tem uma papada feia, é baixa e gorduchinha, mas os
olhos, os olhos são uma maravilha, um azul brilhante, parece um gato. Em Nova
Iorque Val mal tocou em mim. Fomos a todos os shows musicais, assistimos ópera
e balé no Lincoln Center, demos a volta à ilha de barco, visitamos todos, ou
quase todos, os museus, comemos nos restaurantes típicos da Village, do Soho,
da Little Italy, do bairro chinês, essas coisas todas dos turistas. Um dia, já
estávamos lá há uma semana, Val me levou para ver um desses filmes que os
americanos chamam de for adults ou X-rated. Eu nunca havia
visto um filme destes e aquele primeiro que vi, conquanto muito forte, não era
desagradável, quer dizer, não chocava muito, até que excitava um pouco. Mas os
que vimos depois eram todos com homossexuais e dois homens fazendo aquele tipo
de coisa, vou te contar, não é fácil. Não me incomodo de ser chamada de boba,
mas dois homens iguaizinho como se fossem um homem e uma mulher, vou te contar,
é difícil de aceitar. Foi depois de ver um filme desses — olha, eu não estou
escondendo nada, nunca contei isso para ninguém — que Val teve relações comigo
no hotel, a única vez em toda viagem. Pra você ver. Mas eu estava cega e não
desconfiei de nada, ou não quis desconfiar, os presentes ainda estavam todos
dentro das caixas, ou quase todos.
»Quando
voltamos ao Rio perguntei por que ele havia casado comigo e tivemos uma
discussão terrível. Eu queria, quero, ter filhos. Val odiava crianças, pelo
menos foi isso que me disse naquele dia, que era melhor termos um cachorro, que
eu já estava me tornando a megera que são todas as esposas burguesas, veja
você, um parasita que nunca trabalhou falar em burguesia. Resumindo, e não tem
muito mais para contar, essa foi a minha vida com Val. Ah, me esqueci de dizer
que fomos, antes de casar, uma vez para a cama. Para finalizar, o dia
culminante. Eu havia saído para jogar tênis no Country, à tarde, mas começou a
chover e voltei para caia e lá estava Val deitado na cama fazendo coisas com um
amigo nosso. Igual no filme. Adoro o cheiro do seu charuto. Que marca é?»
«Panatela. Escuros, curtos,»
«Que
tal a minha vida?»
«Existem
piores. »
«Duvido
que uma mulher do povo case com um homossexual. »
«Talvez.
»
«Talvez
o quê?»
«Talvez.
Pode ser. Não ser. As vezes. Etc.»
«Você
não gosta de mim, gosta?»
«Se
você realmente achasse que eu não gosto, não perguntaria. »
«Quem
ficou mais chocado com o que aconteceu foi o meu pai. Minha mãe também ficou,
mas menos. Mas vou confessar uma coisa que vai surpreender você. O Val é uma
pessoa, como direi, boa, você ia gostai dele se o conhecesse. Ele é muito
engraçado, tem inn senso de humor fantástico, é inteligente e culto, sabe tudo
sobre arte, lê muito. Está sempre ajudando os outros sem esperar retribuição.
Acho que eu fui a culpada, devíamos ter sido apenas amigos, ele seria um amigo
maravilhoso mas eu quis fazer dele um marido porque agora está na moda as
pessoas casarem, está todo mundo casando, não sei se você notou, O Val não
queria mas acabou concordando se fosse uma cerimônia íntima com meia de dúzia
de amigos, mas o meu pai acabou fazendo essa produção milionária. Para falai a
verdade eu também queria aquilo, já que eu ia casar, que fosse de acordo com o
figurino, igreja, vestido de noiva, enxoval, festa. Toda noiva quer casar na
igreja de véu e grinalda. Estou te chateando?»
«Mais
ou menos. »
«
Você é a pessoa mais ambígua que eu conheço. Sabe porque eu quis saber qual a
marca de charuto que você fumava? Para dar uma caixa para você.
Agora
já não tenho mais vontade. Gosto das pessoas transparentes eu sou um livro
aberto, você é um enrustido. Estou ou não te chateando?»
«Mais
ou menos.»
«Sabe
porque eu estou falando isto tudo, sobre o meu casamento? É porque eu precisava
falar com alguém, qualquer pessoa que me ouvisse, e isso eu tenho que
reconhecer, você é um bom ouvinte, pelo menos. Acho que o nosso destino é feito
por nós mesmos, então não vou mais culpar o Val pelo que aconteceu, aliás você
foi o primeiro a me sugerir isso quando disse para eu desistir do ridículo
flagrante de adultério, não sei onde andava minha cabeça estes dias. Como é
mesmo o nome do charuto?»
«Panatela »
«Tinha
mais uma coisa.»
«
Escuros. Curtos. »
«Você
não sabe como é a minha mãe. Está sempre infeliz e amargurada, mas se você me
perguntar a razão eu não saberei dizer. Nem ela. Meu pai faz tudo que ela quer
e ela só faz o que ela quer.»
«Como
é o chapéu pill box?»
Conversamos
mais meia hora, até que D. Sônia interrompeu a conversa.
«O
Dr. Wexler está esperando pela senhora. »
«Panatelas, não é? Escuros, curtos.»
«Ou
Pimentel n.° 2.»
«D.
Sônia, quer fazer o favor de ligar para o Raul, na Homicídios. »
Enquanto
a ligação não se completava: era bom não resistir à sedução de uma mulher
bonita. Ada, a graça muscular; Lilibeth, a regularidade harmônica. Pensei
também em Berta Bronstein e Eva Cavalcanti Mejer.
Rubem
Fonseca, A Grande Arte (1983)