domingo, 8 de abril de 2012

DRAMA EM TRÊS ATOS









ATO I

Ó gente da minha terra
Agora é que percebi
Essa tristeza que trago
Foi de vós que a recebi…

Recebo esta invetiva por SMS em forma de citação. Poderia ter sido eu a enviá-la. Quem ma enviou insiste em desresponsabilizar-se pelos seus atos.
Entanto, eu poderia responder assim:

Já fiz as pazes contigo;
E se algum ressentimento
Entre nós, pode surgir,
A culpa –
Não será do que fizermos
De hoje em diante,
‑ Apenas, possivelmente,
Do que os nossos corações
Teimarem
Muito em silêncio sentir.
Contudo,
Não poderemos protestar:
O sofrimento passa, meu amor;
Mas, a lembrança de ter sofrido
Quem é que a pode arrancar?

(in Canções e outros poemas, António Botto, p. 182)

Podemos não recordar os insultos; mas guarda-se deles um amargo de experiência, feia como uma cicatriz. E isto envelhece a alma, torna-a ruinosa e inútil.”
(verbete “Insultos” in Opera Omnia – Dicionário Imperfeito, Agustina Bessa Luís).


ATO II

“Há palavras que nos beijam”:

Ele ‑ De ti ontem me lembrava, deitado na minha cama gelada, agora o que eu nunca pensava era que estavas aos beijos na almofada.
Faz hoje 2 anos e 6 meses que entrou uma pessoa maravilhosa na minha vida. São quase mil dias juntos, com altos e baixos, eu e as minhas birras e o que a vida me fez, mas tu, sempre firme, sempre disposto a amar-me. Enfim… Se eu não souber dar valor a isso, então não sei dar valor a nada. Amo-te muito.

Contas os dias, os mil recantos para onde os olhos se acamam.
Não falarei de amor. Não falarei. Não direi a quantidade de cigarros inutilmente acendidos.
Como todas as noites, penso em ti e no que te irá na cabeça e no coração. Desejo-te uma boa noite, meu querido, sabendo que de uma maneira ou de outra estaremos sempre juntos.” (texto do guião de Equador)
*
O homem tem estado paranóico. Nestes últimos três dias fiquei em estado de choque com as acusações que faz. Até pediu que devolvesse as chaves. Fi-lo. Depois continuámos a trocar mensagens e de novo as acusações, a desconfiança.
Fiz um ultimato que o deixou a tremer: ou ia ao psiquiatra ou a relação acabava.
Uma semana antes eu tinha-me queixado de que ele andava arredado de mim, como se precisasse descansar de mim. Para se defender argumentou que era preciso dar espaço um ao outro (normalmente uma semana sozinho em cada mês!) e que não era necessário saber o que eu estava a fazer, pois confiava em mim. Ao passo que eu falava da necessidade de falar das experiências que vivêramos, comentar o comportamento das pessoas que encontráramos, fazer planos, lutar juntos, etc.
Passada uma semana, ele revela-se exatamente o oposto, mostrando-se atento e fazendo juízos de valor errados sobre movimentos meus.

A nossa relação é como um tronco sem membros e sem cabeça.
E se eu decidir viver a minha vida?

Ele ‑ Dia de chuva na ilha dos amores. Um dia ia-me atirando para debaixo de um comboio que passou por Coimbra B.

(Está sol. É início de Primavera.)
Já me ocorreu fazer uma compilação das tuas mensagens apocalípticas. Compor uma narrativa. Fôlegos e silêncios nos ouvidos.
E se agora um qualquer fulano intercetasse em Coimbra B o comboio em que viajo.
Ando a comunicar para o vazio. O que temos para retomar se nada se construiu? Sobre que alicerces, que estacas tenho que te segurem? Voltar a quê? A que ponto voltar para construir algo?


ATO III

Talvez registe as últimas frases absolutas que enviaste. E esta página será proscrita por muito tempo.
A vida será feita destas intermitências cada vez mais raras e sem brilho. Respiro fundo. Quem entrará na minha vida. Como fazer desse desejo um objetivo e um plano. O senhor que se segue.
Todas as noites, quando me deito, um só pensamento vem à mente: eu não deveria estar aqui. O meu lugar não é aqui. A história repete-se. Cruamente.

Havia um compromisso mútuo, tácito: a cada um cabe realizar a felicidade do outro.


Nos primeiros tempos dizias quase ininterruptamente:
Eu amo-te, eu amo-te, eu amo-te.
Nos primeiros tempos, tremias em cada toque da mensagem recebida.
Havia sempre vontade do abraço e do beijo.
Eu fui feliz assim.

É esta a parte do poema em que eu me deito. Aproximo-me da cama com a nostalgia dos hábitos que se não reatam.


EPÍLOGO

"A certeza que fica é que para a vida valer a pena é necessário amar e ser amado, e ter muito cuidado com o cristal de que os outros são feitos." (Nuno Lobo Antunes, "Sinto Muito")


[Setembro de 2006 a Setembro de 2010]

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O livro de Catulo

470 a.C.




Verânio, que eu prefiro a todos os meus amigos, ainda que fossem trezentos mil, é certo que regressaste a casa, aos teus irmãos que te adoram, à tua mãe velhinha? É certo, sim. Que notícia tão grata! Ver-te-ei são e salvo, ouvir-te-ei descrever, segundo é teu costume, os sítios, as guerras e as tribos da Ibéria e, estendendo o pescoço, beijar-te-ei os olhos e a face querida. Ó vós que sois felizes, quem há mais contente e ditoso do que eu?

Catulo (Caio Valério Catulo ‑ em latim: Gaius Valerius Catullus)
Verona, 87 ou 84 a.C. - 57 ou 54 a.C.
Catulo. Poesias. Texto estabelecido e traduzido por Agostinho da Silva
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933.

 


Veranio, de entre todos mis amigos
el primero aunque fueran muchos miles,
¿has vuelto a casa junto a tus penates,
tu anciana madre y tus buenos hermanos?
Has vuelto. ¡Para mí qué gran noticia!,
pues sano te veré y oiré de Iberia
contar historias, pueblos y lugares,
como haces siempre, y tomándote el cuello,
tu alegre boca besaré y tus ojos.
Oh, de todos los hombres más felices
¿quién más feliz que yo? ¿quién más dichoso?




Peço-te que me digas, se te não contraria, onde é o teu esconderijo; procurei-te no Campo Menor, no Circo, entre todos os livros, no sagrado templo do grande Júpiter. Ao mesmo tempo, no passeio do Grande <Pompeio>, detive todas as raparigas que, no entanto, vi ficarem de rosto sereno. E reclamava-te assim: «O meu Camério, raparigas de má raça!». Uma respondeu, mostrando o peito nu: «Aqui está escondido nestes seios rosados». Mas, em verdade, aturar-te é um trabalho de Hércules, tanto é o desdém com te negas, amigo. Não; ainda que tomasse a forma do guarda de Creta, ou que fosse levado no voo de Pégaso, ou fosse Ladas ou Perseu de pés alados, ou a ligeira parelha branca de Reso; junta-lhes mesmo os voadores heróis de pés empenados e a impetuosidade dos ventos; ainda que mos desses todos juntos não deixaria de ficar cansado até à medula e comido de fadiga por andar à tua procura, meu amigo. Diz-me onde estás, revela-o sem medo, confia, não receies a luz <do dia>. Ainda te prendem as brancas raparigas?

Se retiveres a língua na boca cerrada perderás todos os frutos do teu amor: Vénus gosta das loquelas expansivas; mas, se quiseres, deixa-te estar calado, contanto que sejas confidente do meu amor.


Catulo (Caio Valério Catulo ‑ em latim: Gaius Valerius Catullus)
Verona, 87 ou 84 a.C. - 57 ou 54 a.C.
Catulo. Poesias. Texto estabelecido e traduzido por Agostinho da Silva
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933.
  


 


Te suplico, si no es mucho pedir,
que muestres las tinieblas que te esconden.
Por ti pregunto en el Campo Menor,
por ti en el Circo y en las librerías,
por ti en el templo sagrado de Júpiter.
Amigo, en el paseo de Pompeyo
paré a la vez a todas las muchachas
aunque había en sus rostros mucha calma,
mas, con todo, ay, así te reclamaba:
« ¡Devolvedme a Camerio, mujerzuelas! ».
Y desnudando el seno dijo una:
«En mi pezón de rosa, ¡aquí se esconde!».
... Pero aguantar es ya labor de Hércules.
¿Con tal soberbia, amigo, me desdeñas?
Dime dónde has de estar, sal ya sin miedo,
entrégate a la luz con confianza.
¿Te retienen quizás niñas de leche?
Si en la boca tu lengua has sepultado
perderás del amor todos los frutos,
pues a Venus le alegran las palabras.
Aunque cierra la boca, si eso quieres,
mas dame parte al menos en tu amor.


Aquiles e o amante Pátroclo


Compadecendo-se, por fim, Zeus lança mão de outro artifício e muda-lhes para diante os órgãos genitais. […]
Ao mudar-lhes, pois, os órgãos genitais para diante, Zeus determinou que a geração humana passasse também a efetuar-se de uns para outros, mediante tais órgãos - na fêmea por intermédio do macho. E eis o que tinha em vista: se acaso o acoplamento se desse entre homem e mulher, o resultado seria procriarem e perpetuarem a espécie; se entre dois varões, haveria pelo menos a plenitude da união e, uma vez apaziguado o desejo, poderiam voltar às suas tarefas e interessar-se por outros aspetos da vida.
Dessa época longínqua data, sem dúvida alguma, a implantação do amor entre os homens - o amor que restabelece o nosso estado original e procura fazer de dois um só, curando assim a natureza humana.

Platão, Banquete, 191b-d