terça-feira, 1 de novembro de 2022

A Bíblia dos cristãos: uma ementa de escolhas difíceis

 Crónica de Frederico Lourenço
 
Paulo a ler a Bíblia, por Guercino


Um aspecto que nunca deixa de surpreender quem conheça minimamente a Bíblia é como o cristianismo desde há séculos se baseia numa sobrevalorização de certas passagens da Bíblia – tidas, pelas igrejas, como a verdade absoluta de Deus – e numa desvalorização total de outras passagens tidas, pelas mesmas igrejas, como inconvenientes e, consequentemente, votadas ao “delete”.

Um desafio inicial que se colocou ao cristianismo foi decidir o que aproveitar das complexas e labirínticas normas e obrigações expressas na Lei judaica. Seria possível deitar aquilo tudo para o lixo e começar do zero?

Convenientemente, o apóstolo Paulo deixou escrito que a Lei judaica valeu até Cristo (Gálatas 3:24) e que Cristo representa o fim da Lei (Romanos 10:4). No entanto, a grande finalidade prática desta insistência por parte de Paulo era provar que, não obstante a sua exigência incontornável por parte de Deus (Génesis 17:10), os homens cristãos não estavam obrigados a submeter-se à circuncisão.

Porém: escritos posteriores a Paulo – desde logo o Evangelho de Mateus – vieram baralhar este quadro. No capítulo 5 do seu Evangelho, Mateus atribui a Jesus a declaração de que não veio para abolir a Lei judaica, mas sim para a cumprir: e que não há pormenor da Lei, por mais ínfimo que seja, susceptível de desvalorização (Mateus 5:18).

Assim, para um estudioso da história do cristianismo é concebível que, se perguntássemos ao Jesus de Mateus se ele exigia a circuncisão, ele teria respondido “sim”. Se fizéssemos, contudo, a mesma pergunta ao Jesus dos outros Evangelhos (não só de Marcos, Lucas e João, mas também do apócrifo Tomé), ele teria dito redondamente “não”. No que ficamos? É complicado.

O emaranhado de preceitos e de regras no livro de Levítico foi sempre um piso escorregadio para cristãos que querem viver e impor valores bíblicos – mas selectivamente. Arrumada a questão da circuncisão, o clero cristão dos primeiros séculos deu-se conta de que, apesar de tudo, alguma coisa se podia aproveitar deste livro do Antigo Testamento.

Antes de mais, a obrigatoriedade do pagamento do dízimo (Levítico 27:30-34), sustento milenar das igrejas. A condenação à morte dos homossexuais (Levítico 20:13) também foi aproveitada e incorporada no primeiro grande código legislativo cristão, instituído no tempo do imperador Justiniano (século VI). A pena de morte como castigo da homossexualidade só saiu das legislações europeias no século XIX graças a um demónio iconoclasta chamado Napoleão. É claro, pois, que a homossexualidade atenta contra os valores judaico-cristãos! Está na Bíblia!

Mas há outras coisas que andamos todos a fazer mal, além do casamento gay. Desaconselho vivamente todo o cristão a comer qualquer prato tradicional da cozinha portuguesa, desde cozido à portuguesa a tripas à moda do Porto. Porquê? Estes pratos contêm algo que a Bíblia nos proíbe de comer: gordura (Levítico 3:17). Já agora, no catolicíssimo Minho com as suas papas de sarrabulho, seria bom que lessem o mesmo versículo citado. Quem gosta de caracóis também fique sabendo que não os pode comer (Levítico 11:28-29). Quando ao porco, deve ser das proibições bíblicas que toda a gente conhece (Levítico 11:7-8), mas a que nenhum cristão liga qualquer importância. Também ninguém invoca valores judaico-cristãos para evitar entrar numa marisqueira, com base na proibição bíblica de comer mariscos (Levítico 11:10-12). Faisão também é proibido (Levítico 11:19), mas nenhum cristão que eu conheça se recusa a comê-lo.

Dir-me-ão que estou a dar exemplos da Lei judaica – o que interessa a um cristão se um judeu não pode comer chouriço? Problema dele.

Mas o problema não é tão simples: afinal a Lei judaica é ou não vinculativa para cristãos? Sim (Mateus)? Ou não (Paulo)? Porque é que, deste mesmo Levítico que tenho estado a citar, é vinculativa a obrigatoriedade do dízimo e a condenação da homossexualidade – mas não são vinculativas as outras coisas?

Nos primeiros séculos do cristianismo, houve denominações (rotuladas de heréticas pela ortodoxia católica) que consideravam obrigatória a circuncisão: por exemplo, ebionitas e maniqueístas. No caso dos maniqueístas o assunto é especialmente curioso, porque eles rejeitaram TUDO do Antigo Testamento, a não ser a obrigatoriedade da circuncisão: foi a única regra judaica que os maniqueístas não se atreveram a repudiar.

Outras seitas consideravam que as proibições alimentares da Lei judaica significavam no fundo a proibição de comer carne e peixe – e por isso preconizavam o vegetarianismo.

Era difícil – e ainda é – fazer uma leitura coerente desta questão.

Volto ao mesmo: a lei judaica é válida para cristãos? Se eu perguntar a um amigo católico se ele acha que quem apanhar lenha ao sábado deve ser apedrejado até à morte (Números 15:35), ele vai responder-me “estás parvo?” Mas se eu lhe perguntar se ele acha que há incompatibilidade entre valores judaico-cristãos e homossexualidade, ele tem sustento para dizer: “Frederico, tenho tanta pena.”

O livro do Antigo Testamento em que claramente a homossexualidade é apresentada como situação contrária à Lei judaica e consequentemente merecedora da condenação à morte é o livro de Levítico (20:13). Isto porque modernos estudiosos da Bíblia já não interpretam o episódio de Sodoma e Gomorra como condenação da homossexualidade, tal como o profeta Ezequiel (16:49) o não fizera.

O gigantesco Antigo Testamento, com as suas mais de 600 000 palavras no original hebraico, contém apenas dois versículos a condenar a homossexualidade.

Por suprema ironia do destino, quem no NOVO Testamento condena a homossexualidade não é nenhum dos evangelistas, nem Jesus pela pena dos evangelistas, mas sim Paulo – justamente o apóstolo que proclamou a obsolescência da Lei judaica! (Mas só para o que lhe convinha.)

 

Frederico Lourenço, “A Bíblia dos cristãos: uma ementa de escolhas difíceis” in https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco, 2022-11-01

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Homoerotismo na poesia portuguesa - tópicos, temas, palavras-chave

 

Alex Gordenkov, 2022

 

Uma poética do olhar e do desejo

 

Embora a dicção ou a representação do homoerotismo na poesia portuguesa não oriunde necessariamente de um movimento formalizado em termos de expressão, esta tematização parece constituir uma espécie de continuum, uma tradição silenciosa, que nesse caso não é defeito, mas qualidade, a que determinados poetas recorrem e de que se utilizam com alguma recorrência. Para além da simples semelhança temática, há […] uma recorrência a determinadas imagens e recursos que, se não são próprios dessa poesia, parecem engendrar-se como referencial ou recurso comum ao procedimento desses diversos poetas. Assim, cabe enumerar alguns desses vetores, de forma a desenhar essa forma de dizer:

 

a) relação do fazer poético com a experiência do corpo do outro: escrever o poema é antes experimentar um outro corpo igual, desejante e orgástico, é escrever o desejo, como é percetível em Al Berto (A procura de um vento no jardim de Agosto, Salsugem) e Luís Miguel Nava (Películas e Onde à nudez);

 

b) a vida quotidiana, o corriqueiro e o comum da vida elevados à motivação estética

do poema, como se observa particularmente em poemas como "Com halteres e outros instrumentos': de Joaquim Manuel Magalhães, e "Opus 133”, de João Miguel Fernandes Jorge. Neste item podem ser relacionados, ainda, a conversão de factos comuns em metáforas complexas, de forma a estetizar este quotidiano e as vivências homoeróticas nele localizáveis. Da mesma forma, os lugares tradicionais de engate e as formas variadas de aproximação afetivo-sexuais constituem dados de extrema recorrência;

 

c) revisão dos valores próprios da lírica tradicional portuguesa, como por exemplo, a utilização de recursos próprios da cantiga de amigo (As Canções, de Botto), Al Berto (Três Cartas da memória das Índias), "Alba”, de Joaquim Manuel Magalhães; ou mesmo a recorrência às formas tradicionais como a canção e a elegia, em Eugénio de Andrade. Há na poética portuguesa uma relação que parece intrínseca a sua constituição, que é a questão das formas de representação do erótico. Desde as formas tradicionais da medievalidade - cantigas líricas e satíricas -, passando por Camões, Garrett, Cesário e Pessanha, tem-se sempre este índice como um forte traço do poético, podendo se constituir como um vetor que se mantém e que é redimensionado à medida em que um novo valor, como a representação homoerótica, passa também a comparecer no escopo literário de forma mais amiúde nas produções mais recentes.

 

d) constante recurso de referência a outros poetas que tematizam a mesma questão, como em João Miguel Fernandes Jorge (Eugénio de Andrade, Mário de Cesaríny, Jean Genet), Al Berto (Cesariny, Álvaro de Campos, Sá Carneiro);

 

e) construção poética que geralmente perpassa a ordem sensorial, sobretudo o olhar: o enunciador sempre observa a coisa amada, o objeto desejado ou uma situação e relata o efeito dessa visada, que geralmente altera a sua forma de perceber o mundo; o olhar fetichista é o que proporciona a enunciação poética;

 

f) a relação olhar/poema estabelece ainda uma espécie de forma testemunhal, pela qual tanto o enunciador procura representar aquilo que presencia, como também indica um processo de ficcionalização do desejo, como no caso de Sena e Eugénio de Andrade. Nesse caso, o testemunho se auto-rasura, visto que não indica necessariamente a presença do locutor, mas o desejo de estar presente e testemunhar, como se vê, ainda, em Al Berto; é uma forma de pautar o testemunho na ordem do desejo erótico, fazendo-o servir como relato, posterior, de diversas sensações;

 

g) há ainda em poetas como Fernando Pessoa, José Régio, Eugénio de Andrade e Jorge de Sena um procedimento de encenação, uma espécie de redobra do processo de ficcionalização no qual o enunciador, não sendo quem mormente enuncia desejos homoeróticos, precisa fingir o fingimento duplamente, no mesmo sentido aludido por Pessoa;

 

h) esvaziamento do objeto amoroso com relação ao seu gênero gramatical, procedimento recorrente em Eugénio de Andrade, João Miguel Fernandes Jorge, Reinaldo Ferreira, dentre outros. Essa dessubjetivação pode aprioristicamente indicar um desejo pelo feminino, mas, por outro lado, indica a suspensão da anunciação clara em favor do mistério em torno da identidade da coisa amada. Nesse sentido esse "vazio" do género poderia indicar a interdição atinente ao enunciar do desejo por outro homem ou mulher, demarcando a inefabilidade das relações homoeróticas;

 

i) constante recorrência à figura do efebo, aos rapazes e aos homens mais jovens como objetos sobre os quais recaem os desejos ou que precisam ser enunciados na sua beleza, como bem se vê em Botto, Nava (Atrás da página, Há uma pedra feroz). AI Berto (Alguns poemas da rua do Forte), Sena ("Ganimedes”, "Sobre esta praia"), Pessoa ("Antinoo");

 

j) questão escatológica: excrementos. sémen, saliva e suas decorrentes metáforas; no mesmo diapasão, a constante recorrência a um corpo cindido, fragmentado, que muitas vezes se esfacela pelo desejo, como em Nava, ou pela falta dele.

 

“Poesia e (Homo)Erotismo - sobre alguma produção poética portuguesa dos últimos 30 anos”, Emerson da Cruz Inácio. In: Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Ano 12. Número 22 (Jan-Jul/2010). São Carlos: UFSCar, 2010. Revista disponível em: https://issuu.com/revistaolhar/docs/olhar_22_site